Podemos agora reler cuidadosamente “O 18 Brumário de Luiz Bonaparte” que a editora Boitempo acaba de lançar em nova tradução. Mas não podemos deixar de dizer que, apesar de sua genialidade, Karl Marx não imaginou até onde chegariam as lutas de classes em França ou fora dela.

Bem, elas simplesmente chegam aonde é necessário.

Recentemente, a Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP foi palco de um protesto “sujo”. As funcionárias de uma empresa terceirizada de limpeza estavam sem receber seu salário. Diante disso, juntamente com alguns estudantes elas viraram os cestos de lixo e inundaram o prédio de História com os rejeitos que raramente aparecem aos olhos de quem os produz.

Todos ficaram justamente indignados quando viram o que havia dentro da lata de lixo da história.

Não é preciso dissertar sobre qual seria a responsabilidade jurídica do Estado perante funcionários terceirizados que trabalham em suas dependências e nem mesmo sobre a legalidade do ato para reconhecer sua legitimidade. Talvez errado na forma, ele foi certo no conteúdo. Afinal, não é tolerável fazer um trabalho degradante e nem receber por isso.

Longe do lixo, seria mais aprazível retomar um “antípoda” de Karl Marx: Alexis De Tocqueville em suas “Lembranças de 1848”. Tanto quanto Marx, ele narrou vivamente alguns episódios da Primavera dos Povos. Mas de uma perspectiva política contrária.

Naqueles dias tempestuosos ele encontrou seu amigo Adolphe Blanqui, então um próspero economista. Adolphe era irmão do revolucionário permanente Auguste Blanqui, descrito pelo próprio Tocqueville no dia da tomada do parlamento como uma figura horrenda sob todos os aspectos.

Mas Adolphe também tinha coração. Certo dia, ele viu um jovem provinciano vivendo em extrema miséria e resolveu “adotá-lo” como parte da criadagem de sua residência em Paris.

Quando começou a insurreição de junho de 1848, era uma quinta feira. Esgueirando-se pelos meandros da casa, Adolphe ouviu um diálogo na cozinha entre aquele rapaz e uma de suas jovens empregadas. Dizia o jovem desaforado: “No domingo que vem, seremos nós que comeremos as asas do frango”. Ao que a moça retrucou: “E seremos nós que usaremos belos vestidos de seda”.

Para Tocqueville o que havia de mais surpreendente na história não era a insolência daquele par, mas o fato de que Adolphe não tivesse coragem de surpreendê-los e expulsá-los naquele momento. Eles o atemorizavam. Só depois que a classe operária parisiense foi esmagada nas ruas é que o respeitável economista teve a “coragem” de botá-los para fora de sua casa.

A luta de classes não é algo tão abstrato que habite apenas os discursos e os livros. Às vezes, ela se insinua no mais inesperado cotidiano. Ettore Scola em seu filme La Cena (“O jantar”) teve o mesmo bom gosto de Tocqueville ao situá-la na cozinha onde um velho chef comunista lançava seus impropérios.

Na Universidade, as lutas de classes, expulsas das salas de aula, resolveram voltar de forma mais incômoda: pelo banheiro.

*Lincoln Secco, professor de História Contemporânea na USP, membro do Conselho Editorial da revista Perseu.

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Do autor, leia também:

A casa-grande não descansa, em co-autoria com Marcos Cordeiro Pires, artigo publicado na revista Teoria e Debate nº 85 (nov/dez 2009)

– PT 30 anos: Um partido para a América Latina, artigo publicado na revista Teoria e Debate nº 86 (jan/fev 2010)

O marxismo de Caio Prado Jr., ensaio publicado em Teoria e Debate nº 73 (set/out 2007)

 

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