No referendo de 2005, a sociedade brasileira votou se deveria ou não ser proibida a venda de armas de fogo e munição no país.

No referendo de 2005, a sociedade brasileira votou se deveria ou não ser proibida a venda de armas de fogo e munição no país.

A campanha do SIM, aquela favorável à proibição da venda de armas de fogo e consequente desarmamento da população, tinha por premissa que quanto mais armas em circulação, maior a possibilidade de um conflito ter um desfecho fatal. A posse de uma arma não seria sinônimo de maior segurança. A turma do SIM não trazia a falsa promessa de acabar com a violência, mas defendia que desarmamento era o primeiro e importante passo no caminho de uma política acertada de combate à violência.

A campanha do NÃO, aquela contrária à proibição, argumentava que a proibição do mercado legal de armas de fogo aumentaria a circulação de armas ilegais no país.  A turma do NÃO ganhou o apoio da revista Veja, que dedicou uma edição especial ao tema, intitulada “7 razões para votar "não" na consulta que pretende desarmar a população e fortalecer o contrabando de armas e o arsenal dos bandidos”. É importante não nos esquecermos disso.

Como muito bem analisou a antropóloga Paula Miraglia: “A trajetória de uma arma legal ao mercado ilegal e à vitimização de inocentes era um dos elementos mais difíceis de serem explicados durante a campanha pela proibição do comércio de armas em 2005. Ontem, o Brasil conheceu esse caminho da maneira mais dramática possível.”

A tragédia de Realengo retoma o debate sobre a necessidade do desarmamento da população, permitindo-nos refutar o argumento de que a proibição da venda de armas aumenta o comércio ilegal das mesmas. 

Foi divulgado na imprensa que o atirador estava com duas armas, uma de numeração raspada, cuja procedência não pode ser identificada, e outra arma devidamente registrada, mas que fora roubada há 18 anos.

Wellington estava com uma “arma legal” que comprara no mercado ilegal por 260 pilas. Este não é um fato isolado, um número significativo de armas em circulação no mercado ilegal é proveniente do mercado legal. Segundo a Polícia Civil do Rio de Janeiro, 60% das armas apreendidas foram roubadas de residências. Em São Paulo, esse número sobre para 70%.

Além disso, estudos mostram que a presença de uma arma de fogo, antes de trazer segurança, pode ser um risco a mais para a população. Tese de doutorado recém-defendida pelo economista Daniel Cerqueira, pesquisador do IPEA, revela a importância de desarmar a população.

Segundo os dados apresentados pelo economista, para cada 1% a mais de armas em circulação, os homicídios aumentam 2%. E para cada 18 armas apreendidas, uma vida é salva. O autor do estudo aponta que, possivelmente, se não houvesse uma arma de fogo presente no momento do conflito, o desfecho das brigas (o que motiva a maioria dos homicídios no Brasil) seria outro.

Não é possível afirmar que a ausência de armas de fogo reduz todo o tipo de violência, mas está comprovado que a sua presença agrava a natureza da violência, tornando-a fatal

Em 2005, a indústria armamentista venceu e a população perdeu.

O comércio de armas de fogo cresceu 70% depois do referendo.  Mais de 80% das armas em circulação está em posse da população. A população começou a se armar mais, porém a violência não diminuiu. O Brasil continua em 6º lugar no ranking mundial de homicídios, a maioria deles cometidos com armas de fogo.

Já estava mais do que hora de retomarmos a campanha pelo desarmamento que ficou adormecida nos últimos anos. A tragédia de Realengo deve servir-nos de exemplo para que, desta vez, a população saia vitoriosa.

*Adriana Loche é socióloga. Pesquisadora na área de segurança pública e direitos humanos. Doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo.