Terremotos
Ninguém se aventura a qualquer previsão sobre o futuro do mundo árabe, melhor dizendo, mundo muçulmano. Realmente, o vulcanismo político é de tal amplitude e força, que o seu grau de devastação e desorganização dificulta extremamente a projeção das linhas de construção da nova realidade. De minha parte, só arrisco uma afirmação: a democracia é uma aspiração genuinamente popular que acaba triunfando, a curto ou a longo prazo. A democracia promete apagar as humilhações das diferenças e reconhecer a dignidade de cada um. Pode adiar o cumprimento desta promessa mas mantém vivo o anseio da sua efetivação. Por isso mesmo é invencível.
A democracia é o fruto político do Iluminismo, que substituiu o dogma estável da religião pela verdade mutável e progressiva da ciência. E é esta feição progressista da ciência e da modernidade que exige a democracia, o sistema político que reconhece e tolera a existência dos outros e de suas verdades, aceita a pluralidade de opiniões e de verdades. Por esta sua característica essencial, a democracia tem uma incompatibilidade intrínseca com a religião de Estado, que tende à intolerância para com outras visões de mundo e convive melhor com a ditadura.
Penso que os Estados Islâmicos estão num processo de busca da democracia, que pode ainda demorar algum tempo mas fatalmente se completará, como se completou na Turquia, porque este é o destino da Humanidade; destino que é inevitavelmente cada vez mais globalizado. A democracia vencerá, pois, no mundo inteiro. Como sistema político, que não se atrela necessariamente ao domínio absoluto do mercado, como quer o business, mas conviverá muito bem com múltiplos modelos econômicos, com maior ou menor presença do Estado na economia. Do Estado democrático, obviamente.
O tumulto, entretanto, é muito grande, como eu disse no início, e as linhas da reorganização são imprevisíveis no momento. A repulsa com relação ao business, que esteve sugando essas nações por décadas, em aliança com os ditadores, essa forte rejeição pode favorecer as correntes religiosas fundamentalistas na primeira hora. Afastado o business, todavia, os compromissos humanísticos farão prevalecer a democracia.
A própria democracia, contudo, evolui, modifica-se, aperfeiçoa-se, como a verdade da ciência. O sistema clássico, representativo, está dando sinais evidentes de degradação e repúdio, que lhe vão corroendo a legitimidade em todo o mundo. Mas ninguém pensa mais em abolir a democracia, como se pensou muito no século passado. O anseio mundial se dirige agora para o aprofundamento da democracia, o aperfeiçoamento do sistema clássico em direção a outro que confira mais oportunidades de participação direta dos povos nas decisões de governo, sem a necessária intermediação dos representantes, facilmente corruptíveis pelos grandes interesses econômicos.
E, nesse processo de aperfeiçoamento, ou democratização da própria democracia, a nova tecnologia de comunicação certamente terá um papel fundamental. A ciência sempre ajudou e propiciou a democracia, seja na abertura do espírito de tolerância e pluralidade, seja na ampliação do alcance das informações de interesse público, como, por exemplo, fizeram a imprensa, o rádio e a televisão.
Agora surge, surpreendentemente forte, a internet, derrubando fronteiras e limitações que os grandes interesses da mídia administravam. E tudo indica que está tendo um papel primordial na mobilização popular dessas revoluções do mundo árabe. Teria tido importância também na eleição de Obama, como teve certamente na eleição de Dilma Rousseff, com toda a grande mídia contrária. Indubitavelmente, é um poderoso instrumento de democratização da democracia, ainda que o acesso a ele esteja até agora limitado pelo nível de renda. Cada vez mais, porém, será ampliado e utilizado para a universalização da informação e, por esta via, para o aperfeiçoamento da democracia. Entretanto, este formidável instrumento novo da tecnologia tem também sua face perigosa, para qual é preciso estar atento.
Esta face perigosa tem duas dimensões: de um lado a possibilidade do uso da tecnologia para a manipulação das massas pelos poderosos interesses do capital, como aconteceu com o rádio e a televisão; de outro, o fato de que a velocidade, a instantaneidade dessa informação massificada reduz muito o tempo de reflexão humana, e enseja os arrebatamentos, as explosões emocionais de opinião das massas, tão temidas por Platão, que assistiu à condenação de Sócrates e desde então não gostava da democracia.
De qualquer forma, o século XXI promete grandes avanços políticos, que estão começando a se mostrar no mundo árabe. Cabe salientar, aliás, que a História sustenta que as grandes mudanças não se iniciam nos países mais ricos e poderosos mas naqueles que, revoltados pelo atraso e pela dominação, empreendem com vigor as revoluções profundas.
Acho mesmo que o Brasil é uma nação que hoje se candidata fortemente a esta iniciativa de criação de novas formas políticas, que mantenham o mercado no seu lugar e empreendam importantes iniciativas estatais lastreadas num processo de aprofundamento da democracia. Acho que o Brasil deveria tomar a dianteira na discussão das Utopias do XXI, com debates sobre, por exemplo: a Democracia Participativa; a Redução da Jornada de Trabalho; a Integração da América do Sul; o Desenvolvimento da África e a Democratização do Mundo Árabe; até temas como a Cidade sem Automóvel. Sugestões minhas; gostaria de receber outras.
Roberto Saturnino Braga, ex-senador (PT-RJ), presidente do Instituto Instituto Solidariedade Brasil (ISB) e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.