A morte da  Heleieth Saffioti,  no dia 14 de dezembro último, nos pegou a todas e a todos de surpresa.   Uma mulher perscrutadora,  cheia de vida, ironia e humor, aguerrida, nos levava a pensar que viveria por mais tempo. Frágil fisicamente mas tão forte de pensamentos e tão determinada em suas intervenções, ela nos dava esperança e segurança para mantermo-nos com dignidade na luta.Tristeza, muita tristeza: perder uma mulher assim tão audaciosa e pioneira. Gostava da política e fazia dela um debate constante, crítico, atualizado. Era tão desafiadora que não perdia oportunidade de suscitar uma reflexão critica sobre a condição das mulheres ou de questões sociais candentes. Sua critica bem apimentada sobre o cotidiano da política  nos fará muita falta, sem dúvida nenhuma. Há muito o que falar dela, como feminista, intelectual, política, marxista, como amiga, como cidadã.  Um dos aspectos a ser referenciado é sua    contribuição teórica para os feminismos emergentes dos anos de 1970 e também os da atualidade.  A morte de Heleieth, a nossa eterna mestra,  traz lembranças daqueles anos em que prevalecia o  obscurantismo  na vida social e política do país. A esquerda atuava na clandestinidade  ou no exílio. Era um tempo de prisões arbitrárias, torturas, mortes e desaparecimentos forçados. É bom lembrar que Heleieth à época,  professora da UNESP de Araraquara,  visitava os presos políticos do Barro Branco (Presídio de Presos Políticos, em São Paulo).  Um dos presos que ela gostava muito, era o Reinaldo Morano, que era de Araraquara.

Iniciava-se a organização de alguns grupos feministas que se reuniam para trocar  experiências pessoais e políticas, mas para tratar também da situação e dos entraves políticos  que se interpunham contra os movimentos, o que dificultava a vivência, a reflexão,  pontos fundamentais para  transformar  a vida e o trabalho das mulheres. Como deixar de ser submissa,  ter direitos como o de escolha, o de decidir inclusive sobre o próprio corpo, se todo o povo vivia calado e cabisbaixo? Como enfrentar esta situação, com o intenso e constante cerco da repressão política que intimidava, censurava, humilhava e maltratava a sociedade brasileira? Os feminismos se desenvolvem nas  ações coletivas de mulheres e a ditadura proibia o ajuntamento e a reunião de pessoas. Como desabrochar os feminismos, de forma isolada, reprimida e censurada?

Os feminismos dependem dos coletivos de mulheres. Nesse sentido, todas as mulheres conscientes de que devem lutar por direitos são merecedoras de serem referenciadas. Mas Heleieth foi tudo isso e mais: com sua produção intelectual, ela construiu novos marcos teóricos que ampliam e aprofundam as condições para o pleno  desenvolvimento da sociedade com  igualdade e justiça social.

As feministas que retomaram os movimentos na década de 1970, em sua grande maioria, eram originárias das organizações políticas de esquerda. Comprometidas, com as causas populares e com a transformação da sociedade, precisavam  superar os desafios impostos pela ditadura. Mas também havia a rejeição da própria esquerda que considerava o movimento feminista um desvio da luta de classes. De um modo geral, não havia um acumulo teórico sobre os feminismos. Eram escassos os  materiais sobre o tema. Às vezes, chegavam papéis datilografados que continham as idéias das feministas do exterior. Tinham pouco alcance, havia dificuldade de  circulação entre os grupos. Eram difíceis a reprodução e  o debate sobre estes poucos textos: A Revolução mais longa de Juliet Mitchell ou A mais valia do  Trabalho Doméstico   de Isabel Larguia, dentre outros. Impunha-se a necessidade de conhecer as bases teóricas dos temas feministas e aprofundar  os estudos e  debates. Era imprescindível o apoio da esquerda. Mas como convencê-la a apoiar os feminismos emergentes? 

Eram necessários novos marcos teóricos para mostrar que os feminismos não eram contrários à luta de classes, nem às bandeiras políticas de defesa de liberdades, programa que unificava a oposição. Como encontrar estes marcos teóricos? Onde? Com quem? É justamente neste momento, que as feministas encontram Heleieth, feminista pioneira desta onda,  que já vinha antes, há quase duas  décadas, desenvolvendo idéias, estudos  e  teses sobre a emancipação das mulheres na sociedade de clases [2], na área acadêmica,  a despeito de todo o preconceito que colocava o assunto submerso no silêncio e na invisibilidade. Ela enfrentou, solitariamente,  com coragem, competência e altivez, as criticas que lhe dirigiram as diversas forças políticas inclusive de intelectuais, que não a aceitavam, por se atrever a ser feminista, marxista e intelectual no espaço da Universidade. Ela era convicta de sua postura teórica e ideológica, não abria mão de seus princípios. Sofreu também uma certa desconfiança junto aos setores progressistas da oposição.

Na sua tese de doutorado defendida em 1966 e publicada em 1969: A Mulher na Sociedade de Classes,  Heleieth demonstrou que atuar pela libertação das mulheres exige o engajamento na luta de classes. Temos que remeter a luta de emancipação feminina à luta de classes,  declaração dela ao jornal Brasil Mulher, em 09/10/1975. Naqueles anos conturbados em que se entendiam lutas especificas e gerais como antagônicas, seus estudos definiram um rumo aos movimentos: as lutas das mulheres e as lutas de classes devem caminhar juntas e estão entrelaçadas pelo mesmo sistema de opressão e exploração.

Outra questão tão banalizada ainda nos dias de hoje e que é  urgente, urgentíssimo o seu enfrentamento: a violência de gênero foi agenda prioritária da atuação teórica e prática de Heleieth. Realizou diversas pesquisas sobre o assunto e, em suas conclusões, cobrava com veemência do estado políticas públicas que reduzissem e erradicassem a violência. Demonstrou em diversos trabalhos que a violência contra as mulheres é um fenômeno democrático que atinge as diversas classes sociais, raças e etnias. Assim acabou por desenvolver a teoria do nó que serve de base para aprofundar estudos, ações e elaborar  estratégias políticas para os feminismos de hoje. Trata-se da realidade social (sociedade e estado) que reúne três ordens: classe social, raça/etnia e gênero que se encontram de tal maneira imbricadas ou atadas, que não se mexe com uma sem que se mexa com as demais. Segundo ela, o importante é analisar estas contradições na condição de fundidas ou enoveladas ou enlaçadas em um nó. Não que cada uma destas contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade, presidida por uma lógica contraditória.[3]

Foram muitas as feministas que se inspiraram nas suas  idéias e nos seus  textos e assim retomaram-se os feminismos com  vigor a ponto em transformá-los em movimentos permanentes, que vieram para ficar,  multiplicar e se estender por todos os setores tanto no Brasil como no exterior.

Como muito bem escreve Fernanda Pompeu, sua biógrafa: ( Heleieth) foi autora de um percurso intelectual exemplar, colecionou todos os títulos acadêmicos, sempre brigando muito. Fez história, quando em 1966, em meio a puxa-sacos da ditadura militar e da estreiteza dos acadêmicos ortodoxos, defendeu sua livre docência com um tema irreverente: “A mulher na sociedade de classes”. Foi assim uma das pioneiras na América Latina dos Estudos de Gênero no universo acadêmico.

Há muito o que se dizer desta mulher, símbolo histórico do feminismo do Brasil e do mundo. Façamos o memorial desta personalidade que  deixa um legado teórico que beneficia na formação intelectual e política de nossas gerações e das  gerações futuras.

*Maria Amélia de Almeida Teles é integrante da União de Mulheres de São Paulo e do IBCCRIM – Instituo Brasileiro de Ciências Criminais,  além da Coordenação do Projeto de Promotoras Legais Populares e do Projeto Maria, Maria.

 

Notas:
[1] Fernanda Pompeu escreveu uma biografia da Heleieth Saffioti em Brasileiras Guerreiras da Paz, Editora Contexto, São Paulo, 2006,p.67. Nesta biografia, Fernanda afirma que Heleieth conseguiu autonomia com a ousadia do pensamento livre.

[2] Em 1969 foi publicado o livro Mulher na Sociedade de Classes. Mito e Realidade, Editora Quatro Artes,São Paulo, 1969.

[3] SAFFIOTI, Heleieth I.B. –  Gênero, Patriarcado, Violência. Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2004,p.124, 125.

 

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