“— Meu pai contou para mim;
eu vou contar para meu filho.
— Quando ele morrer ?
Ele conta para o filho dele.
— É assim: ninguém esquece”.

(Kelé Maxacali, índio da aldeia de Mikael, Minas Gerais, 1.984)1
O corpo de Eduardo Leite “Bacuri” foi entregue à família com os dois olhos vazados, as duas orelhas decepadas, todos os dentes quebrados ou arrancados,  costelas partidas, cortes profundos, hematomas por pancadas e marcas de queimadura por brasas de cigarros em todo o corpo.

Ele foi preso em agosto de 1970, no Rio de Janeiro, por oficiais do CENIMAR-Centro de Informações da Marinha, que o interrogaram e o transferiram para o  Delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS paulista, que o  interrogou e o repassou para o DOI-CODI de São Paulo, que o interrogou e o devolveu ao Delegado Fleury, que, então, plantou na imprensa, no dia 25 de outubro, a “notícia” de que esse preso conseguira fugir dois dias antes…

Chegaram a mostrar ao próprio Eduardo Leite, na cela do DOPS em que estava trancado, jornais com a notícia de sua “fuga” — isto é, de sua execução preparada para breve. Dois dias mais tarde, no início da madrugada de 27 de outubro (quatro dias após a suposta “fuga”), Eduardo Leite, sob protestos desesperados e impotentes de cinqüenta presos das outras celas, foi arrastado pelos braços para fora de sua cela — não conseguia mais pôr-se em pé  após mais de cem dias de tortura — e nunca foi trazido de volta. Em 8 de dezembro daquele ano, novo comunicado do DOPS à imprensa, informando que o temível fugitivo fora “localizado” pelas forças da repressão no litoral norte paulista e morrera numa troca de tiros com policiais.

Esse relato pode ser encontrado em vários livros de história sobre o período2. Eu teria menso alívio em afirmar que esse foi o único, ou o pior, episódio de violência perpetrada pela ditadura brasileira. Não foi — nem o único, nem o pior. Dezenas de modalidades de tortura física e psicológica foram praticadas intensiva e extensivamente pelos órgãos de repressão política de todos os Estados do país contra milhares e milhares de brasileiros, chegando  até ao homicídio deliberado de quase quatro centenas de presos políticos3 . Foram mortes que, às vezes, eram apresentadas sob álibis descarados (“suicídio”, “atropelamento acidental”, “morte em tiroteio” etc.), outras vezes não passavam de execuções seguidas de ocultação dos cadáveres (os “desaparecimentos”).

Os torturadores tiveram mãos livres para fazer de tudo — e fizeram de tudo. Estupraram presas4. Torturaram bebês para obrigar seus pais a revelarem informações5. Mataram pessoas empaladas6. Mataram com injeção de inseticida7. Mataram de muitos modos.

A relação de horrores vai mais longe e é bem mais arrepiante do que normalmente estão dispostas a imaginar mesmo pessoas que se consideram bem informadas.

Mas seria um equívoco supor que as torturas e assassinatos foram “excessos” cometidos por “psicopatas”. Ao contrário, foram métodos adotados pelo Estado brasileiro para livrar-se de seus opositores. Sua aplicação dava-se, quase sempre, no interior de quartéis do Exército ou de delegacias das polícias estaduais estaduais e federal, em horários normais de expediente dessas repartições, sob conhecimento e orientação de autoridades superiores e sob  inspiração da Doutrina de Segurança Nacional, desenvolvida na Escola Superior de Guerra entre 1965 e 19688.

As equipes de tortura e de eliminação eram, quase sempre, chefiadas por oficiais das Forças Armadas ou por Delegados de Polícia. Apesar de muitas vezes manterem suas vítimas sob capuzes, quase trezentos desses criminosos fardados ou sem farda acabaram sendo identificados, tiveram seus nomes publicados.

Passada a ditadura, prosseguiram normalmente em suas carreiras de funcionários públicos. A julgar pela idade que tinham na  década de setenta — a maioria com menos dequarenta anos — muitos ainda devem continuar no serviço público, possivelmente no topo de suas respectivas carreiras civis ou militares.

Nenhuma punição.

A grande frente que foi se formando na  luta contra a ditadura não conseguiu acumular  forças suficientes para exigir a punição de seus  crimes. Por isso, em 28 de agosto de 1979, o general João Batista de Figueiredo, ditadorpresidente de plantão na época, promulgou a lei 6.683 (lei da anistia política) com as conhecidas limitações e deformações: por um   lado, a lei concedeu uma anistia política apenas parcial, dela excetuando todos os que tivessem sido condenados por práticas da luta armada — ou seja, todos os que exerceram o direito de rebelião contra a violência ilegítima dos usurpadores do poder; e, por outro lado, a mesma lei estendeu a anistia aos torturadores e homicidas — isto é, premiou com impunidade perpétua os que praticaram todas as violências a favor da ditadura. Mais tarde, a Constituição de 1988 corrigiu parcialmente a  distorção, ampliando a abrangência da anistia.

Mas a impunidade dos torcionários da ditadura ainda continua intocada. Contudo, apesar de limitada e deformada, a anistia de 1979 resultou, antes de mais  nada, do crescimento da luta popular contra a ditadura militar. A bandeira da “anistia ampla, geral e irrestrita” havia conseguido, nos anos anteriores, unificar todas as correntes de oposição e conquistava apoio social e solidariedade internacional. Esquivando-se como podiam da repressão (e quando podiam…), sucediam-se atos públicos, abaixoassinados, manifestos, greves de fome dos presos políticos, denúncias e mais denúncias.

Então, em 1978, após anos vergados sob o peso de duríssima repressão, os trabalhadores conseguiram retornar à cena política, com as grandiosas greves operárias do ABC paulista, em afronta aberta às leis do regime militar. Isso acelerou a reorganização nacional do movimento sindical, estimulou manifestações  de outros setores e deu impulso formidável à luta pela anistia. A correlação de forças começava a se inverter. A repressão “seletiva” não funcionava mais. A partir daquele momento, só um banho de sangue de proporções monumentais conseguiria deter a expansão da luta contra a ditadura  — mas os golpistas não tinham mais condições políticas para isso. A anistia parcial de agosto de 1979 expressou exatamente esse momento crucial em  que a ditadura, ainda com fôlego, foi forçada a concessões e iniciou seu período de declínio. Conseqüências imediatas da anistia: repatriação de milhares de exilados e libertação de  grande parte dos presos políticos — o que, concretamente, injetou novas energias na frente de oposição à ditadura e preparou o terreno para as formidáveis mobilizações da campanha pelas Diretas Já, em 1984, que encerrariam, no início do ano seguinte, o longo ciclo — vinte e um anos! — do poder militar no Brasil.
José Damião de LimaTrindade, procurador do Estado, membro do gruo de trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de SP, presidente da Comissão Paulista de Anistia.

Notas
1 Epílogo de BRASIL: NUNCA MAIS!, Editora Vozes, Petrópolis, 20ª edição, 1987, pág. 273.
2
Ver, em especial: DOSSIÊ DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS A PARTIR DE 1964, editado pelo Governo de Pernambuco em 1995, reeditado pelo Governo paulista em 1996, págs. 79/82. 
3
Relações de mortos e “desaparecidos políticos” no Brasil podem ser consultadas em diversas obras, das quais destacam-se duas mais recentes: DOSSIÊ DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS A PARTIR DE 1964, editado pelo Governo de Pernambuco em 1995, reeditado pelo Governo paulista em 1996; e DOS FILHOS DESTE SOLO, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, agosto de 1999.
4 Por exemplo: Madre Maurina Borges da Silveira,  presa pelo DOPS em Ribeirão Preto, torturada e estuprada. O episódio suscitou indignação internacional. Em março de 1970, guerrilheiros brasileiros seqüestraram o cônsul geral do Japão em São Paulo e obrigaram a ditadura a permitir a saída do país de cinco  presos políticos, dentre eles Madre Maurina — humilhada, machucada, mas viva. Acolhida pelo Vaticano, refugiou-se num convento de sua ordem religiosa no México. A Igreja Católica excomungou dois delegados do DOPS de Ribeirão Preto envolvidos: Miguel Lamano e Renato Ribeiro Saores. Relato: BRASIL NUNCA MAIS, Arquidiocese de São Paulo, Editora Vozes, Petrópolis, 20ª edição, 1987, pág. 97.
5 Exemplo: Isabel Gomes da Silva, de quatro meses de idade, torturada no DOI-CODI paulista com choques elétricos porque os militares e policiais que prenderam sua mãe suspeitavam que ela ocultava infomações. Ver relato em TORTURA: A HISTÓRIA DA REPRESSÃO POLÍTICA NO BRASIL, Antonio Carlos Fon, Global Editora, São Paulo,6ªedição, 1981, pág. 39.
6 Exemplo: o jornalista Mário Alves, após oito horas de tortura pelos agentes do Exército no quartel da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, foi morto mediante empalamento com um cassetete de madeira guarnecido de estrias de aço. Relato em COMBATE NAS TREVAS, Jacob Gorender, Editora Ática, São Paulo, 1987, págs. 180/181.
7 Foi o caso do operário Olavo Hansen, em São Paulo, em maio de 1970. Relato detalhado em DOS FILHOS DESTE SOLO, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio,  Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, agosto de 1999, págs. 527/532.
8 Essa Doutrina, fornecedora do suporte jurídico-filosófico para a atividade de repressão política da ditadura, já estava desenvolvida antes do Ato Institucional nº 5, de 13/12/68, conforme se verifica no trabalho elaborado  pela Escola Superior de Guerra publicado no segundo semestre de 1968 pela revista “Segurança e Desenvolvimento”. Uma síntese dessa doutrina encontra-se em TORTURA: A HISTÓRIA DA REPRESSÃO POLÍTICA NO BRASIL, Antonio Carlos Fon, Global Editora, São Paulo, 6ª edição, 1981, págs. 27/32.
Saiba mais:

Dos Filhos deste Solo – Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado , de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio

Poemas do Povo da Noite, de Pedro Tierra c/ poema especial em homenagem a Bacuri

Fome de Liberdade: A luta dos presos políticos pela Anistia, de Gilney Vianna e Perly Cipriano

 

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