Muito longe do equilíbrio
“Toda situação hegemônica é transitória, e mais do que isto, é auto-destrutiva, porque o próprio hegemon acaba se desfazendo das regras e instituições que criou, para poder seguir se expandindo e acumulando mais poder do que seus liderados”.
J.L.F. “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações”, Ed.Boitempo, 2007, p:31
A recente decisão norte-americana de desvalorizar sua moeda nacional não é nova nem surpreendente. Como tampouco, a transferência dos seus custos para o resto da economia mundial, e de forma particular, para a periferia monetário-financeira do sistema. Os EUA já fizeram a mesma coisa, em 1973, quando abandonaram o sistema de Bretton Woods, provocando a primeira grande recessão mundial, depois da II Guerra. As analogias históricas são perigosas e devem ser utilizadas com cautela, mas não há dúvida que a situação e o comportamento atual dos EUA se parecem muito com o que ocorreu na década de 1970.
Como naquele momento, uma vez mais, os EUA estão envolvidos numa guerra sem solução e enfrentam uma grave crise econômica. E ao mesmo tempo, seu establishment está rachado e sua sociedade está atravessando uma luta política que deve se prolongar por muito tempo. E uma vez mais, os EUA optaram por uma resposta estratégia que combina a manipulação do valor do dólar com uma “escalada” da sua presença militar ao redor do mundo. E não é impossível que ainda façam um acordo estratégico com a Rússia e um acordo de paz como Irã, envolvendo toda a Ásia Central. E que adotem, novamente, a estratégia do “dólar forte”, do final dos anos 70.
Mas é óbvio que existem algumas diferenças fundamentais: por exemplo, a relação econômica dos EUA com a China é totalmente diferente da relação que os EUA tiveram com a URSS, e no século passado não havia nenhum país – nem a Comunidade Européia – com força para contestar ou resistir às decisões da política monetária norte-americana. Por isto, não é fácil de prever o futuro das novas iniciativas estratégicas dos EUA, mas com certeza, não é necessário que os países latino-americanos repitam os mesmos erros que conduziram à sua estagnação econômica e ao retrocesso neoliberal dos anos 80 e 90, do século passado. O futuro está aberto e existem múltiplas alternativas sobre a mesa, mas neste momento é necessário que os governantes tenham uma visão estratégica que transcenda o debate puramente econômico, cujos argumentos e alternativas fundamentais se repetem há cerca de duzentos anos.
A falta desta visão mais ampla é que explica a repetição – como na década de 70 – de algumas propostas absolutamente ingênuas ou inviáveis, dentro do sistema político-econômico mundial em que vivemos. Como é o caso, por exemplo, da decretar o fim da hegemonia do dólar; ou de criar uma nova moeda supranacional; ou ainda, de estabelecer uma meta fixa e consensual para os desequilíbrios das contas correntes nacionais; ou ainda pior, de voltar ao padrão-ouro ou delegar ao FMI a função de governo monetário do mundo. Sem falar, nos que acreditam que os EUA e a China possam mudar suas políticas econômicas nacionais, por conta da “pressão amiga”. Propostas e expectativas que pecam pelo desconhecimento ou negação ideológica, de alguns aspectos centrais da economia política da moeda dentro do sistema inter-estatal e capitalista.
Assim, por exemplo:
i. Com o desconhecimento ou negação de que as moedas soberanas não são apenas um “bem público”. Envolvem relações sociais e de poder entre seus emissores e os seus dententores, entre credores e devedores, entre poupadores e investidores, e assim por diante. E por trás de toda moeda e de todo sistema monetário esconde-se e se reflete sempre uma determinada equação e correlação de poder, nacional ou internacional.
ii. Com o desconhecimento ou negação de que as moedas de referência internacional não são apenas uma escolha dos mercados. São produto de uma longa luta de conquista e dominação de territórios supra-nacionais, e um instrumento estratégico de poder dos seus estados emissores e dos seus capitais financeiros.
iii. Com o desconhecimento ou negação de que neste sistema inter-estatal, a contradição implícita no uso de moedas nacionais como referencia internacional, é uma contradição co-constitutiva e inseparável do próprio sistema. A moeda pode até mudar, mas a regra seguirá sendo a mesma, com o Yuan, o Yen,o Euro, ou o Real, dá no mesmo.
iv. Por fim, com o desconhecimento ou a negação de que faz parte do poder do emissor da “moeda internacional”, transferir os custos de seus ajustes internos, para o resto da economia mundial, e, em particular para sua periferia monetário-financeira. Cabendo aos seus governantes a escolha de suas respostas soberanas.
Não é fácil de pensar um sistema onde não existe nenhuma possibilidade de equilíbrio estável. Mas um estadista não pode desconhecer que dentro do “sistema inter-estatal capitalista”, jamais haverá equilíbrio econômico estável, ou coordenação política permanente.
*José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.