A principal fonte de circulação do dinheiro do crime-negócio no Rio de Janeiro não está na venda de drogas, mas no comércio de armas. A explicação é do sociólogo Dario Sousa e Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Uerj. Na quinta-feira (25), durante a ocupação da Vila Cruzeiro – uma das favelas mais violentas do Rio -, pela polícia, uma imagem chamou a atenção: a fuga de centenas de criminosos carregando fuzis.

A principal fonte de circulação do dinheiro do crime-negócio no Rio de Janeiro não está na venda de drogas, mas no comércio de armas. A explicação é do sociólogo Dario Sousa e Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Uerj. Na quinta-feira (25), durante a ocupação da Vila Cruzeiro – uma das favelas mais violentas do Rio -, pela polícia, uma imagem chamou a atenção: a fuga de centenas de criminosos carregando fuzis.

Sousa destaca que tanta reação à política das Unidades de Policía Pacificadora (UPPs), apontada pela Secretaria de Segurança fluminense como uma das justificativas para a onda de ataques, tem motivo. Segundo ele, as UPPS não se resumem apenas à ocupação territorial, "mas a uma tentativa de bloquear essa série de outras atividades ligadas ao tráfico de drogas, das quais o tráfico depende".

– Se não há a venda de drogas, que determina uma série de outras dinâmicas, e se não há confronto entre as diferentes quadrilhas, não há demanda por arma nova. Então, o advento da UPP interrompe uma série de outras atividades ilegais que participam do crime-negócio.

E acrescenta:

– O lucro obtido através da venda de armas só acontece se há combate entre as facções. Para o traficante de armas, que, frequentemente, é o mesmo fornecedor de drogas,interessa que existam diferentes facções que se digladiem – afirma, dizendo achar improvável que os rivais Comando Vermelho (CV) e Amigos dos Amigos(ADA) articulem uma ação conjunta, conforme vem sendo aventado.

Na análise do sociólogo, a solução para o problema crônico da violência no Rio não passa exclusivamente por uma ação militar.

– A população não pode deixar se enganar por uma possível compreensão de que a favela é o lugar do crime, da falta de ordem, é um lugar que não precisa ou merece ser integrado à vida cidadã e coletiva. É importante que ela esteja ao lado das forças da ordem, das forças da inclusão. Esse é um momento em que tradicionalmente a gente põe para fora os nossos maiores medos e preconceitos. Essa solução só se resolve se superamos esses preconceitos. Seja o preconceito do policial em relação ao morador que ele está atendendo, seja o preconceito daqueles que agora estão encolhidos em suas casas com medo de retomarem suas rotinas nas ruas, seja o preconceito do morador que vive na comunidade em relação ao resto da cidade. O importante é que o Rio de Janeiro costure a cidade partida.

Confira a entrevista.

Terra Magazine – O governo do Rio de Janeiro afirma que as ações criminosas são reação à política de ocupação de territórios do tráfico, por meio das Unidades de Polícia Pacificadora. Fala-se ainda que os episódios de violência seriam motivados pela transferência de líderes do tráfico de drogas para presídios fora do Rio de Janeiro. São, na sua avaliação, explicações plausíveis? Haveria outras motivações?

Dário Sousa e Silva – É plausível, sim, mas não pode ser resumida só a essas duas medidas. A principal fonte de circulação do dinheiro do crime-negócio no Brasil e no Rio de Janeiro, claro, não está na venda de drogas, mas no comércio de armas. O Rio não está na rota internacional do grande tráfico. Ele é um ponto de passagem da droga, que, em parte é produzida no Nordeste, no caso da maconha, e sua grande maioria vem do interior da América do Sul, através do Paraguai, Mato Grosso, São Paulo e toda aquela linha que foi paralisada pelo Primeiro Comando da Capital. Então, esta é a rota do tráfico de drogas. O Brasil e o Rio são muito mais consumidores do que pontos de grande distribuição de drogas.

Você menciona o tráfico de armas. Quem estaria articulando isso? São os próprios traficantes de drogas?

Há sempre associado às drogas uma série de outras atividades ilegais, como a gente tem acompanhado pelos próprios noticiários. O jogo, a prostituição, a cobrança ilegal de tarifas sobre o gás, transportes alternativos. Então, na verdade, o crime-negócio é uma rede que não se resume a apenas aquele ganho com o tráfico de drogas. Uma dinâmica que é interrompida pelo fenômeno dessa política das UPPS. Dessa forma, essa dinâmica não consegue se fechar, se articular. O lucro obtido através da venda de armas só acontece se há combate entre as facções. Para o traficante de armas, que, frequentemente, é o mesmo fornecedor de drogas, interessa que existam diferentes facções que se digladiem.

Se não há a venda de drogas, que determina uma série de outras dinâmicas, mas que não se resume à venda de drogas, e se não há confronto entre as diferentes quadrilhas, não há demanda por arma nova. Então, o advento da UPP interrompe uma série de outras atividades ilegais que participam do crime-negócio. A questão da UPP não se resume a apenas ocupação territorial, mas a uma tentativa de bloquear essa série de outras atividades ligadas ao tráfico de drogas, das quais o tráfico depende.

Há um dado muito significativo nisso. As indústrias russas que produzem AK-47 nunca produziram tanto em tempos de paz. Estes fuzis não estão sendo usados para guerra do Iraque ou do Afeganistão, mas usados nos conflitos na África, no Haiti e nos conflitos gerados pelo crime-negócio na América do Sul. Os atravessadores são ilegais, mas a produção legal dessas armas na Rússia tem aumentando muitíssimo. E não se vive mais o período da Guerra Fria. Acho isso bastante significativo.

E quanto à transferência de presos?

Um outro fator importante, que pode estar associado à essa reação (dos criminosos), é a questão das transferências de presos que ainda comandam algumas comunidades. Imagina que os grandes conflitos recentes havidos dentro das quadrilhas têm decorrido de divergências entre lideranças presas e lideranças soltas que atuam nas comunidades. Essa explicação oficial é plausível, porque a transferência de presos os isola e quebra essa linha de comando das quadrilhas.

Um outro fenômeno que pode estar associado a isso, como eu dizia, é que, recentemente, a Secretaria de Segurança e outros órgãos governamentais divulgaram a suspeita e os processos que estão sendo desenvolvidos no sentido de mapear os bens dessas lideranças encarceradas e que estariam sendo administrados por seus parentes ou os chamados laranjas.Essas lideranças presas têm dinheiro acumulado. O dinheiro está sendo escasso para aquele que está solto na favela. Pode ser uma tentativa desse comando de forçar uma pretensa negociação por parte das forças de segurança pública, temendo que seus subordinados rapinem seus bens que estão disponíveis.

A Secretaria de Seguraça identificou que os ataques estão sendo promovidos pelas facções Amigos dos Amigos (ADA) e por Comando Vermelho (CV). São duas facções tradicionalmente rivais. Como o senhor avalia esta articulação?

É possível que haja ordens dos líderes de cada facção, mas o resultado disso tem sido de fato, e também é de reconhecimento da Secretaria de Segurança, que essas ações são muito desarticuladas, não seguem nenhum padrão. Elas estão ocorrendo em diferentes áreas justamente para criar na população esse clima de insegurança e, talvez, a ideia de que potencialmente seria melhor tirar as UPPs das favelas, porque "o lugar do tráfico é em cima do morro e não queimando carro na rua". Na verdade há uma pressão para a politização do problema e para tentar forçar uma opinião pública amedrontada a uma atitude que lhes seria favorável. Agora, no que se refere a uma ação tática, uma ação armada, coordenada por diferentes comandos, é muitíssimo difícil.

Por quê?

É preciso ver a própria origem desses comandos. Tradicionalmente, havia o Comando Vermelho, o Terceiro Comando, o ADA. Agora, há, pelo menos, mais dois comandos no Rio: o Comando Vermelho Jovem e o Terceiro Comando Puro (TCP). Esses novos comandos que apareceram derivaram das divergências entre as lideranças aprisionadas e as lideranças fora das cadeias. Então, imagine o seguinte: você é traficante e provavelmente um companheiro seu foi morto por outra quadrilha e jogado como comida aos porcos. Uma semana depois, você vai estar lutando ao lado desses? É muito pouco plausível.

Essa unificação requereria um nível de racionalidade desses agentes que eles absolutamente não têm, mas não têm por falta de capacidade intelectual. Não têm porque isso não é sua prática, não é a maneira como eles se colocam nesses confrontos. São confrontos muito brutais, sem meias medidas, sempre muito contundentes. Essas pessoas não lutam lado a lado de uma hora para outra.

Então, o mais provável é que os ataques sejam promovidos pelas facções, mas não sejam orquestrados?

É possível que partam ordens para os ataques em cada uma das facções. O que eu digo que daí a supor que haverá uma ação armada, unindo bandidos de facções diferentes, acho muito difícil.

Imagina, entre ADA e Comando Vermelho, a diferença e o enfrentamento é tamanho que eles se mataram há cinco, seis anos nos presídios de Bangu. Agora, é importante que a polícia não respeite a diferença entre eles. Têm que agir igualmente, com contundência, seja qual for a facção criminosa. Não se pode negociar.

Com as UPPS, com esse combate mais efetivo, o tráfico de drogas está sofrendo um duro golpe. Essa resposta do governo estadual de intensificar as operações é uma resposta apropriada? E as milícias não podem sair favorecidas?

Muito dificilmente, porque, acima da intensidade e da quantidade de armamento, um recurso político importante é o tempo de resposta. E, nesse ponto, o governo leva vantagem, porque apresentou uma resposta imediata. Isso ganha a população do ponto de vista da confiança que passa a ser depositada em que a agência legal de segurança é poderosa o suficente para manter a ordem. As milícias ganham espaço à medida em que essas áreas periféricas da cidade estão desprovidas de serviços e de atenções governamentais. Recentemente, toda essa periferia deseja ter uma UPP, porque, junto com essa UPP vêm projetos sociais,vêm recursos de cidadania, vêm a valorização daquela região.

Mas as UPPS estão longe de ser unanimidade. Há comunidades, como a do Morro Santa Marta, que reclamam da truculência policial. Inclusive, foi feita lá até uma cartilha sobre como se defender da violência da polícia.

É importante que haja a visibilidade desses problemas, porque essa é uma experiência muito recente. Imagina que o policial militar, além de suas atribuições, precisa se requalificar para agir. Há uma mudança na própria cultura da corporação policial no sentido de que outras atribuições são necessárias para esse profissional. Pense também do ponto de vista do imaginário do policial militar, aquela área, que para ele representava risco de morrer, agora é o seu local de trabalho. Aquela população que ele possivelmente antipatizava, porque identificava, às vezes preconceituosamente, que era colaboradora do bandido, agora é a que ele tem que servir. Então, existe um período de adaptação muito tenso, muito delicado, mas cuja experiência vale a pena ser encampada. O importante é que se há problemas na operação das UPPs, esses problemas estão visíveis. Há pouco tempo, o que acontecia no morro ficava no morro.

O problema da segurança pública no Rio é altamente complexo e crônico. É possível reverter essa situação? Estou falando em mudanças a longo prazo. As soluções que têm sido encontradas são as mais adequadas?

Esta evidentemente é uma pergunta muito pertinente. A gente vê que há um emaranhado de causas, de condicionantes, de variáveis a serem atendidas. O importante é que a opinião pública, os órgão de imprensa, os intelectuais já estão convencidos de que a solução não é exclusivamente uma ação militar. Ela opera em diferentes áreas, como no combate à corrupção, como na politização dos problemas. Essa mudança de cenário pode ser significativa, não completa, em um prazo mais curto. Menos de 10 anos, imagino.

Essa pergunta que você me fez se a situação crônica do Rio pode se reverter é uma pergunta que provavelmente as autoridades de Chicago e a imprensa dos anos 30 podem ter se feito, numa época em que o caos se implantou, parecendo que o crime era, de fato, quem mandava naquele espaço. E essa situação efetivamente pôde ser revertida. A experiência colombiana também com grandes recuperações de trajetória pode ser uma referência significativa para nós. O importante é que a solução não se resume à ocupação territorial nem à ação armada.

A solução passa por onde?

A população não pode deixar se enganar por uma possível compreensão de que a favela é o lugar do crime, da falta de ordem, é um lugar que não precisa ou merece ser integrado à vida cidadã e coletiva. É importante que ela esteja ao lado das forças da ordem, das forças da inclusão. Esse é um momento em que tradicionalmente a gente põe para fora os nossos maiores medos e preconceitos. Essa solução só se resolve se superamos esses preconceitos. Seja o preconceito do policial em relação ao morador que ele está atendendo, seja o preconceito daqueles que agora estão encolhidos em suas casas com medo de retomarem suas rotinas nas ruas, seja o preconceito do morador que vive na comunidade em relação ao resto da cidade. O importante é que o Rio de Janeiro costure a cidade partida.