Entrevista – Tânia Bacelar: “Estamos distribuindo renda com uma mão e concentrando com a outra”
A eleição de Dilma suscitou duas questões importantes que precisam de reflexão e discussão no Brasil: o movimento conservador que levantou bandeiras preconceituosas durante as eleições movendo votos consideráveis e, também, o crescimento da discussão política que envolve a atuação do nordeste, antes esquecido e renegado no ‘canto do país’. “O nordeste tem 28% da população total do Brasil, mas tem metade dos que ganham salário mínimo no país. Nesse sentido, o nordeste foi bastante beneficiado por essa política. Aumento de renda significa aumento de consumo e o aumento de consumo destacou a economia do Brasil, mas, particularmente, do nordeste”, relatou a professora e economist Tânia Bacelar de Araújo durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone.
A economista analisou as principais transformações que o nordeste viveu nos oito anos de governo Lula e refletiu sobre o protagonismo que a região vem explorando e o preconceito que cresce contra os nordestinos no país. Além disso, ela também falou sobre suas expectativas em relação ao governo Dilma. “Para as mulheres, a chegada de Dilma é simbólica. As mulheres, até 1930, sequer votavam. A taxa de analfabetismo feminina até metade de século XX era o dobro da masculina. Então, as mulheres, no século XX, fizeram um esforço grande de se qualificar porque foi o canal de entrada na vida pública que nós escolhemos”, manifestou.
Tânia Bacelar de Araújo é graduada em Ciências Sociais pela Faculdade Frassinetti do Recife e em Ciências Sociais pela Universidade Católica de Pernambuco. Especializou-se em Análise Regional e Organização do Espaço pela Université de Paris I – Pantheon Sorbonne (França), onde também realizou o doutorado na mesma área. Desde 1978 é professora na Universidade Federal de Pernambuco.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A senhora aponta que o crescimento do emprego formal é um dos aspectos que atestam a aprovação do Governo Lula em todos os Estados e nas diversas camadas da sociedade nordestina. Quais as principais transformações que o nordeste viveu nos oito anos de governo Lula?
Tânia Bacelar de Araújo – Essa questão do emprego foi percebida pelo Brasil todo. Foram milhões de empregos formais criados no governo Lula. A tendência anterior era de criar pouco emprego e a maior parte era informal. Nesse período, essa ideia se inverteu. O nordeste acompanhou o Brasil neste segmento. Este crescimento está voltado para o mercado de consumo de massa que demanda bens. A construção civil foi uma das áreas que mais criou empregos, dinamizou o consumo do comércio, que também criou muito emprego. Foram, portanto, tendências nacionais que chegaram ao nordeste.
Na minha leitura, o governo atuou primeiro com políticas que dinamizaram a renda. Ele atuou mais pelo lado da demanda do que da oferta, como era antes comum na área de políticas públicas. O governo adotou políticas que mexeram com a demanda porque mexeram com a renda. As políticas sociais, por exemplo, melhoraram a vida das pessoas. O Bolsa Família é uma delas. Aí o Nordeste foi beneficiado porque 55% das pessoas que ganham até um quarto do salário mínimo, que é o público alvo deste programa , estão nesta região. Já 25% estão no Sudeste. A pobreza extrema do Brasil está mais presente nestas regiões. Ou ela é a pobreza rural do Nordeste, principalmente, ou ela é uma pobreza das periferias das grandes cidades do nordeste, sudeste, sul… Então, quando observamos o Bolsa Família, percebemos que duas regiões se beneficiaram mais: o Nordeste e o Sudeste.
A melhoria no salário mínimo foi outra política que mexeu com a renda das pessoas. O governo Lula aumentou consideravelmente o salário mínimo em termos reais. O nordeste tem 28% da população total do Brasil, mas tem metade dos que ganham salário mínimo no país. Nesse sentido, o nordeste foi bastante beneficiado por essa política. Aumento de renda significa aumento de consumo e o aumento de consumo destacou a economia do Brasil, mas, particularmente, do Nordeste.
Por que o nordeste, quando se torna um sujeito de destaque, reacende o preconceito de parte de nossas elites e da grande mídia brasileira?
Porque no século XX o Nordeste perdeu o trem da industrialização brasileira e empobreceu. O Brasil virou um grande país industrial, com mais de 80% das indústrias no sudeste. No entanto, o nordeste tem quase 30% da população brasileira e no século XX deixou de ser uma região com forte dinamismo econômico e, assim, deixou de receber investimentos importantes. Por isso, o preconceito contra o nordestino é um preconceito contra os pobres, é um preconceito de parte da elite.
Como não havia investimentos no nordeste e esta é uma região altamente povoada, os nordestinos, sem oportunidades de sobrevivência na sua região, migraram para outras regiões do país. Como os níveis educacionais do nordeste são mais baixos em comparação com o nível nacional, quando eles chegam às outras regiões, se inserem no mercado de trabalho de pouca qualificação. Então, o preconceito é de classes.
Quais são suas perspectivas em relação ao novo governo que terá Dilma Rousseff como presidente?
Com relação ao Brasil, ela pode avançar em relação ao que foi feito no último período. Ela vai receber o Brasil melhor do que Lula recebeu. Ela vai receber um Congresso mais favorável e, por isso, vai ter uma condição inicial bastante favorável em comparação ao que o Lula teve.
Tem uma condição desfavorável que é o ambiente mundial. O presidente Lula recebeu o país pior, mas o contexto internacional era melhor. No entanto, Dilma pode dar continuidade a mudanças importantes que o Brasil está precisando e pode fazer escolhas importantes. O Brasil é um país que ainda tem a possibilidade de fazer escolhas estratégicas importantes e espero que ela faça as boas.
Cerca 80% da dívida pública brasileira estão em mãos de algo como 20 mil pessoas. O que isso significa para a economia brasileira?
A dívida pública é muito bem remunerada porque o Brasil tem uma taxa de juros muito elevada. Significa que os muito ricos, que são os aplicadores na dívida pública, são tratados “a pão de ló”, o que estimula a concentração de renda. Ou seja, estamos distribuindo renda com uma mão e concentrando com a outra.
Dilma tem condições de diminuir a desigualdade e erradicar a miséria no Brasil como assinala em seus discursos?
Esse foi o primeiro compromisso dela. Depois que ela falou das mulheres no primeiro discurso, em sua segunda frase ela já falou que ia extinguir a miséria extrema no Brasil. Nós reduzimos à metade a miséria extrema no Brasil nos últimos anos, por isso ela tem condições de reduzir a outra metade. Não é um objetivo inalcançável para um país com as condições atuais e com o potencial que o Brasil tem. Inaceitável é manter a miséria extrema num país com o perfil do nosso. Ela está prometendo o que pode cumprir, portanto.
Para as mulheres, a chegada de Dilma é simbólica. As mulheres, até 1930, sequer votavam. A taxa de analfabetismo feminina até metade de século XX era o dobro da masculina. Então, as mulheres, no século XX, fizeram um esforço grande de se qualificar porque foi o canal de entrada na vida pública que nós escolhemos. Nós queríamos chegar à vida pública, porque as mulheres estavam segregadas à vida privada, e construímos essa trajetória de chegar lá através da qualificação. Hoje, a taxa de analfabetismo entre mulheres e homens é igual. O número médio de anos de estudo da população feminina é superior à masculina. Há mais meninas do que rapazes nas universidades e tem mais doutoras do que doutores no país. Então, você pode ver o esforço que a população feminina fez para se qualificar. Até 1930 nós sequer tínhamos direito ao voto. Então, num país como o nosso, ter uma mulher presidente é um fato positivo. Eu espero o mesmo que Dilma espera: que isso se torne um fato tão comum que nós não precisemos comemorar.
Agora, se vai ser diferente… Veja, todo mundo sabe que a mulher tem um jeito diferente de ver o mundo em relação ao homem. Então, certamente ela vai marcar essa diferença ao comandar o país. Nosso olhar para o mundo não é o olhar masculino. Ainda bem, o mundo fica mais bonito assim.
Como a senhora entende a ideia de lulismo?
Eu não compreendi bem esse conceito, o que é ou deixa de ser o lulismo. Existe, para mim, um presidente com uma trajetória e características próprias, que pegou o país num determinado momento e conduziu bem em relação às condições em que ele encontrou o Brasil e com as condições que vai deixar. Tanto que ele tem uma aprovação recorde. Lulismo, para mim, portanto, acaba com o fim do mandato de Lula. Existe, então, Lula, um presidente com características peculiares, que veio do povo, teve uma vida difícil e conseguiu se tornar um grande líder. Nesse sentido, isso é positivo para o país. A Dilma tem outra trajetória e espero, ainda assim, que ela conduza o país bem assim como Lula fez.
Um movimento bastante conservador se apresentou nessas eleições colocando temas em debate de forma, às vezes, muito reacionárias. Como a senhora avalia o surgimento desse movimento?
Tem um Brasil arcaico, inegavelmente. O Brasil se transformou muito rápido e, ainda assim, sua elite arcaica continua existindo e de forma latente. Este movimento está, gradualmente, diminuindo, o que é positivo para o país, mas ainda existe. O que aconteceu nesta eleição? Serra, para crescer, se agarrou com esse Brasil arcaico. O espaço que ele teve para crescer foi entre os conservadores. Infelizmente, ele fez essa escolha estratégia de defender temas conservadores. Ele, assim, prestou um desserviço para o país. Até cresceu no número de votos, mas saiu menor do que entrou na campanha. Esse Brasil, portanto, é real, por exemplo, ainda existe escravidão no país. O Brasil não é só maravilha.
Eu li um artigo muito interessante mostrando que os marqueteiros também tiveram uma hegemonia muito grande na construção do processo eleitoral. O marqueteiro de Serra, por exemplo, copiou o que tinha de pior na campanha estadunidense e trouxe para o Brasil, despertando sentimentos que não são nossos e são amplamente minoritários na sociedade brasileira. Um exemplo disso é o preconceito contra os nordestinos.