Muito além do narcotráfico
de Tapachula e Cuautitlán Izcalli (México), para o Desinformémonos.org
A chacina que vitimou 72 imigrantes em Tamaulipas, no norte do México, no final de agosto, chamou a atenção do mundo sobre uma realidade assustadora. Um quadro generalizado de violência espreita os imigrantes que tentam cruzar o país rumo ao sonho dourado de chegar aos Estados Unidos. Das autoridades federais a funcionários locais, do crime organizado ao cidadão comum, todos querem tirar algum tipo de proveito da fragilidade dessas pessoas, que viajam sem documento e proteção legal.
Os casos de violência começam no sul do país, tão logo se atravessa a fronteira em lugares como o rio Suchiate, cuja travessia de balsa custa 2 dólares sem que ninguém lhe peça os documentos – nem mesmo as autoridades mexicanas que monitoram o lugar a partir de uma ponte próxima. Perto dali, em Tapachula, no estado de Chiapas, na fronteira com a Guatemala, está uma Casa do Migrante que integra a rede mantida pela congregação católica dos Scalabrinianos. Reunidos na rua em frente ao albergue, dezenas de hondurenhos e salvadorenhos, principalmente, esperam pelo momento de seguir viagem.
Cigarros, refrigerantes, comida e histórias, especialmente muitas histórias, circulam entre os presentes. A explicação para estar ali é que nunca muda. “Estou aqui porque eu quero ir à América”, é a resposta que todos têm na ponta da língua. Na roda está Francisco*, que vem de Honduras. Ele foi assaltado no caminho e, agora, anda “conseguindo algum para poder seguir viagem”. Os assaltantes, explica ele, estavam vestidos com roupas civis e lhe tiraram absolutamente todos os bens, quando ele estava no trem: “Tinham facões. Nos tiraram do trem e levaram tudo. Quem resistia, apanhava”. O hondurenho teve de voltar para Tapachula, mas já planeja retomar a viagem assim que “resolver o problema da imigração”.
Caso de polícia
O salvadorenho Ernesto também está ali. “Eles te assaltam exatamente quando você deixa seu país. Logo na fronteira com a Guatemala, a polícia já lhe pede dinheiro. Depois, há os ladrões que te tomam o dinheiro da passagem que você demorou tanto tempo para juntar”, comenta. Ele já esteve nos EUA trabalhando como empregado doméstico em Minnesota, estado no norte dos país. “A ‘migra’ te pega na empresa onde você trabalha. Já me levaram três vezes, e tive de voltar para meu país”, conta. ‘Migra’ é o apelido que os imigrantes dão às polícias migratórias. A última vez que Ernesto deixou El Salvador foi há oito meses. Ele conseguiu chegar à fronteira norte do México: “Depois, fui pego pela migração mexicana, que me prendeu. Minha família diz que eu sou louco, mas eu tenho que continuar tentando”.
Alberto, também de Honduras, juntou-se a outros dois compatriotas para facilitar a viagem: “Você tem que caminhar de uma aldeia a outra, conseguindo algum trabalho, e seguir pelas montanhas, evitando os postos de fiscalização. É um longo caminho”. “Ninguém lhe dá de graça a passagem, você tem que ter até para pagar as kombis. Às vezes, é o mesmo motorista que te assalta ou te denuncia para a migração. Você pode até tentar se passar por mexicano, mas, na hora em que lhe pedem o documento, aí já era”.
O hondurenho Adolfo, 30 anos, acaba de chegar à cidade. Um dia antes de sua chegada, foi assaltado, exatamente na travessia entre Guatemala e México: “Invadiram a balsa. Levaram tudo que eu tinha”. Não é sua primeira viagem, esclarece. Em 1997, ele viu um assaltante tentando agarrar a irmã de um jovem que viajava próximo a ele. A menina resistiu, e o homem disparou a escopeta que carregava. Ela morreu na hora. O irmão reagiu e acabou sendo morto também. “Isso foi um pouco antes de Arriaga, aqui em Chiapas”. O rosto do narrador fica triste por um momento. “Que ninguém olhe para trás, nos disseram. Ninguém se virou, e os 11 que íamos seguimos em frente, porque o trem estava prestes a sair para o norte”.
Travessia
Luis, de El Salvador, lembra a primeira vez que fez a travessia para o México. “Eu não sabia de nada, e o cara que me conduzia na câmara [a jangada feita de câmaras de pneus] me ameaçou. ‘Está vendo aquele ali do outro lado? Se você não me pagar tanto, te entrego para ele’”. Na fronteira norte, continua recordando, é ainda pior. Uma vez, tentou a travessia em Nuevo Laredo, mas, lembra-se, a coisa ali é complicada, porque é região dominada pelos Zetas, o conhecido cartel mexicano que é o principal suspeito da chacina ocorrida em agosto. “Eles compraram todos ali na fronteira. Ou melhor, se apossaram de tudo, têm até cabines e cobram 2 mil pesos [155 dólares] pela passagem”. Roger Mitchell diz: “A ‘migra’ mexicana aqui é um pouco lerda. O bom é que não pedem muito dinheiro”. “A polícia municipal, sim, esta pede muito. Quando me pararam, da outra vez, me surraram para que eu desse dinheiro. Depois, me prenderam por duas horas”.
Luis, 32 anos, é pescador. Conta que saiu de El Salvador pela falta de oportunidades: “Eu não podia manter a minha empresa, pois é dada prioridade a multinacionais estrangeiras”. “Você acredita que El Salvador melhorou quando implantaram o dólar por lá [em 2001]? Isso não era futuro para nós, era futuro para os Estados Unidos. O custo da cesta básica cresceu e os salários permaneceram os mesmos”.
A política estadunidense é assunto que os imigrantes como Luis acompanham com interesse. Para ele, com Obama, nada melhorou: “Se tudo fosse aberto, como diz o Nafta [da sigla em inglês para o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, do qual fazem parte EUA, México e Canadá], poderíamos ir e vir, sem problema. Mas não é assim. Acho que os Estados Unidos paga ao México uma certa quantia de dinheiro por cada migrante que prendem”. “Se fizerem a reforma migratória [promessa de campanha de Obama], será para o benefício dos que já estão lá, não para nós que ainda estamos do lado de cá”.
Clima de terror
Juan, 23 anos, de Honduras, encontramos já bem mais ao norte, em Lechería, estação de trem no município de Cuautitlán Izcalli, região metropolitana da Cidade do México, que é famoso ponto de encontro de imigrantes e coiotes-guias que os primeiros contratam para ser levados aos EUA, mas que não oferecem garantia alguma de sucesso na viagem. Lá, o ânimo dos imigrantes é maior porque, quando se chega à esse ponto, já se pensa ter vencido a maior parte da arriscada viagem que fazem agarrados a trens cargueiros.
“Em Honduras, sou agricultor, mas não temos terra lá, temos que arrendar. Saí com um irmão para trabalhar em Chiapas, mas não conseguimos trabalho e ficamos sem dinheiro. Daí, pensamos em tentar a sorte mais ao norte”, conta ele. Juan saiu há 16 dias de seu país, e há dez tomou o trem em Chiapas, na fronteira sul do México. “A partir daí, você começa a ouvir histórias de assaltos. No México, todo mundo te assalta. A polícia, os próprios camponeses, que são tão pobres como a gente, os vigias dos trens…”, conta ele.
Em Lechería, o agricultor se sente otimista: “Parece que já passou o mais perigoso. Há muitos que ficam no caminho. São assaltados, mortos, ou caem dos trens. Eu tenho um irmão em Houston [Texas]. Ele trabalha de jardineiro. Não tenho ideia de quanto tempo mais me falta para chegar. Calculo que uns 15 dias. Em geral, mais ou menos, a viagem tarda um mês”.
O guatemalteco Pablo descreve o clima de terror que envolve as viagens: “Por todo o caminho, você vai escutando os rumores sobre o perigo. Ouve-se de tudo. Que os Zetas vão te sequestrar. Que já pegaram um e levaram a um quarto. Que, se te pegam, te prendem e te pedem um número telefônico de um familiar nos EUA ou em seu país de origem para tirar dinheiro da família. Se não lhe mandam o dinheiro, no mínimo, você leva uma surra. Isso se não te matarem. E ainda tem os assaltantes: tiram tudo o que você tiver. Mas não trazemos quase nada conosco. Costumamos viajar sem dinheiro e vamos pedindo às pessoas pelo caminho”. Para que suportar tudo isso? “Alguns dizem que está dura a situação nos EUA. Mas lá é que está o dinheiro. É melhor aguentar os maus-tratos para poder viver. Que importa ser bem tratado, se você não tiver nada no bolso?”.
O hondurenho Danilo tem só 18 anos: “Não há dúvida de que a migração mexicana é mais dura que a gringa [dos EUA]. A mexicana é mais corrupta. Te pegam e te soltam se você der dinheiro. Se não tiver, te batem e tiram o que você tiver. À migração mexicana, não importa te deportar, e sim tirar o que você tiver. Há muita discriminação no México contra todos os centro-americanos. Sempre estão perseguindo você. A ‘migra’ te faz perguntas muito bobas. Pedem para você cantar o hino mexicano, perguntam quantas tunas [frutas do cacto] tem o nopal [cacto] desenhado na bandeira nacional do México. Ainda que você diga, eles te batem e te maltratam. Aqui em Lechería, já estamos mais para lá do que para cá, mas ainda não sabemos se vamos chegar. Daqui em diante, os coiotes te cobram 1.200 dólares”.
O guatemalteco Aurelio tem 21 anos já está na segunda tentativa de cruzar a fronteira: “Na primeira, o trem tombou. Caí ao lado do trilho, e tive muita sorte, porque consegui pegar de novo o trem, só fiquei com uns raspões. Mas conheço gente que ficou sem as pernas. Não recomendo essa viagem a ninguém, mas vou seguir meu sonho. É minha vida e estou decidido”.
Leis
Muito se falou, nos últimos meses, da ultrarrígida lei de imigração do estado do Arizona, que abriu as portas para detenções injustificadas de cidadãos suspeitos, mas entidades de direitos humanos apontam a falta de discussão sobre casos de detenção de mexicanos por sua aparência. As organizações têm denunciado casos como o de três cidadãos detidos no início do ano pela ‘migra’ em Tapachula simplesmente porque não apresentaram seus documentos e por terem modos e sotaque de guatemaltecos, na visão dos agentes.
O espanhol García-Ruiz Rubio, que trabalha como voluntário em centros de assistência aos imigrantes em Chiapas, critica o papel do México diante do debate sobre as leis de imigração. “Fazem uma lei como a do Arizona e aparecem os políticos, artistas, para assinar manifestos, publicar artigos contra… enchem a boca ao falar de direitos humanos. Mas o México é um país muito racista com os imigrantes centro-americanos”, diz ele. Em seu trabalho, ele testemunha a exploração da mão-de-obra barata dos imigrantes. Caminhonetes passam em frente aos albergues que acolhem essas pessoas para levá-los todos os dias: “Trabalham de pedreiros, carregadores ou na colheita de frutas, ganhando diárias. Muitas vezes, nem são pagos”.
Fermina Rodríguez Velasco, coordenadora do Centro de Direitos Humanos Fray Matías de Córdova (CDHFMC), identifica as diferenças entre as fronteiras do sul e a do norte do México: “Os casos de violação dos direitos humanos que ocorrem no sul são pouco conhecidos: aqui morrem como no norte, só que, aqui, os enterram em valas comuns. Morrem na mão de assaltantes, delinquentes, e ninguém diz nada”.
*a pedido dos entrevistados, os nomes dos imigrantes são todos fictícios