O espanhol Raul Mateos Castell é livreiro e editor, e foi o criador, nos anos 1970, da Livraria e Editora Ciências Humanas. A livraria, na rua 7 de Abril, foi uma das principais de São Paulo na época, no que diz respeito a livros políticos e acadêmicos de ciências humanas. A editora mantinha vínculos com o PCB de São Paulo e publicou coleções de textos clássicos do pensamento socialista, obras de referência do eurocomunismo, obras sobre ciências humanas, história do Brasil, movimento operário brasileiro, além da revista Temas, de orientação marxista.

Raul veio com 15 anos para Porto Alegre, e depois para São Paulo, onde ancorou. Quem já frequentou o prédio dos cursos de Ciências Sociais e Filosofia da USP, na Cidade Universitária, em São Paulo, certamente já se deparou com a banca de livros do Raul, que está lá há mais de 30 anos.

Pois bem, em 1974, quando Raul ainda não havia criado a editora, ou seja, atuava apenas como livreiro, ocorreu um episódio relacionado à importação de livros que ilumina alguns pontos importantes de como era viver numa ditadura no Brasil e como essa situação afetava a vida cultural do país.

Com a censura política existente, uma das alternativas para ter acesso a certos tipos de livros era a importação, principalmente da França e de países de língua espanhola, como México e Argentina. Raul vendia em sua loja livros importados, além de os distribuir para outras livrarias. Os livros importados eram basicamente da área de política, do pensamento de esquerda. “Começamos a importar aqueles livros que a maioria não tinha coragem de importar, Marx, Lenin, Trotski, essas coisas”, recorda Raul.

Livros retidos nos Correios
No primeiro trimestre de 1974, foi retida pelos Correios uma remessa grande de livros de cunho político importados por Raul, cerca de 30 ou 40 caixas. O despachante que cuidava da importação  informou que pessoas do “serviço secreto do Exército” estavam por trás do fato.

Após esperar algum tempo pela liberação dos livros, Raul resolveu verificar pessoalmente o que estava acontecendo. Para isso, contou com a ajuda do cientista político e jornalista Oliveiros Ferreira, professor da USP e alto funcionário do jornal O Estado de S. Paulo – um conservador ilustrado e culto, com ligações com o governo militar e relações na esquerda. Oliveiros recomendou a Raul que procurasse o superintendente do Departamento da Polícia Federal em São Paulo, responsável pela censura aos livros.

Raul foi conversar com o sujeito e explicou o que estava acontecendo. “Quero falar com a Censura ou com quem for o responsável para ter uma orientação, saber quais são os autores e livros proibidos, quais os assuntos vetados etc.”, explicou Raul. O chefe da Censura se mostrou muito surpreso com a informação sobre a retenção dos livros pelos Correios, o que no primeiro momento pareceu a Raul até uma ironia do funcionário, mas depois ele percebeu que não era. De acordo com o superintendente, não havia ninguém nos Correios encarregado de fazer censura, por isso ele pediu que o livreiro fizesse uma carta narrando os detalhes do caso e a protocolasse.

Raul fez a carta em maio de 1974 e a protocolou na Polícia Federal de São Paulo. “Fiquei aguardando notícias e passei a ir semanalmente lá para saber se havia alguma novidade. De tanto ir lá e bater papo com a secretária, ela acabou me contando que a minha carta tinha causado certa celeuma, que tinha sido enviada para Brasília e que o diretor dos Correios tinha sido convocado para dar explicações”, lembra Raul.

Logo, a Polícia Federal, responsável pela censura, descobriu que alguém nos Correios estava invadindo a sua esfera de atuação e não gostou nada disso. Ao que tudo indica era gente ligada ao Exército que atuava nos Correios. Iniciou-se um conflito entre setores governamentais e militares em função do desrespeito às esferas de ação das diferentes áreas. Para eles, a questão não se relacionava à arbitrariedade que representava a apreensão dos livros e a censura, mas sim à disputa de poder que o caso levantava.

Sem perspectivas de ver a questão resolvida pela Polícia Federal, Raul foi aos Correios, onde foi atendido pelo diretor da empresa em São Paulo. Este, já conhecedor do caso, disse a Raul: “Saiba o senhor que não é só a Polícia Federal que é responsável pela segurança nacional. Eu também sou responsável e o senhor também é”.

Raul percebeu, então, que o problema que estava enfrentando em relação aos livros se inseria em um quadro bem mais amplo do que a princípio imaginara. “Percebi que o problema que eu tinha com a censura era reflexo da luta que se travava dentro da chamada ‘comunidade de informações’ da ditadura. Fiquei satisfeito por ter contribuído para tumultuar essa comunidade de informações mas, concretamente, perdi todos os livros”.

Oficialmente, não houve nenhuma resposta à carta protocolada por Raul na Polícia Federal.

Nessa ocasião, Raul Mateos Castell era membro da Câmara Brasileira do Livro (CBL). E, como associado, expôs em uma reunião a questão dos livros que havia importado e estavam retidos nos Correios, solicitando à CBL que se pronunciasse sobre o caso.

Conta Raul: “Então, o secretário da Câmara disse que já conhecia o meu caso, o que achei estranho, pois era a primeira vez que eu o apresentava ali. Ele perguntou se eu importava livros de Cuba e da União Soviética. Respondi que desses países ainda não importava, só importava da França, da Espanha, da Argentina, do México, da Inglaterra. No final, ele me disse que meu caso era isolado, que só eu tinha este tipo de problema. Eu ainda contra-argumentei, citando o caso da Livraria Ler, do Ernesto Zahar, que também já havia tido problemas com a importação de livros, mas ele e a CBL não mudaram de posição. Na saída dessa reunião, perguntei ao secretário da CBL se ele trabalhava na Polícia Federal, e ele respondeu tranquilamente que sim, o que explicava como já conhecia o meu caso. Depois disso me desliguei da CBL”.

Sequestro
Mas a história não acabou aí. Cerca de um mês após o final do caso com a censura e os Correios, em meados de 1974, Raul foi sequestrado em sua casa. Às cinco e meia da manhã dois homens, que se identificaram como agentes do Serviço Secreto do Exército, bateram na porta de sua residência dizendo que ele seria levado para um quartel para prestar alguns esclarecimentos, e o colocaram numa veraneio, encapuzado. “Durante todo o percurso me perguntava o que seria que aqueles beleguins da ditadura queriam comigo. Seria devido à minha rusga com o diretor dos Correios? Ou teriam descoberto minhas atividades pregressas ou meus ‘bicos’ para organizações da luta armada?”, recorda Raul.

Ao chegar ao local onde seria interrogado, a pergunta que lhe faziam era: “Vá logo falando. Qual é a sua organização?”. A resposta de Raul era: “Minha organização é a Livraria Ciências Humanas”. Depois de mais perguntas, às quais Raul respondeu sempre negando ligações com organizações de esquerda, ele foi recolhido a uma cela, onde teve de ficar nu e foi amarrado a uma cadeira, “misto de cadeira elétrica e cadeira de barbeiro”.

Depois de algumas horas dessa sessão na cadeira, Raul foi posto numa sala com a luz permanentemente acesa, para que perdesse a noção do tempo – um tipo de tortura psicológica. Ele ficou detido três dias nesta situação, tempo durante o qual sua esposa foi algumas vezes à porta do quartel com a filha do casal para tentar obter notícias dele.

Depois que saiu da prisão, Raul verificou que esteve detido no Destacamento de Operações Internas-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) da rua Tutóia, no bairro do Ibirapuera, em São Paulo, centro de torturas em que pouco mais de um ano após este episódio seria assassinado o jornalista Vladimir Herzog. Raul nunca recebeu qualquer explicação sobre esta prisão e a única coisa que lhe foi dita por seus sequestradores é que a detenção havia ocorrido em função de uma denúncia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde Raul estudara anos antes.

Fontes
SILVA, Flamarion Maués P. Editoras de oposição no período da abertura (1974-1985): Negócio e política. Dissertação de mestrado, Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), 2006.
Manuscrito parcial das memórias de Raul Mateos Castell, inédito.
Entrevista com Raul Mateos Castell em 4 de julho de 2002.
Entrevista com Raul Mateos Castell em 30 de junho de 2005.

Flamarion Maués é editor de livros e historiador.