As transformações pelas quais passou o Brasil nos últimos sete anos foram tema de debate promovido em São Paulo pela fundações Perseu Abramo e Jean Jaurès, no evento Brasil 2003-2010: transformações, perspectivas e desafios para o próximo período. Para falar sobre O projeto nacional e a política externa brasileira, a mesa contou com a participação de Valter Pomar (membro da Comissão do Programa de Governo do PT), Roberto Amaral (vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro/PSB), Nelson Barbosa Filho (secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda), Cauby Monteiro (professor de Relações Internacionais e Ciência Política da Universidade Federal do Pará), e Gérard Fuchs (diretor do Departamento de Cooperação Internacional da Fondation Jean Jaurès).

O debate teve início com Valter Pomar, que falou sobre algumas das iniciativas bem sucedidas do governo Lula em seus dois períodos. Pomar colocou em pauta temas sobre os quais, acredita, deveria se debruçar um novo mandato petista. Entre as iniciativas, citou a necessidade de um diálogo com diferentes nações, o fortalecimento da presença brasileira no Haiti, e o esforço pela democratização da ONU (especialmente no que diz respeito ao Conselho de Segurança), entre outras.

Valter Pomar enfatizou a importância da defesa dos interesses do Brasil, sem, no entanto, o apelo a práticas imperialistas. É preciso que o país seja hábil no convívio soberano com o que seria, hoje, um grupo de potências declinantes – embora ainda poderosas. Ele afirmou, ainda, não acreditar que a situação internacional vivida nos últimos oito anos vá prevalecer. O cenário global, pensa Pomar, deverá se complicar no futuro, tornando mais difícil e perigosa a execução de uma política externa nos moldes atuais.

Ele alerta também para o fato de as diretrizes do governo brasileiro superestimarem uma suposta boa vontade das grandes potências, o que, com a chegada de Barack Obama ao governo estadunidense, teria se intensificado – e gerado expectativa de melhoras nas relações entre EUA e América Latina. Pomar cita como exemplos o golpe em Honduras, as bases militares dos Estados Unidos na Colombia, e o pedido dos EUA para que governo brasileiro interviesse no Irã. “Para uma nova ordem internacional, é necessária a adoção de outra moeda internacional que não seja o dólar”, afirmou.

“Executamos uma política externa que está além da capacidade interna. Não há cultura de sentimento latinoamericano, de pertencimento à América Latina”, disse Pomar. E alerta: é preciso ver o que está acontecendo no mundo. Ele acredita que os próximos quatro anos verão o estímulo, pelo stablishment global, de uma corrida militar, com conflitos se espalhando pelo planeta.

Além disso, há, segundo ele, uma contraofensiva da direita que pode ser vista na reação à crise econômica. “Seria possível pedir à Alemanha o que se está exigindo da Grécia? São governos socialistas que estão no poder na Grécia e na Espanha”, observou, e traçou um paralelo entre o que ocorre na UE e na América Latina, lembrando dos processos políticos e eleitorais no Chile e na Colômbia. 

 


Foto: Eduardo Fahl

O debate prosseguiu com o vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro, Roberto Amaral, que fez uma retrospectiva histórica do conservadorismo da imprensa  brasileira e da alienação da  classe dominante. Amaral questionou o que seria a falta de um projeto nacional, passando pelos diferentes momentos da política brasileira, de Getúlio Vargas (com a inserção do Estado Nacional como indutor de políticas) a Juscelino Kubitschek (de política desenvolvimentista), chegando ao período da ditadura militar.

"JK construiu a primeira iniciativa de política externa brasileira, semelhante à aliança para o progresso dos Estados Unidos”, explicou, enfatizando a relação entre projeto de nação e a inserção do país no cenário global. Para Amaral, política externa é política de poder. Poder este que, defende, não é exercido retoricamente, e sim com a ocupação dos espaços. “O papel que o Brasil tomar no cenário global será retirado de alguém”, enfatizou.

Amaral lembrou que o Brasil da República Velha era baseada em exportadores de café e importadores, o que poderia explicar uma tradição de menor desenvoltura do país na política internacional. "A sociedade brasileira não tem a cultura de participação na política externa; sobre o assunto, não há correlação de força nem política com os grupos sociais”, afirmou. O país teve, segundo ele, momentos diversificados em função de seu posicionamento relativo no cenário global. Como exemplo, citou o conflito criado quando o Brasil vetou a invasão a Cuba, e votou, em Punta Del Este, contra a expulsão do país cubano da OEA.

No período da ditadura militar, prosseguiu Amaral, a política externa brasileira sofreu nova e pesada reformulação. Foi o tempo da adoção do alinhamento automático com os EUA, eternizado no lema cunhado por Juraci Magalhães (à época, embaixador do país nos Estados Unidos): “O que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”.

Por fim, Roberto Amaral destacou a política externa como um dos destaques nos dois mandatos da administração Lula. “Somente uma direita suicida teria coragem de combater as políticas deste governo. Nós construímos na América do Sul um novo país e uma sociedade rica e distributiva", finalizou.

O secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa Filho, prosseguiu com o debate, fazendo, logo de cara, um alerta: "A situação internacional mudou; temos que dar respostas novas, ou que mudar a política brasileira", cravou. Num exemplo, citou o fato de o Fundo Monetário Internacional registrar o Brasil como o único país com superávit primário.

Barbosa afirmou que o aumento da dívida estaria gerando pressão sobre os países e o FMI, com a instituição hoje orientando a realização de superávits primários de até 6%. Cenário que é dificultado pela decisão europeia de realização de ajuste fiscal. E a UE, como segundo maior bloco mundial, traz, com sua iniciativa, implicações para a economia global.

“No futuro, a concorrência internacional vai se intensificar; há a depreciação do euro, do dólar”, diz Barbosa, que acredita que o mundo será profundamente influenciado pelo que acontecer na Europa. “Ninguém aguenta mais de dois anos de ajuste fiscal. A UE precisava consumir mais para evitar as depressões”, alertou, apontando para um cenário que, no geral, deve garantir a manutenção do padrão dólar por um bom tempo. Além disso, há a intensificação, com a crise internacional, da concorrência entre Alemanha e China – o que traz o risco de um aumento dos conflitos internacionais.

Para Barbosa, o que o Brasil tem hoje é uma estratégia de crescimento e desenvolvimento, a qual é vinculada ao seu modelo de integração internacional. Uma situação que tem dado certo neste início de século XXI, mas que, para o secretário, pode mudar. “O projeto brasileiro, que associa distribuição de renda com crescimento e integração internacional, não é fácil de ser aceito pelas economias do cenário global. Crescer economicamente com redes de proteção social não é algo que agrada ao mundo”, explica.

 


Foto: Eduardo Fahl

O modelo brasileiro, cuja emergência é baseada no crescimento do mercado doméstico, tem, na visão de Barbosa, um equilíbrio delicado. “Geramos nossa fonte de financiamento, mas é preciso que as exportações cresçam na mesma proporção do restante do mundo. O resto do planeta deve comprar na proporção em que temos que vender”, exemplificou. O secretário acredita que a questão merece cuidado especial, pelo fato de a exportação de commodities, embora geradora de divisas, não ser refletida na criação de empregos em número suficiente para toda a população.

Barbosa alerta que o modelo inclusivo adotado pelo Brasil nos últimos anos pode não se sustentar por conta do cenário internacional. “Temos soluções a serem exportadas, mas necessitamos de consenso internacional. Sozinhos não conseguiremos”, resume. Embora seu prognóstico traga algumas questões delicadas, ele vê um lado positivo na turbulência pela qual passa a economia mundial. “Após crises, há um grande debate de ideias. E, nisso, o Brasil é um dos poucos que têm alternativa de esquerda”, finalizou.

Para o professor de Relações Internacionais e Ciência Política da Universidade Federal do Pará, Cauby Monteiro, foi na eleição de  2002 que a política externa brasileira foi para as ruas. Ele acredita que, neste ponto, o governo Lula consolidou uma agenda política e partidária.

"Precisamos rever a forma de fazer politica externa", disse Monteiro em sua fala. Faltam, segundo o professor, definições do governo brasileiro sobre o que se pretende da Amazônia, bem como sobre a política com os países da região que fazem fronteira com o Brasil.

Monteiro enfatizou que o Brasil tem dificuldades em pertencer a um ciclo de debate internacional, o que, segundo ele, seria causado pela falta, no país, de Centros de Política Internacional para debater com a mídia e o mundo. "Temos condições, nas nossas universidades, no PT, de aprofundar o estudo da politica externa”, afirmou.

A crise voltou à pauta da mesa na fala do diretor do Departamento de Cooperação Internacional da Fondation Jean Jaurès, Gerard Fuchs, que tratou das reações francesa e européia à crise financeira mundial. Para Fuchs, o fenômeno já estava sendo pressentido, com alertas vindos de setores da esquerda francesa; mas foi necessária a queda do banco Lehman Brothers e o subsequente cataclismo financeiro para que houvesse alguma reação. Uma catástrofe que, ele acredita, poderia ter sido evitada caso o sistema financeiro tivesse sido regulamentado.

Fuchs avalia que a reação foi tardia e insuficiente, sem sinergia nos planos de apoio. Quanto ao governo francês, ele apontou a inexistência de medidas voltadas à recuperação econômica, como a diminuição da taxa de desemprego, a retomada de iniciativas comerciais etc.

O diretor da Jean Jaurès tratou ainda do auxílio internacional à Grécia encabeçado pela Alemanha, proposto assim que as notícias sobre a crise começaram a se espalhar. "Quando a União Européia coloca 500 bilhões de Euros na mesa para conter o estrago, isso não é um assunto pequeno. Estamos numa terceira fase da crise”, afirmou.

Para Fuchs, os planos para a retomada da economia europeia não foram suficientes, e deverá existir ainda dificuldade para que seja retomado o crescimento. “É uma situação de recessão econômica. O risco do pior ainda não está descartado, a especulação campeia solta. Vivemos hoje situação extremamente séria, grave", conclui.

Sobre a situação mundial, Fuchs pensa que a ideia de “política externa” deve, por definição, respeitar os interesses nacionais. Hoje, segundo ele, os capitais se movem sem qualquer restrição, sem regras, com paraísos fiscais em pleno funcionamento, no poderia ser definido como uma “crise de regulamentação”.

"Vivemos atualmente uma crise do capitalismo que pode levar a uma revisão geral", disse Fuchs, que, por fim, apontou, como iniciativas que poderiam fazer a diferença no quadro atual, o resgate do valor fundamental da justiça social, o combate aos paraísos fiscais, e o desenvolvimento dos direitos econômicos e sociais. 

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