Texto apresentado pelo jurista no Seminário Contra a Tortura, promovido pela Secretaria Especial de Direitos Humanos – 3 a 5 de maio de 2010, em Brasília

 

O conceito jurídico de tortura

Embora praticada sem descontinuar desde os tempos mais recuados da História, e explicitamente condenada pelo artigo V da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a tortura só veio a ser definida juridicamente no final do século XX, com a aprovação pelas Nações Unidas, em 1984, da Convenção Internacional contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes.1

Eis a definição, constante do art.1, alínea 1, dessa Convenção, ratificada e promulgada pelo Brasil em 1991:

 

"O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza, quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionários público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência."

 

Essa definição indica três objetivos determinados para o ato de tortura: a obtenção de informações ou confissões, o castigo e a intimidação ou coação de certas pessoas. Faltou, a meu ver, indicar um quarto objetivo, que assumiu notável importância no mundo contemporâneo, desde o início das chamadas "guerras revolucionárias" nos paises do terceiro mundo, a partir do término da Segunda Guerra Mundial. É a montagem de um clima de terror generalizado pelas autoridades estatais, como forma de combate aos movimentos subversivos. Essa nova instrumentalização da tortura foi inventada pelos militares franceses durante a guerra da Argélia, de 1954 a 1962, e reproduzida a seguir em outras partes do mundo, notadamente no Brasil durante o regime de exceção instaurado pelo golpe militar de 1964.2

Seja como for, a Convenção de 1984 adverte que a definição de tortura, por ela dada, representa um mínimo: outros diplomas normativos, nacionais ou internacionais, podem ampliá-la.

A mesma ampliação de limites e possibilidades é estabelecida em relação aos sujeitos ativos dos atos de tortura. A definição convencional abrange não apenas os executantes, mas também os mandantes e mesmo os simples instigadores, atuando oficialmente como agentes públicos, ou fazendo-se passar por tais.

No Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998, porém, para a tipificação da tortura não se exige que o ato criminoso seja praticado por instigação ou com a aquiescência de um agente público ou outra pessoa no exercício de funções públicas.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1966, assimilou à tortura a submissão de alguém, sem o seu consentimento, a experimentações médicocientíficas. É claro que essa disposição refere-se, antes de mais nada, às práticas atrozes perpetradas pelos Estados totalitários, notadamente o Estado nazista, em seus campos de concentração. Mas ela abrange também pesquisas médicas e científicas de alto poder ofensivo, levadas a efeito em alguns Estados democráticos, sem que os pacientes ou a população soubessem do que se tratava.

Nos Estados Unidos, no quadro de uma pesquisa médica iniciada em 1932 pela Seção de Doenças Venéreas, do Centro de Doenças Comunicáveis do Serviço de Saúde Pública, 600 indivíduos negros do sexo masculino foram envolvidos, mediante oferta enganosa de tratamento médico gratuito, num estudo sobre os efeitos da sífilis. Mais de 400 indivíduos, portadores da moléstia, deixaram de ser tratados, provocando com isso a contaminação de suas mulheres e crianças. Muitos morreram da doença.

Da mesma forma, nos anos 40 e 50, o governo norte-americano efetuou experimentos com radiações atômicas em seres humanos. Algumas pessoas sofreram injeções de plutônio, e crianças mentalmente retardadas foram alimentadas com comida radioativa. Ao mesmo tempo, o governo permitia a emissão de radiações nas proximidades de zonas urbanas, para observar os efeitos daí decorrentes.

O Presidente Clinton apresentou desculpas oficiais às vítimas de ambas as experiências, em 1995 e 1997.

No que tange às penas degradantes ou cruéis, é geralmente admitido que entram nessa categoria todas as mutilações, tais como o decepamento da mão do ladrão, prescrito na Charia muçulmana, e a castração de condenados por crimes de violência sexual, constante de algumas legislações ocidentais.

Vejamos, agora, a caracterização da tortura como crime contra a humanidade, principiando pela indicação do surgimento dessa nova modalidade delituosa.

 

Origem e definição do crime contra a humanidade

A noção de crime contra a humanidade despontou na consciência jurídica no início do século XIX, quando algumas potências européias, lideradas pela Inglaterra, decidiram combater o tráfico transatlântico de escravos africanos, largamente praticado desde o século XVI. Em 1815, por ocasião do Congresso de Viena, que reorganizou a ordem política na Europa após a queda de Napoleão, foi aprovada uma Declaração das Potências sobre a Abolição do Tráfico de Escravos, com fundamento nos "princípios de humanidade e moralidade universal".

Um século depois, exatamente em 24 de maio de 1915, as potências aliadas que lutavam contra o Império Alemão na Primeira Guerra Mundial, levantaram um protesto contra o genocídio dos armênios, acusando o Império Otomano, aliado dos alemães, de praticar "novos crimes contra a humanidade e a civilização".

Ao término da Segunda Guerra Mundial, quando foram revelados ao mundo os horrores dos campos de extermínio nazistas na Europa Central, as potências aliadas decidiram, pela primeira vez na História, julgar penalmente os responsáveis, instituindo o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg em 1945. O Estatuto desse tribunal definiu como crimes contra a humanidade, em seu art. 6, alínea c, os seguintes atos:

 

"o assassínio, o extermínio, a redução à condição de escravo, a deportação e todo ato desumano, cometido contra a população civil antes ou depois da guerra, bem como as perseguições por motivos políticos e religiosos, quando tais atos ou perseguições, constituindo ou não uma violação do direito interno do país em que foram perpetrados, tenham sido cometidos em consequência de todo e qualquer crime sujeito à competência do tribunal, ou conexo com esse crime."

 

Essa definição foi depois reproduzida no Estatuto do Tribunal Militar de Tóquio, que julgou os criminosos de guerra japoneses.

A Assembléia Geral das Nações Unidas, pelas Resoluções nº 3 e 95 (I), respectivamente de 3 de fevereiro e 11 de dezembro de 1946, confirmou "os princípios de direito internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg e pelo acórdão desse tribunal".

Em 26 de novembro de 1968, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pela Resolução nº 2.391 (XXIII), aprovou o texto de uma Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, declarando que estes últimos compreendem, além do genocídio, também os atos de apartheid, ainda que tais atos não sejam definidos como crimes pelas leis internas dos Estados onde foram perpetrados. Vergonhosamente, o Brasil não assinou originariamente a Convenção, nem a ela aderiu.

Com o advento do Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998, o genocídio foi caracterizado como modalidade criminosa diversa da dos crimes contra a humanidade. Em seu art. 7º, o Estatuto definiu dez tipos de crimes dessa natureza, incluindo entre elas a tortura. Além disso, acrescentou ao elenco uma modalidade genérica: "outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental". Estabeleceu como condição de punibilidade que tais atos criminosos sejam cometidos "no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque".

Desse conjunto normativo, podemos extrair um conceito de crime contra a humanidade como o ato delituoso em que à vítima é negada a condição de ser humano. Nesse sentido, com efeito, indiretamente ofendida pelo crime é toda a humanidade.

 

Regime jurídico da tortura enquanto crime contra a humanidade

Tendo em vista a natureza de tais crimes, dela resulta que o seu regime jurídico é originariamente internacional, não se reconhecendo competência ao legislador nacional para abrogar, ainda que minimamente, o que foi estabelecido no âmbito do direito das gentes.

É o que foi determinado na já citada Convenção sobre a Imprescritibilidade dos dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, aprovada pelas Nações Unidas em 26 de novembro de 1968, e que entrou em vigor em 11 de novembro de 1970.

Em um dos consideranda de seu preâmbulo, a Convenção reconhece "ser necessário e oportuno afirmar, no direito internacional, por esta Convenção, o princípio de que não há período de limitação para crime de guerra e crimes contra a humanidade, e assegurar sua aplicação universal".

Assim sendo, dispõe a Convenção em seu artigo 4:

 

Os Estados Partes na presente Convenção obrigam-se a adotar, em consonância com seus procedimentos constitucionais respectivos, todas as medidas legislativas ou de outra natureza, necessárias para assegurar que limitações legais ou de outra modalidade não se aplicam no processo e punição dos crimes referidos nos artigos 1 e 2 da presente Convenção [crimes de guerra e crimes contra a humanidade] e que, onde existirem, tais limitações serão abolidas.

 

Ao se referir de modo geral a "limitações legais ou de outra modalidade", a Convenção declara a injuridicidade de quaisquer normas de direito nacional, que determinem a anistia de tais crimes, ou estabeleçam prazos de prescrição. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998, aliás, veio reafirmar que "os crimes da competência do Tribunal não prescrevem" (art. 29).

É insustentável o argumento levantado entre nós de que tais disposições não se aplicam no Brasil, em relação aos atos de tortura praticados contra presos políticos durante o regime militar de 1964 a 1985, porque o nosso país não assinou nem aderiu à Convenção de 1968, e só veio a ratificar o Estatuto do Tribunal Penal Internacional em 2002.

Já foi lembrado que a Assembléia Geral das Nações Unidas, por duas Resoluções aprovadas em 1946, confirmou "os princípios de direito internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg e pelo acórdão desse Tribunal".

O Estatuto da Corte Internacional de Justiça, aprovado juntamente com a Carta das Nações Unidas em 1945, enumera como fontes do direito internacional, além das convenções internacionais e do costume internacional, "os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas" (art. 38, 1, alínea c).

A noção de princípio jurídico adquiriu na doutrina contemporânea notável importância, em contraposição à simples regras de direito.3 Apontam-se as seguintes diferenças específicas dos princípios em relação às regras.

Em primeiro lugar, os princípios jurídicos situam-se no mais elevado grau hierárquico do sistema normativo, podendo, por isso mesmo, deixar de ser expressos em textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados internacionais. Os princípios correspondem, pois, no mundo de hoje, àquelas leis "não escritas, inabaláveis, divinas", de que falou Antígona no famoso diálogo com Creonte.4 A sua fonte não é a autoridade estatal ou a convenção internacional, mas a consciência ética da humanidade.

Além disso, ao contrário das regras, cujo conteúdo normativo é sempre preciso e concreto, o âmbito de incidência dos princípios é praticamente ilimitado. Por exemplo, todos são iguais perante a lei. Em consequência, a função principal das regras de direito é de precisar, em situações precisas e determinadas, a aplicação dos princípios. E quando isso não ocorre por efeito da lei, o direito contemporâneo criou, para suprir essa omissão legislativa, dois institutos: o mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão (Constituição Brasileira, artigos 5º, LXXI e 103, § 2º).

Em terceiro lugar, tendo em vista a supremacia normativa dos princípios sobre todas as demais normas jurídicas, eles não são sujeitos a revogação ou abrogação (revogação parcial) por efeito da superveniência de outros princípios no direito positivo estatal ou internacional. O eventual conflito entre princípios se resolve pela aplicação daquele que, no caso litigioso, mais protege a dignidade da pessoa humana.

Em 1969, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados veio dar à noção de princípio geral de direito, sob a denominação de norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens), uma noção mais precisa. É o que se vê do disposto em seu art. 53:

 

É nulo o tratado que, no momento de sua conclusão, conflita com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional geral da mesma natureza.

 

Conclusão

Por todas essas razões, fica patente que a decisão tomada pelo nosso Supremo Tribunal Federal ao julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 153, de que a lei de anistia de 1979 desconstituiu os crimes abjetos, notadamente a tortura, praticados pelos agentes públicos do regime militar contra opositores políticos, infringiu descaradamente o sistema internacional de direitos humanos.

Essa aberração jurídica não é insuscetível de perdão no tribunal da consciência.

 

*Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

 

 

Notas

1 Em 18 de dezembro de 2002, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou um Protocolo Facultativo a essa Convenção. Tal Protocolo foi aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 483, de 20 de dezembro de 2006, foi ratificado em 11 de janeiro de 2007 e promulgado pelo Decreto nº 6.085, de 29 de abril de 2007. O objetivo do Protocolo é estabelecer um sistema de visitas regulares efetuadas por órgãos nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.

2 Cf. a monografia de Marnia Lazreg, Torture and the Twilighit of Empire – from Algiers to Baghdad, Princeton University Press, Princeton and Oxford, 2008.

3 Cf., sobretudo, Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Harvard University Press, Cambridge, 1978, pp. 22 e ss. e 294 e ss.; e Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 3ª ed., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1996, cap. 3.

4 Sófocles, Antígona, versos 446 a 460.