Vira-lata ou cachorro grande
Por Selvino Heck
Por Selvino Heck
Nada contra os vira-latas, nem tudo a favor de cachorro grande. A questão é política e simbólica. Disse o presidente Lula na cerimônia de recebimento do prêmio Nova Economia Fórum 2010, em Madri, Espanha, 18 de maio de 2010: "O legado que estou deixando é que eu despertei no mais humilde dos brasileiros, de um catador de papel da rua a um economista, a um metalúrgico, a um gráfico, a um pedreiro, eu despertei na consciência dele a idéia de que ele pode e deve chegar à Presidência da República, é só querer e se preparar. (…) Nós na América do Sul, eu não sei se o Evo Morales está aqui, mas vocês podem fazer um estudo sobre a economia da Bolívia: precisou um índio chegar ao governo da Bolívia para o povo pobre da Bolívia ter um aumento na sua renda e ter aumento na participação da renda nacional. E pela primeira vez, desde 1940, a Bolívia fez reservas, mais de 10 bilhões de reservas, e tem o maior superávit da história da Bolívia. É uma coisa extraordinária. Demonstra que muito mais do que apenas cursos de doutor, as pessoas precisam ter curso de inteligência e de possibilidades para bem dirigir o seu país."
É disso, sobretudo, que se trata quando se fala de superar o complexo vira-lata, daquela pessoa ou daquele país que se acha sempre o último, o menor, o que não pode nada, que não se afirma e se acha sem poder. O vira-lata pode ser grande agindo como se o fosse, afirmando-se em suas virtudes, que não são poucas, em sua capacidade de sedução, em sua simplicidade que encanta.
A imprensa nacional e internacional discute a participação do Brasil, do presidente Lula e do ministro Celso Amorim no esforço de negociação com o Irã com apoio da Turquia. O resultado foi um sucesso que grandes países como a Rússia não acreditavam pudesse acontecer. Logo há a reação de outros grandes países, como os EUA, não aceitando os resultados e mantendo a desconfiança. Setores da grande mídia logo afirmaram seu complexo vira-lata, dizendo que a negociação tinha sido um grande fracasso, porque o Conselho de Segurança da ONU, por sugestão de alguns países, ia manter a proposta de sanções contra o Irã.
O que está em jogo é muito mais que isso e não é de curto prazo.
Tenho viajado muito pelo Brasil pela Rede TALHER de Educação Cidadã e pelo Programa Escolas-Irmãs, ambos vinculados à mobilização social do Gabinete do Presidente da República. E tenho encontrado os índios da Raposa Serra do Sol, Roraima, orgulhosos de serem índios, defendendo seus direitos, culturas, crenças e valores. Estive com os pescadores de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, agora pescadores de letras e peixes, acreditando no desenvolvimento de sua comunidade e da região. Tenho estado com os grupos de economia solidária de Santa Maria, Rio Grande do Sul, que organizam e participam de umas das maiores feiras brasileiras e latino-americanas, onde mostram sua produção solidária e cooperada, sinalizando um novo tempo e um novo mundo. Encontro os catadores e recicladores que discutem o lixo e a cidadania e a construção de um novo país. Vejo os quilombolas orgulhosos de seus quilombos e história. Os moradores de rua querem espaço e reconhecimento. Os sem-terras exigem dignidade: lutam, resistem e produzem.
Os brasileiros, felizmente, não são mais coitadinhos que dizem amém. Aprenderam, na luta contra a ditadura e pela democracia, a construir movimentos sociais que conquistam direitos. Elegeram governos democrático-populares que democratizam a gestão pública, constroem igualdade e justiça e colocam como prioridade os direitos do povo pobre e dos trabalhadores. Não se rendem mais às elites que por séculos mandaram no país com os olhos voltados para o estrangeiro e para o mundo dos ricos. Valorizam suas próprias raízes, cultura e valores. Não têm mais complexo de vira-lata.
Disse o presidente Lula na sessão de abertura da 14ª Cúpula do G-15 em Teerã, Irã, 17 de maio: "Atravessamos juntos os anos difíceis da hegemonia do pensamento único. Éramos uma das poucas vozes dissonantes do projeto conservador defendido pelos seguidores do Consenso de Washington. Nunca hesitamos na defesa de um mundo mais democrático, onde todas as vozes pudessem ser ouvidas. A crise em que está mergulhada a economia mundial, sobretudo nos países desenvolvidos, mostra que nossos diagnósticos de anos atrás eram basicamente corretos. Sabemos como o descolamento do setor financeiro em relação ao setor produtivo levou a economia mundial à beira do abismo. Sabemos como esse descontrole foi alimentado pela crença cega e fundamentalista do mercado, ao qual se atribuíram condições de auto-regulação perfeita da atividade econômica. Há alguns anos começamos a ouvir vozes que afirmavam que um outro mundo era possível. Hoje temos claro que um outro mundo é necessário, é imprescindível."
A pax americana que reinou no século XX já não reinará no novo século e milênio. Estamos assistindo à passagem de um mundo bipolar para um mundo multipolar com muitos atores e protagonistas. América Latina e África estão pedindo passagem. Os vira-latas são muitos e querem ser ouvidos. Os cachorros grandes estão perdendo o trem da história.
*Selvino Heck é Assessor Especial do Presidente da República do Brasil. Da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política.
Publicado na Agência Adital, em 20/5/2010