por Sérgio Amadeu

A proposta sintetizada pelo Ministério da Justiça para o estabelecimento de um marco civil da Internet no Brasil é prova que as práticas colaborativas e a participação online podem melhorar a compreensão dos temas e elevar a qualidade das decisões democráticas. Depois de abrir uma plataforma para ouvir, interagir e debater com a sociedade, o Ministério da Justiça encaminha um trabalho de sintese que é extremamente claro e que poderá ser uma referência mundial das legislações que tratam nacionalmente da Internet.

Quais os princípios que dirigem a proposta? Que a rede continue livre. Nenhuma regulamentação nacional deve retirar a liberdade de expressão, de criação de novos conteúdos, formatos e tecnologias. A regulamentação não pode sufocar as possibilidades criativas dadas pelos protocolos técnicos da internet. A Internet é uma rede aberta e não-proprietária, sem centros de fluxo obrigatórios. Trata-se de uma rede que se baseia na neutralidade de suas camadas e de seus mecanismos em relação aos conteúdos, tecnologias, origens ou destinos dos pacotes de dados.

Para que isto seja efetivamente assegurado é preciso incluir no artigo 2 mais um princípio que deve reger a Internet no Brasil:

VII – preservação da possibilidade de criação de novos protocolos e tecnologias, independente de autorização do Estado.

Isto visa assegurar efetivamente que a criatividade não seja bloqueada a qualquer momento por um governo de plantão que queira impedir o contínuo processo inventivo por este prejudicar potencial ou realmente corporações e modelos de negócios existentes.

A seguir, este post irá analisar dois aspectos vitais da proposição do Ministério. Por se tratar de dois temas muito polêmicos, eles estão separados. Busquei deixar o mais claro possível os fundamentos da minha crítica e sugestão.

1) SOBRE OS REGISTROS DE CONEXÃO

O artigo 9 diz o seguinte:

Art. 9. A provisão de conexão à Internet impõe a obrigação de guardar apenas os registros de conexão, nos termos da Subseção I da Seção III deste Capítulo, ficando vedada a guarda de registros de acesso a serviços de Internet pelo provedor.

O que o projeto entende como um provedor de conexão?

A pessoa física ou jurídica que provê a “conexão à Internet”. No artigo 4, inciso IV, está claramente dito que “conexão à Internet” é a “autenticação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela Internet, mediante a atribuição de um número IP;”

Portanto, um telecentro ou uma lan house não podem ser enquadrados no artigo 9, pois não atribuem um número de IP a um terminal. São usuários de um provedor de conexão. Mas será que isto é claro para os juízes e promotores? É isto que os formuladores da propostas entendem?

De qualquer forma, para que não paire dúvidas sobre a necessidade de manter a navegação anônima, sem condições de vigilância, exceto em casos necessários a ação da Justiça, devemos incluir um artigo que deixe claro que no Brasil não é obrigatório que os cidadãos realizem um cadastro que vincule sua identidade civil a um terminal. Esta é uma faculdade do telecentro, da lan house, empresa ou escola que dá acesso à Internet e, não uma obrigação legal.

Quem além dos provedores de acesso comerciais, tais como, Terra, Uol, IG, etc, podem ser enquadrados neste artigo? Obviamente, todas as empresas, escolas, governos e prefeituras que realizem o provimento de acesso. E as Prefeituras que abrem o sinal wireless nas praças e cidades? O fato de atribuirem um número de IP a um terminal os obriga a guardar os registros de conexão? Tudo indica que sim.

Por isso, sugiro que no artigo 8 seja incluido um novo parágrafo:
“Parágrafo… Ninguém será obrigado a vincular sua identidade civil a um terminal de acesso ou a um número IP, exceto com sua expressa anuência.”

Assim, fica claramente garantido o direito inealienável às redes abertas.

QUEM SÃO OS ADMINISTRADORES DE SISTEMAS AUTÔNOMOS?

O que é a guarda dos registros de conexão? Como deve ser a guarda?

Na Seção III, chamada “Dos registros de dados”, a Subseção I, “Da guarda de registros de conexão” temos o artigo 14 que diz:

“Art. 14. A provisão de conexão à Internet impõe ao administrador do
sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo máximo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.”

Parágrafo único. O dever de manter os registros de conexão não poderá ser
transferido.

Primeiro devemos ter claro o que é um “administrador do sistema autônomo”. A definição técnica comum de sistema autônomo é a seguinte: “Um Sistema Autônomo (AS) é um grupo de redes IP, abaixo de uma única gerência técnica e que compartilham uma mesma política de roteamento”. Isto conforme a RFC1930 ­ http://www.ietf.org/rfc/rfc1930.txt .

No artigo 4, inciso III, da proposta está escrito a seguinte definição de “administrador de sistema autônomo”: “pessoa jurídica, devidamente cadastrada junto ao Registro de Endereçamento da Internet para América Latina e Caribe
(LACNIC), responsável por blocos específicos de número IP (Internet protocol) e por um conjunto de roteadores, redes e linhas de comunicação pela Internet que formem uma infraestrutura delimitada por protocolos e métricas comuns.”

Estão falando de Operadoras de Telefonia que possuem blocos de IP registrados, também estão falando de empresas que obtiveram um conjunto de IPs para seu uso, ou seja, estão falando de provedores de acesso, públicos ou privados.

Estes provedores deverão “manter os registros de conexão sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo máximo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento”, conforme o artigo 14. Esta redação é um enorme avanço se a compararmos com o projeto de crimes, versão Azeredo. Por outro lado, me preocupa o que os formuladores de regulamentos do Poder Executivo poderão tentar inserir no regulamento.

Por esta razão, é preciso assegurar que o CADASTRO QUE VINCULA UM TERMINAL OU UM NÚMERO IP A UMA IDENTIDADE CIVIL SEJA UMA OPÇÃO E NÃO UMA OBRIGAÇÃO LEGAL.

MAIS UMA VEZ A QUESTÃO DAS REDES ABERTAS…

Como poderei manter uma rede aberta em uma praça, bar ou cidade, se a lei me obrigar cadastrar os usuários de um IP?

Alguns poderão argumentar que devemos disseminar o modelo de redes sob vigilância abertas, ou seja, aberta como sinônimo de gratuitas, mas com forte grau de identificação dos seus usuários.

Todavia, sabemos que os formuladores do Estado dos aparatos de segurança quando consultados sobre como formular o regulamento do artigo 15, sobre a guarda dos registros de conexão, irão propor formas de identificação positiva dos usuários.
http://www.trezentos.blog.br/?p=4546
É claro que se pedirem apenas um nome e um número de documento para o acesso a uma rede wireless aberta e sob vigilância, de nada adiantará para coibir crimes ou para reparar o direito violado. Criminosos não irão usar nomes verdadeiros, muito menos números de documentos verídicos para se conectar.

Além disso, é extremamente perigoso um processo frágil de identificação, pois atualmente é muito simples e fácil conseguir coletar número de RGs e CPFs das pessoas. Criminosos têm estoques de documentos falsos.

O cadastramento que buscam para ser efetivo é inaceitável, uma vez que exigirá processos mais fortes de identificação pessoal, tais como, o uso de certificados digitais obrigatórios ou outros mecanismos de identificação positiva (aquela que se confirma presencialmente a relação entre um documento e um indivíduo).

Então, é urgente insetrir onde mais for necessário que o CADASTRO QUE VINCULA UMA IDENTIDADE CIVIL A UM NÚMERO IP OU TERMINAL DE SISTEMA AUTÔNOMO NÃO É OBRIGATÓRIO NO BRASIL. Desse modo, o regulamento tratará de garantir a segurança e privacidade dos dados no período de sua guarda.

Enfim, talvez seja necesário na definição de princípios escrever que, no Brasil, “ninguém será obrigado a se identificar para acessar e navegar na Internet”, tal como “ninguém é obrigado a se identificar para acessar a calçada pública e para andar nas ruas”.

2) SOBRE A REMOÇÃO DE CONTEÚDO

Na Seção IV, Da remoção de conteúdo, existe um grande avanço no artigo 19. Ele diz que “o provedor de conexão à Internet não será responsabilizado por
danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”.

Entretanto, o artigo 20 obriga um provedor de conteúdo agir como um censor privado. Uma vez acionado por alguém que se diz ofendido, o provedor deverá retirar o conteúdo em questão e depois consultar o seu responsável se o mantém (art. 22). Caso o responsável o mantenha deverá recolocá-lo no site, rede social ou repositório de conteúdos. Veja o que está escrito nos artigos 20 e 21:

“Art. 20. O provedor de serviço de Internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se for notificado pelo ofendido e não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro de prazo razoável, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

Art. 21. A notificação de que trata o art. 20 deverá conter, sob pena de
invalidade:

I – identificação do notificante, incluindo seu nome completo, seus números
de registro civil e fiscal e dados atuais para contato;
II – data e hora de envio;
III – identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente,
que permita a localização inequívoca do material pelo notificado;
IV – descrição da relação entre o notificante e o conteúdo apontado como
infringente; e
VI – justificativa jurídica para a remoção.”

Independente de considerar inconstitucional este mecanismo, temos que analisá-lo. Um bom modo mecanismo de análise é projetar algumas situações em que será aplicado. Assim podemos compreender suas consequências sociais, políticas e comunicacionais.

EVITAR A LEGALIZAÇÃO DA BLOQUEIO PRIVADO DE CONTEÚDOS

Pense se este mecanismo funcionaria para a revista Veja online. Claro que não. A Revista Veja está hospedada no provedor de conteúdo do Grupo Abril. Quando um dos centenas de ofendidos pela publicação acionar o seu provedor, ele não retirará o conteúdo da rede, pois lá todos sabem que a Veja tem aquela política editorial e seus responsáveis (sei que este não é um bom nome para tal fato) a manterão. Com os grandes veiculos jornalísticos ou pretensamente jornalísticos que estão na rede este mecanismo não funcionará. Os ofendidos terão que recorrer a Justiça.

O grande problemas serão os blogueiros e os ativistas e cidadãos comuns que possuem perfis nas redes sociais. Se emitirem uma opinião mais forte contra políticos poderosos ou grandes corporações terão seu conteúdo facilmente removido. Mesmo que consigam recolocá-lo terão ficado um dia ou mais impedidos de manifestarem sua opinião.
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Entendo que quando o conteúdo agride crianças e adolescentes ou portar cenas de pornografia infantil, o mecanismo pode ser até aceitável. Todavia, em casos como estes a Justiça especializada pode e deve agir prontamente. Sendo portanto, discutível a necessidade do mecanismo do modo que está proposto.

EVITAR A FORMAÇÃO DE UMA INDÚSTRIA DA CENSURA INSTANTÂNEA

Pense em um tema polêmico ou em uma disputa política. Como funcionará este mecanismo? Tudo indica que gerará mais distorções do que benefícios.

Meu grande temor é a indústria da censura instântanea. Não gostaria de ver surgir no Brasil um mercado da revogação instantânea de conteúdos, instigado por advogados propensos a encontrar soluções jurídicas para o bloqueio de opiniões.  O Brasil já é o país onde os advogados mais pedem a retirada de conteúdos dos repositórios do Google. Imagine o que ocorrerá com um mecanismo como este?

Além disso, como responsável pelo meu blog, respondo por ele.
Se o provedor que hospeda meu blog me aciona e diz que estou sendo avisado da ilegalidade de um determinado conteúdo, tenho o direito de discordar e dizer que caberá aos denunciantes recorrerem à Justiça. Em nenhum momento devemos admitir que o provedor tenha o poder de retirar um conteúdo da rede pelo tempo que for.

Minha sugestão para enfrentar os perfis falsos é o provedor de serviço ter a obrigação de entrar em contato com um determinado email e perfil e questionar se este de fato, assume a responsabilidade por determinado conteúdo. Caso não responda em um prazo razoável, somente nesta circunstância, o conteúdo poderia ser retirado.

Este mecanismo somente tem sentido contra perfis e avatares não-identificados. Outra questão muito importante: o marco civil da Internet deve permitir que estes possam continuar anônimos ou com outros nomes, desde que assumam para o provedor a responsabilidade jurídica pelas postagens.

Do mesmo modo, o blogueiro não pode ser considerado responsável por um comentário anônimo. Somente deve ser responsabilizado se for acionado e não tomar providências de consultar o comentarista sobre a autoria do comentário.

CONCLUSÃO

A proposta do Ministério da Justiça é indiscutivelmente um avanço. Ela contém alguns pontos que precisam ser alterados. Se incluirmos o direito inalienável de navegação sem identificação e retirarmos o mecanismo privado de censura instântanea teremos um marco civil extremamente avançado e exemplar nestes tempos de Hadopi.
 

Postado no Blog Trezentos em 25/04/2010

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