1964, o ano que não terminou… [*]
Este ensaio, de autoria do professor de história da filosofia da USP e da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), Paulo Eduardo Arantes, integra a coletânea "O que resta da ditadura – a exceção brasileira", de Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs.) e foi publicado no site PassaPalavra (Parte 1, em 16/3/2010 e a Parte 2, em 23/3/2010.
1964, o ano que não terminou… (Parte 1)
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Tudo somado, o que resta afinal da Ditadura? Na resposta francamente atravessada do psicanalista Tales Ab’Sáber, simplesmente tudo. Tudo menos a Ditadura, é claro [1] Demasia retórica? Erro crasso de visão histórica? Poderia até ser, tudo isto e muito mais. Porém nem tanto. Pelo menos a julgar pelo último lapso, ou melhor, tropeço deliberado, mal disfarçado recado a quem interessar possa: refiro-me ao editorial da Folha de São Paulo, de 17 de fevereiro de 2009, o tal da “ditabranda”. Não é tão simples assim atinar com as razões daquele escorregão com cara de pronunciamento preventivo, sobretudo por ser mais do que previsível que o incidente despertaria a curiosidade pelo passado colaboracionista do jornal, tão incontroversamente documentado que as pessoas esqueceram, até mesmo da composição civil e militar daquele bloco histórico da crueldade social que se abateu sobre o país em 1964. E como atesta o indigitado editorial, aunque el diabo esté dormido, a lo mejor se despierta. Quanto à descarada alegação de brandura: só nos primeiro meses de comedimento foram 50.000 presos. [2] Em julho de 1964, “os cárceres já gritavam”. [3]
O fato é que ainda não acusamos suficientemente o Golpe. Pelo menos não o acusamos na sua medida certa, a presença continuada de uma ruptura irreversível de época. Acabamos de evocar a brasa dormida de um passo histórico, os vasos comunicantes que se instalam desde a primeira hora entre o mundo dos negócios e os subterrâneos da repressão. Quando o então ministro Delfim Netto organiza um almoço de banqueiros no palacete do Clube São Paulo, antiga residência de Dª Viridiana Prado, durante o qual o dono do Banco Mercantil passou o chapéu, recebendo em média 110 mil dólares per capita para reforçar o caixa da OBAN. Não se trata de uma vaquinha, por assim dizer, lógica, inerente aos trâmites da acumulação em um momento de transe nacional, em que os operadores de turno puxam pela corda patriótica de empresários que por sua vez estão pedindo para se deixar amedrontar. [4] Esperteza ou não — afinal a Ditadura detinha todas as chaves do cofre —, o fato é que se transpôs um limiar ao se trazer assim, pelas mãos de um Ministro de Estado, os donos do dinheiro para o reino clandestino da sala de tortura: este o passo histórico que uma vez dado não admite mais retorno, assim como não se pode desinventar as armas nucleares que tornaram a humanidade potencialmente redundante. Ruptura ou conseqüência? Questão menor, diante da metástase do poder punitivo que principiara a moldar a Exceção Brasileira que então madrugava.
Francisco Campos costumava dizer que governar é mandar prender. Para encurtar, digamos que a partir de 1935, com a intensificação da caça aos comunistas e demais desviantes, essa escola de governo incorporou o alicate do Dr. Filinto Müller e seus derivados. Já a deportação de Olga Benário discrepa do período anterior — no qual predominava a figura do anarquista expatriado — antecipando os seqüestros da Operação Condor. Todavia, um caso ainda muito especial, como se sabe. Até mesmo as cadeias em que se apodrecia até à morte — como a colônia correcional de Ilha Grande, que, a um Graciliano Ramos atônito, foi apresentada como um lugar no qual se ingressa, não para ser corrigido, mas para morrer — tampouco anuncia uma Casa da Morte, como a de Petrópolis e similares espalhadas pelo país e Cone Sul. Basta o enunciado macabro das analogias para se ter a visão histórica direta da abissal diferença de época. [5] O calafrio de Graciliano, ao se deparar com um espaço onde “não há direito, nenhum direito” — como é solenemente informado por seu carcereiro — ainda é o de um preso político ocasional ao se defrontar (em pé de igualdade?) com o limbo jurídico em que vegetam apagados seus colegas “de direito comum”. Como se sabe, aquela situação se reapresentaria menos de 40 anos depois. Como a Ditadura precisava ocultar a existência de presos políticos, os sobreviventes eram formalmente condenados como assaltantes de banco e, como tal, submetidos ao mesmo vácuo jurídico da ralé carcerária, exilada nesses lugares por assim dizer fora da Constituição. Mas já não se tratava mais do mesmo encontro de classe face ao “nenhum direito”, ou desencontro histórico, como sugere o filme de Lúcia Murat Quase dois irmãos.
O corte de 64 mudaria de vez a lógica da exceção, tanto no hemisfério da ordem política quanto dos ilegalismos do povo miúdo e descartável. O Golpe avançara o derradeiro sinal com a entrada em cena de uma nova “fúria” — para nos atermos ao mais espantoso de tudo, embora não se possa graduar a escala do horror: a entrada em cena do “poder desaparecedor”, na fórmula não sei se original de Pilar Calveiro. [6] Depois de mandar prender, mandar desaparecer como política de Estado, e tudo que isso exigia: esquadrões, casas e vôos da morte. Essa nova figura — o desaparecimento forçado de pessoas — desnorteou os primeiros observadores. A rigor, até hoje. Ainda no início dos anos 80, um Paul Virilio perplexo se referia às ditaduras do Cone Sul como o laboratório de um novo tipo de sociedade, a “sociedade do desaparecimento”, onde os corpos agora, além do mais — e sabemos tudo o que este “mais” significa —, precisam desaparecer, quem sabe, o efeito paradoxal do estado de hiper-exposição em que se passava a viver. [7]
Digamos que ao torná-lo permanente, exercendo-o durante 20 anos, nem mesmo os principais operadores do regime se deram conta de que o velho estado de sítio concebido pela ansiedade ditatorial dos liberais, ao fim e ao cabo já não era mais o mesmo. Aliás, desde o início, a exceção se instalara noutra dimensão, verdadeiramente inédita e moderna, a partir do momento em que “o corpo passa a ser algo fundamental para a ação do regime” e a câmara de tortura se configura “como a exceção política originária na qual a vida exposta ao terrorismo de Estado vem a ser incluída no ordenamento social e político”, na redescrição dos vínculos nada triviais entre ditadura e exceção retomada ultimamente por Edson Teles, confrontado com o acintoso recrudescimento do poder punitivo na democracia parida, ou abortada, pela Ditadura. [8] A seu ver, a Ditadura por assim dizer localizou o topos indecidível da exceção, a um tempo dentro e fora do ordenamento jurídico, tanto na sala de tortura quanto no desaparecimento forçado, marcado também, este último, por uma espécie de não-lugar absoluto. Estes os dois pilares de uma sociedade do desaparecimento. A Era da Impunidade que irrompeu desde então pode ser uma evidência de que esta tecnologia de poder e governo também não pode mais ser desinventada. Seja como for, algo se rompeu para sempre quando a brutalidade rotineira da dominação, pontuada pela compulsão da caserna, foi repentinamente substituída pelo Terror de um Estado delinqüente de proporções inauditas. A tal ponto que até Hobsbawm parece não saber direito em qual dos extremos do seu breve século XX incluir este último círculo latino-americano de carnificinas políticas, no qual não hesitou em reconhecer a “era mais sombria de tortura e contra-terror da história do Ocidente”. [9]
Outro disparate? Desta vez cometido pela velha esquerda em pessoa? Não seja por isto. À luz dos seus próprios critérios civilizacionais, um padrão evolutivo foi irrecuperavelmente quebrado pelas elites condominiadas em 1964. Mesmo para padrões brasileiros de civilização, pode-se dizer que a Ditadura abriu as portas para uma reversão na qual Norbert Elias poderia quem sabe identificar o que chamou por vezes de verdadeiro processo descivilizador. Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro, um tal padrão, herdado do despotismo esclarecido pombalino, pressupunha algo como o espraiamento, prudentemente progressivo, dos melhoramentos e franquias da vida moderna, a princípio reservados à burocracia estatal e às oligarquias concernidas, ao conjunto das populações inorgânicas a serem assim “civilizadas” pela sua elite. Pois até este processo civilizador não previsto por Norbert Elias — o monopólio da violência pacificadora são outros quinhentos nessas paragens — deu marcha a ré, ou se preferirmos, engendrou “um monstrengo nunca visto”. [10] Pensando bem, menos reversão do que consumação desse mesmo processo de difusão das Luzes, como vaticina a profecia maligna de Porfírio Diaz, no final de Terra em Transe: “Aprenderão, aprenderão, hei de fazer deste lugar uma Civilização, pela força, pelo amor da força, pela harmonia universal dos infernos”. Segundo o mesmo Luis Felipe, havia paradoxalmente algo de “revolucionário” naquela ultrapassagem bárbara de si mesmo. À vista portanto não só daquele lapso editorial e de uma dúzia de outros pronunciamentos de mesmo quilate, pode-se dizer que os objetivos de guerra da Ditadura foram plenamente alcançados, diante do quê, entrou em recesso. A Abertura foi na verdade uma contenção continuada. Acresce que além de abrandada, a Ditadura começou também a encolher. Pelas novas lentes revisionistas, a dita cuja só teria sido deflagrada para valer em dezembro de 1968, com o AI-5 — retardada, ao que parece, por motivo de “efervescência” cultural tolerada — e encerrada precocemente em agosto de 1979, graças à auto-absolvição dos implicados em toda a cadeia de comando da matança. [11] O que vem por aí? Negacionismo à brasileira? Quem sabe alguma variante local do esquema tortuoso de Ernst Nolte, que desencadeou o debate dos historiadores alemães nos anos 80 acerca dos Campos da Morte. Por essa via, a paranóia exterminista da Ditadura ainda será reinterpretada como o efeito do pânico preventivo disparado pela marcha apavorante de um Gulag vindo em nossa direção. Não é elocubração ociosa: a doutrina argentina dos “dois demônios”, por exemplo, que se consolidou no período Alfonsin, passou por perto. [12]
Nessas condições, pode-se até entender o juízo aparentemente descalibrado de Tales Ab’Sáber como uma espécie de contraveneno premonitório, e que tenha, assim, estendido até onde a vista alcança a fratura histórica na origem do novo tempo brasileiro, cuja unidade de medida viria a ser 1964, o verdadeiro ano que de fato não terminou. Um tempo morto, esse em que a Ditadura não acaba nunca de passar. É assim que Tales interpreta a agonia do poeta, jornalista e conselheiro político Paulo Martins, que emenda o fecho na abertura de Terra em transe: uma “queda infinita do personagem no branco e no vazio final que nunca acaba”. O mundo começou a cair no Brasil em 1964 e continuou “caindo para sempre”, salvo para quem se iludiu enquanto despencava. [13] Será preciso alertar logo de saída? Como nunca se sabe até onde a cegueira chegou, não custa repetir: está claro que tudo já passou, que nossa terra não está mais em “transe”, por mais estranha (quase na acepção freudiana do termo) que pareça a normalidade de hoje. Ainda segundo Tales, tão estranha quanto a fantasia neurotizante que nos governa, a saber: ora é fato que a guerra acabou como assegura a lei celerada da anistia, ora não acabou nem nunca acabará, pois é preciso derrotar de novo e sempre o ressentimento histórico dos vencidos, para não mencionar ainda as demais figurações do inimigo, no limite, a própria nação, que precisa ser protegida contra si mesma. [14] A guerra acabou, a guerra não acabou: tanto faz, como no caso da chaleira de Freud, de qualquer modo devolvida com o enorme buraco que a referida fantasia nem mesmo cuida de encobrir. O que importa é que um pólo remeta ao outro, configurando o que se poderia chamar de limiar permanente, sobre o qual pairam tutela e ameaça intercambiáveis.
Minha reconstituição da paradoxal certeza histórica de um psicanalista talvez pareça menos arbitrária recorrendo ao raciocínio do historiador Paulo Cunha acerca do contraponto entre Moderação e Aniquilamento, que percorre a formação da nacionalidade desde os seus primórdios. [15] A guerra acabou, quer dizer (deve entrar de uma vez na cabeça dos recalcitrantes): violações zeradas (na lei ou na marra), reconciliação consolidada (novamente consentida ou extorquida). Mas a guerra não acabou, de novo que se entenda: é preciso anular a vontade do inimigo de continuar na guerra, e anular até o seu colapso. Clausewitz dixit. Pois bem: historicamente, Moderação é a senha de admissão ao círculo do poder real, cujo conservadorismo de nascença — progresso, modernização, etc, são melhoramentos inerentes, porém intermitentes, ao núcleo material do mando proprietário — exige provas irretorquíveis de confiabilidade absoluta dos que batem à sua porta. Assim, sempre que as elites de turno de reconciliam, uma lei não escrita espera dos pactários – na acepção política rosiana do termo [16] — demonstrações inequívocas de convicções moderadas. Para que não haja dúvida do alcance deste pacto fundador, basta um olhar de relance para as patéticas contorções dos dois últimos presidentes do país. Em suma, refratários de qualquer procedência serão recusados. Novamente para que não haja dúvidas: aos eventuais sobreviventes de tendências contrárias à Moderação/Conciliação/Consolidação das Instituições etc, acena-se com o espectro do supracitado Aniquilamento, cuja eventualidade estratégica sempre paira no ar, que o digam a Guerra de Canudos e a Guerrilha do Araguaia. Também por este prisma não se pode dizer sem mais que a fantasia de Tales não seja exata.
Notas de rodapé
[*] Mesmo correndo o risco de double emploi, achei que viria ao caso lastrear minha resposta à pergunta O que resta da Ditadura? com material colhido na contribuição de autores reunidos no presente volume.
[1] “Brasil, a ausência significante política”, neste volume.
[2] No levantamento de Maria Helena Moreira Alves, Estado e oposição no Brasil (1964-1984) (Petrópolis: Vozes, 1985). Ver ainda Martha Huggins, Polícia e política (São Paulo: Cortez 1998; ed. inglesa, 1988) e Janaina Almeida Teles, Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil (USP FFLCH: 2005).
[3] Ver o capítulo de Elio Gaspari, “O mito do fragor da hora”, A ditadura envergonhada (São Paulo: Cia. das Letras, 2002). Segundo o autor, desde o começo do governo Castelo Branco, a tortura já era “o molho dos inquéritos”. Martha Huggins também identifica nos primeiros arrastões puxados pelo Golpe a evidente metamorfose da “polícia política”. Cf. op.cit. cap.7.
[4] Ver Elio Gaspari, A ditadura escancarada (São Paulo: Cia. da Letras, 2002, pp. 62-64). Para um estudo da normalização da patologia empresarial do período, o documentadíssimo filme de Chaim Litewski, Cidadão Boilesen, apresentado em março de 2009 na mostra É tudo verdade.
[5] Episódio das Memórias do Cárcere, recentemente evocado por Fábio Konder Comparato, no Prefácio à segunda edição do Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil, 1964-1985 (São Paulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009).
[6] Poder y desaparición: los campos de concentración en Argentina (Buenos Aires: Colihue, 1998). Sua autora, Pilar Calveiro, “ficou desaparecida” – a expressão é essa mesma – durante um ano e meio em vários campos da morte na Argentina. Para um breve comentário, Beatriz Sarlo, Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva (São Paulo: Cia. das Letras, 2007, pp. 80-89).
[7] Paul Virilio, Sylvere Lotringer, Guerra pura: a militarização do cotidiano (São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 85-87).
[8] Edson Luis de Almeida Teles, Brasil e África do Sul: os paradoxos da democracia (São Paulo: USP FFLCH, 2006, cap.2).
[9] Eric Hobsbawm, A era dos extremos (São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p.433).
[10] Luis Felipe de Alencastro, “1964: por quem dobram os sinos?”, publicado originalmente na FSP, 20.05.94, incluído no livro organizado por Janaina Teles, Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? (São Paulo: Humanitas, 2ª ed. 2001). Para o argumento original, do mesmo autor, “O fardo dos bacharéis” (Novos Estudos, CEBRAP, nº19, 1987).
[11] Marco Antonio Villa, “Ditadura à brasileira”, FSP, 05.03.2009, p.A-3. Sem dúvida, a História é o inventário das diferenças, como queria Paul Veyne, porém na mesma medida em que souber reconhecer o Mesmo no Outro. Sem o quê, sequer saberemos quem somos ao despertar. Mas talvez seja este mesmo o Desejo do qual os lacanianos insistem que uma sociedade derrotada como a nossa cedeu. A sintaxe pode ser arrevesada, mas o juízo não. Cf. por exemplo, Maria Rita Kehl, O tempo e o cão: a atualidade das depressões (São Paulo: Boitempo, 2009).
[12] Ver a respeito, Luis Roniger e Mario Sznajder, O legado das violações dos direitos humanos no Cone Sul (São Paulo: Perspectiva, 2004, pp. 278-281).
[13] A verdadeira desordem no tempo brasileiro provocada pelo buraco negro de 1964 me parece constituir o nervo das reflexões de Ismail Xavier acerca da constelação formada por Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal. Cf. por exemplo Alegorias do subdesenvolvimento (São Paulo: Brasiliense, 1993). Com sorte, espero rever essa mesma desordem brasileira do tempo pelo prisma da Exceção. Por enquanto, apenas uma Introdução. Um outro ponto cego decorrente desta mesma matriz, me parece contaminar a expectativa de que a Ditadura terminará enfim de passar quando o último carrasco for julgado. Fica também para um outro passo este pressentimento gêmeo acerca das ciladas do imperativo Nunca Mais que a Ditadura nos impôs. Para um sinal de que não estou inventando um falso problema, veja-se as observações de Jeanne Marie Gagnebin acerca da famosa reformulação adorniana do imperativo categórico – direcionar agir e pensar de tal forma que Auschwitz não se repita. Curioso imperativo moral, nascido da violência histórica e não de uma escolha livre. Cf. “O que significa elaborar o passado”, Lembrar escrever esquecer (São Paulo: ed. 34, 2006, pp.99-100). Pensando numa lista longa que continua se alongando, de Srebrenica a Jenin, arremata Jeanne Marie, fica difícil evitar o sentimento de que o novo imperativo categórico não foi cumprido, enquanto “as ruínas continuam crescendo até o céu”.
[14] Conforme advertência recente do Gal. Luiz Cesário da Silveira Filho, despedindo-se do Comando Militar do Leste com um discurso exaltando o golpe, ao qual se referiu como “memorável acontecimento”. Com efeito. FSP 12.03.2009, p.A-9.
[15] Paulo Ribeiro da Cunha, “Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico”, neste volume.
[16] Da perspectiva em que Willi Bolle estudou o Grande Sertão: Veredas – as metamorfoses do sistema jagunço como um regime de exceção permanente – as Constituições do país sempre foram antes de tudo um Pacto, não sendo muito difícil adivinhar quem leva a parte do diabo. Cf. Willi Bolle, Grandesertão.br (São Paulo: ed. 34, 2004)
1964, o ano que não terminou (Parte 2)
2
Mas pensando bem, a enormidade de nosso psicanalista é quase uma evidência. Como a bem dizer está na cara, ninguém vê. Basta no entanto olhar para o Estado e a sua Constituição, por ela mesmo definido em 1988 como sendo Democrático e de Direito. O que poderia então restar da Ditadura? Nada, absolutamente nada, respondem em coro, entre tantas outras massas corais de contentamento, nossos cientistas políticos: depois do período épico de remoção do chamado entulho autoritário, passamos com sucesso ainda maior à consolidação de nossas instituições democráticas — entre elas a grande propriedade da terra e dos meios de comunicação de massa: quem jamais se atreveria a sequer tocar no escândalo desta última instituição? —, que de tão fortalecidas estão cada vez mais parecidas com um bunker. Na intenção dos mais jovens e desmemoriados em geral, um trecho bem raso de crônica: o bloco civil-militar operante desde 1964 arrematou o conjunto da obra inaugurando a Nova República com um golpe de veludo, afastando Ulisses Guimarães da linha sucessória de Tancredo, o qual, por sua vez, havia negociado com os militares sua homologação pelo Colégio Eleitoral, de resto, legitimado pela dramaturgia cívica das Diretas. Neste passo chegamos à próxima anomalia institucional, um Congresso ordinário com poderes constituintes. Assim sendo, poderemos ser mais específicos na pergunta de fundo: O que resta da ditadura na inovadora Constituição dita Cidadã de 1988? Na opinião de um especialista em instituições coercitivas, Jorge Zaverucha, pelo menos no que se refere às cláusulas relacionadas com as Forças Armadas, Polícias Militares e Segurança Pública — convenhamos que não é pouca coisa —, a Carta outorgada pela Ditadura em 1967, bem como sua emenda de 1969, simplesmente continua em vigor. Simples assim. [17]
Porém suas conclusões não são menos dissonantes do que as repertoriadas até agora. A começar pela mais chocante de todas (se é que este efeito político ainda existe), a constitucionalização do golpe de estado, desde que liderado pelas Forças Armadas, que passaram a deter o poder soberano de se colocar legalmente fora da lei. Passado o transe da verdadeira transição para o novo tempo que foi o regime de 64, este saiu de cena, convertendo sua exceção em norma. Tampouco o poder de polícia conferido às Forças Armadas precisou esperar por um decreto sancionador de FHC em 2001. Desde 1988 estava consagrada a militarização da Segurança Pública. A Constituição já foi emendada mais de sessenta vezes. Em suma, trivializou-se. Acresce que este furor legislativo e constituinte emana de um executivo ampliado e de fronteiras nebulosas, governando rotineiramente com medidas provisórias com força de lei. Como além do mais, o artigo 142 entregou às Forças Armadas a garantia da Lei e da Ordem, compreende-se o diagnóstico fechado por nosso autor: sem dúvida, “há no Brasil lei (rule by law), mas não um Estado de Direito (rule of law)”. Num artigo escrito no auge da desconstitucionalização selvagem patrocinada pelo governo FHC, o jurista Dalmo Dallari assegurava que na melhor das hipóteses estaríamos vivendo num Estado de mera Legalidade Formal, na pior, retomando o rumo das Ditaduras constitucionais. [18]
A esta altura já não será demais recordar que a expressão Ditadura Constitucional — revista do ângulo da longa duração do governo capitalista do mundo — foi empregada pela primeira vez por juristas alemães para assinalar os poderes excepcionais concedidos ao presidente do Reich pelo artigo 48 da Constituição de Weimar [19] . Desde então, a favor ou contra, tornou-se uma senha jurídica abrindo passagem para o que se poderia chamar de Era da Exceção, que se inaugurava na Europa como paradigma de governo diante do desmoronamento das democracias liberais, desidratadas pela virada fascista das burguesias nacionais que lhes sustentavam a fachada. Resta saber se uma tal Era da Exceção se encerrou com a derrota militar do fascismo. Ocorre que três anos depois de 1945, mal deflagrada a Guerra Fria, já se especulava, a propósito da emergência nuclear no horizonte do conflito — para muitos um novo capítulo da Guerra Civil Mundial, iniciada em 1917 — se não seria o caso de administrar, formal e legalmente, como se acabou de dizer, um tal estado de emergência permanente mediante uma Ditadura Constitucional. Na recomendação patética de Clinton Rossiter, um capítulo clássico na matéria: “nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia” [20]. Como a Bomba não veio ao mundo a passeio nem para uma curta temporada, sendo além do mais puro nonsense a idéia de um controle democrático de sua estocagem e emprego, sem falar na metástase da proliferação nuclear, não haverá demasia em sustentar a idéia de que sociedades disciplinadas pelo temor de um tal acidente absoluto passaram a viver literalmente em estado de sítio, não importa qual emergência o poder soberano de turno decida ser o caso.
Voltando à linha evolutiva traçada por Agamben: aquele deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo, baseado na indistinção crescente entre legislativo, judiciário e executivo, transpôs afinal um patamar de indeterminação entre democracia e soberania absoluta — o que acima se queria dizer evocando a terra de ninguém em que ingressamos entre Legalidade Formal e Estado de Direito. Não surpreende então que, à vista do destino das instituições coercitivas descritas há pouco e do histórico de violações que vêm acumulando no período de normalização pós-ditatorial, alguns observadores da cena latino-americana falem abertamente da vigência de um Não-Estado de Direito numa região justamente reconstitucionalizada, notando que a anomalia ainda é mais acintosa por ser esse o regime sob o qual se vira — é bem esse o termo — a massa majoritária dos chamados underprivileged [21] . Não-direito igualmente para o topo oligárquico? No limite, a formulação não faz muito sentido: como Franz Neumann demonstrou em sua análise da economia política do IIIº Reich, o grande capital pode dispensar inteiramente as formalidades da racionalidade jurídica idealizada por Max Weber [22]. Olhando todavia a um só tempo para a base e o vértice da pirâmide, seria mais apropriado registrar a cristalização de um Estado Oligárquico de Direito [23]. Porém assim especificado: um regime jurídico-político caracterizado pela ampla latitude liberal-constitucional em que se movem as classes confortáveis, por um lado, enquanto sua face voltada para a ralé que o recuo da maré ditatorial deixou na praia da ordem econômica que ela destravou de vez, se distingue pela intensificação de um tratamento paternalista-punitivo [24]. Se fôssemos rastrear esse arranjo social-punitivo não seria muito custoso atinar com sua matriz. Aliás custoso até que é, tal o fascínio que ainda exerce o invólucro desenvolvimentista no qual se embrulhou a Ditadura.
De volta ao foco no bloco civil-militar de 1964 que não se desfez — menos por uma compulsão atávica das corporações militares do que inépcia das elites civis na gestão da fratura nacional, consolidada por uma transição infindável, sem periodicamente entrar em pânico diante de qualquer manifestação mais assertiva de desobediência civil, como uma greve de petroleiros ou de controladores de vôo — a democracia meramente eleitoral em que resvalamos, continua Zaverucha, se perpetua girando em falso, círculo vicioso alimentado pela ansiedade das camadas proprietárias, pois ainda não estão plenamente convencidas, como nunca estarão, de que o tratamento de choque da Ditadura apagou até a memória de que um dia houve inconformismo de verdade no país.
3
Ao inaugurar seu primeiro mandato anunciando que encerraria de vez a Era Vargas, o professor Fernando Henrique Cardoso deveria saber pelo menos que estava arrombando uma porta aberta. Pois foi exatamente esta a missão histórica que a Ditadura se impôs, inclusive na acepção propriamente militar do termo “missão”. Erraram o alvo em agosto de 1954; reincidiram em novembro de 1955; deram outro bote em 1961, para finalmente embocar em 1964, arrematando o que a ciência social dos colegas do futuro presidente batizaria de “colapso do populismo”.
Aliás foi esse — dar o troco ao getulismo — o mandato tácito e premonitório que a endinheirada oligarquia paulista delegara à Universidade de São Paulo, por ocasião da sua fundação em 1934. No que concerne à Faculdade de Filosofia, entretanto, a encomenda não vingou. Pelo contrário, muito à revelia, nela prosperou uma visão do país decididamente antioligárquica, desviante da Moderação Conservadora, e que Antonio Candido chamaria de “radical”, redefinida como um certo inconformismo de classe média, nascido do flanco esquerdo da Revolução de 30, para se reapresentar encorpado, depois da vitória da aliança anti-fascista na Segunda Grande Guerra, na forma de uma “consciência dramática do subdesenvolvimento” a ser superado com ou sem ruptura, conforme as variações da conjuntura e das convicções predominantes, ora de classe ou mais largamente nacionais, e cujo ímpeto transformador foi precisamente o que se tratou de esmagar e erradicar em 1964. Quiseram no entanto as reviravoltas do destino que aquele antigo voto piedoso fosse enviesadamente atendido, quem diria, pelo que havia de mais avançado na sociologia de corte uspiano, que passou a atribuir o sucesso acachapante do Golpe à inconsistência de uma entidade fantasmagórica chamada Populismo. Só recentemente este mito começou a ser desmontado, e redescoberto um passado de grande mobilização social das “pessoas comuns”, trabalhadores surpreendentemente sem cabresto à frente [25]. É bom insistir: foi justamente a capacidade política de organização daquelas “pessoas comuns” o alvo primordial do arrastão aterrorizante que recobriu o país a partir de 1964. E o continente. Num estudo notável, Greg Grandin, recuou essa data para 1954, marcando-a com a deposição de Jacobo Arbenz na Guatemala, estendendo a ação dissolvente do Terror Branco, desencadeado desde então, no tempo e espaço latino-americano, até os derradeiros genocídios na América Central insurgente dos anos 80. A seu ver, ao longo de mais de três décadas de Contra-Revolução — é este o nome — no continente, perseguiu-se de fato um só objetivo: extinguir “o poder formativo da política enquanto dimensão primordial do encaminhamento das expectativas humanas”. A Guerra Fria latino-americana (se fizermos questão de manter a nomenclatura consagrada) girou basicamente em torno desse eixo emancipador. [26]
Como falei em Contra-Revolução é preciso sustentar a nota. Começo por uma evocação. Até onde sei, uma das raras vozes na massa pragmático-progressista na ciência social uspiana a não se conformar com o fato consumado na transição pactuada com os vencedores, mas sobretudo a contrariar a ficção da democracia consolidada, foi a de Florestan Fernandes. Trinta anos depois do golpe, ainda teimava em dizer que a Ditadura, como constelação mais abrangente do bloco civil-militar que a sustentara, definitivamente não se dissolvera no Brasil. O que se pode constatar ainda relendo sua derradeira reflexão a respeito, enviada ao Seminário organizado por Caio Navarro de Toledo [27]. Não estou desenterrando esta opinião dissonante apenas para registrar a dissidência ilustre que nos precedeu na resposta à pergunta O que resta da Ditadura? É que sua visão daquela novíssima figura da exceção — nos termos de nossa problematização de agora — segundo o paradigma da Contra-Revolução Preventiva (aliás, quanto à terminologia mais adequada, é bom lembrar que os próprios generais golpistas nunca se enganaram a respeito) entronca numa respeitável, porém soterrada pelo esquecimento, tradição explicativa da guerra social no século passado, que uma hora próxima interessará ressuscitar, quanto mais não seja por vincular a normalidade de agora à brasa dormida do Terror Branco que varreu a América Latina por 3 décadas, como se acabou de sugerir. Refiro-me — apenas para registrar — ao estudo pioneiro de Arno Mayer, Dinâmica da contra-revolução na Europa (1870-1956) [28]. Relembro a propósito que um ano depois, em 1972, Marcuse publicava um livro com o título Contra-revolução e revolta [29], cujas páginas de abertura, escritas no rescaldo repressivo na virada dos 60 para os anos 70, principiam evocando a nova centralidade da tortura na América Latina (Pinochet e a Junta Argentina ainda não haviam entrado em cena …), as novas leis de exceção na Itália e na Alemanha, para assinalar então o paradoxo de uma contra-revolução se desenrolando a todo vapor na ausência de qualquer revolução recente ou em perspectiva. Enigma logo explicado quando começaram a pipocar as revoluções, em Portugal, no Irã, na Nicarágua etc. Está claro que Marcuse sonhava alto: sendo largamente preventiva, a contra-revolução em curso antecipava a ameaça de uma ruptura histórica cuja precondição dependia da interrupção do continuum repressivo que irmanava, na concorrência, o socialismo real ao progressismo capitalista, já que só assim a esquerda poderia se desvencilhar do fetichismo das forças produtivas.
Retomando o fio. Arno Mayer estava sobretudo interessado em descartar o conceito encobridor de Totalitarismo, bem como o que chamava de eufemismo da “Guerra Fria”, cuja função era escamotear o verdadeiro conflito em curso no mundo desde que as “Potências” vitoriosas na Primeira Guerra Mundial formaram uma outra Santa Aliança sob liderança americana para esmagar a revolução européia iniciada em 1917 e que nos anos 20 já assumira as proporções de uma Guerra Civil Mundial em que se confrontavam Revolução e Contra-Revolução, para além da mera rivalidade de sistemas em disputa por uma supremacia imaginária [30]. Pois bem: a tese inovadora de Greg Grandin mencionada acima está ancorada nesta visão cujos possíveis limites não são por certo os do estereótipo. Sobretudo o clichê que costuma colocar na vasta conta da Guerra Fria e seu efeito colateral mistificador dito “guerra suja” o complexo social-punitivo que se consolidou com a generalização do estado de exceção contemporâneo na segunda metade do século XX latino-americano [31]. Concedendo o que deve ser concedido a essa fantasia de contenção ou concorrência letal entre capitalismo e comunismo, a Longa Guerra social Latino-americana, como seria mais correto dizer, em lugar de afirmar que a Guerra Fria fez isto ou aquilo neste ou naquele país, foi sim uma fase mais ampla e intensificada daquela Guerra Civil Mundial, devendo portanto ser entendida como Revolução e Contra-Revolução. Sabemos quem venceu e como. A pálida sombra de democracia que hoje passa por tal em nosso continente, segundo Grandin, é o real legado do Terror contra revolucionário e como Greg escrevia no auge do Projeto para um Novo Século Americano, não pode deixar de observar: a definição de democracia que hoje se vende mundo afora como a melhor arma na Guerra contra o Terror é ela mesma um produto do Terror. Estudando os casos do Chile e da Nicarágua, William Robinson chega a uma conclusão análoga quanto à “baixa intensidade” dessas democracias pós-terror contra-revolucionário [32]. No capítulo argentino de seu livro O estado militar na América Latina [33], Alain Rouquié, por sua vez, esbarra na mesma perplexidade a que aludimos várias vezes ao longo do presente inventário de violações e patologias positivadas: a violência sem precedentes históricos — e estamos falando da Argentina —, desencadeada pelo golpe de março de 1976, que o aproxima de uma verdadeira ruptura contra-revolucionária. Mesmo assim, como entender a persistência desse verdadeiro Golpe de Estado Permanente cuja máquina de matar continua a todo vapor mesmo depois da guerrilha ter sido militarmente anulada? Ainda mais espantoso, prossegue Rouquié, é menos a dimensão terrorista contra-revolucionária dessa última metamorfose da violência policial-militar do que a convivência sem maiores états d’âme da classe política tradicional com a demência assassina do aparelho repressivo.
Portanto tem lá sua graça meio sinistra que os ideólogos do regime dito trivialmente neoliberal acenassem com o espantalho do populismo econômico dos… militares para implantar reformas desenhadas nada mais nada menos do que pela engenharia anti-Vargas do estado de exceção fabricado nos laboratórios do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões (1964-1967). Assim, começando pelo fim, ao contrário da opinião corrente tanto à direita quanto à esquerda (esquerda biograficamente falando), a celebrada Lei de Responsabilidade Fiscal — criminalizante para os entes subnacionais, “excepcionando” porém a União no que tange principalmente o serviço da dívida pública —, longe de iniciar uma nova fase das finanças públicas brasileiras, simplesmente arremata um processo iniciado pela ditadura nos anos 70, como se demonstra no breve e fulminante estudo de Gilberto Bercovici sobre a persistência do direito administrativo gerado pela tabula rasa do Golpe [34]. Do Banco Central ao Código Tributário, passando pela Reforma Administrativa de 1967, a Constituição de 1988 incorporou todo o aparelho estatal estruturado sob a Ditadura. É preciso voltar a lembrar também que o discurso da Ditadura era o da ortodoxia econômica, que o mesmo Estado delinqüente, cujos agentes executavam uma política de matança seletiva, se declarava, nas constituições outorgadas, meramente subsidiário da iniciativa privada, e que assim sendo as estatais deveriam operar não só com a eficiência das empresas privadas mas também com total autonomia em relação ao governo “oficial”, mas não em relação ao sorvedouro dos negócios privados. Vem da Ditadura a consagração da lógica empresarial como prática administrativa do setor público. A única inovação da celebrada Reforma Gerencial do Estado foi “trazer como novidade o que já estava previsto na legislação brasileira desde 1967”. Até as agências reguladoras — cuja captura é perseguida por todo tipo de formações econômicas literalmente fora da lei, numa hora de flexibilização jurídico-administrativa totalmente ad hoc, o que vem a ser a lógica mesmo da exceção — podem ser surpreendidas em seu nascedouro, o decreto-lei 200/1967, editado com base nos poderes excepcionais conferido pelo Ato Institucional nº 4.
Restauração “neoliberal” do governo de exceção por decretos administrativos? Seria trocar uma mistificação ideológica — o presumido verdadeiro fim da Era Vargas — por uma equívoco conceitual: como não houve interrupção, da Lei de Anistia ao contragolpe preventivo Collor/Mídia, passando pelo engodo de massas das Diretas, a idéia de uma Restauração não se aplica. “Neoliberal”, além de ser uma denominação oca para a reconfiguração mundial do capitalismo, dá a entender coisa pior, que a Ditadura, tudo somado, teria sido “desenvolvimentista”. Acrescentando assim, à vitória da Contra-Revolução, uma capitulação ainda mais insidiosa: do primeiro golpe, afinal, nos refizemos, à medida em que a carapaça autoritária foi se tornando um estorvo até para o big business; quando nos preparávamos para o reencontro — democrático é claro, apesar de todas as pactuações — com o nosso destino de desenvolvimento e catching up, veio um segundo golpe, se possível mais letal, pois neoliberalismo e “desmanche” são equivalentes, já que em contraste, a Ditadura não deixou de “institucionalizar”… É bom esfregar os olhos, pois a mesma narrativa prossegue: também nos recuperamos do golpe neoliberal, cuja substância terminou de derreter sob o sol da última crise, tudo somado novamente, reatamos com a normalidade dos nossos índices históricos de crescimento etc. O que foi contrabandeado nesse rodeio todo — percorrido no sentido anti-horário da esquerda, digamos, histórica — é que no fundo a Ditadura foi um ato de violência contornável e cuja brutalidade se devia muito mais ao cenário de histeria da Guerra Fria. Com ou sem golpe, a modernização desenvolvimentista cedo ou tarde entraria em colapso, de sorte que a rigor o regime militar nada mais foi do que o derradeiro espasmo autoritário de um ciclo histórico que se encerraria de qualquer modo mais adiante, e não o tratamento de choque que partiu ao meio o tempo social brasileiro, contaminando pela raiz o que viria depois. Seria o caso de observar que o giro argumentativo evocado acima é ele mesmo um flagrante sintoma da sociedade “bloqueada” que a Grande Violência do século XX brasileiro nos legou: no referido reconto, refeito ora com a mão esquerda ora com a mão direita, o trauma econômico simplesmente desapareceu, ele também [35]. E quando aflora, assume invariavelmente a forma brutal da idiotia política costumeira. Por exemplo, toda vez que um sábio levanta a voz para dizer que o país carece urgentemente de um “choque de capitalismo” — e logo numa ex-colônia que nasceu sob o jugo absoluto de um nexo econômico exclusivo.
Notas de rodapé
[17] Ver Jorge Zaverucha, FHC, forças armadas e polícia (Rio de Janeiro: Record, 2005). E mais particularmente, sua contribuição para este volume “Relações civil-militares: o legado autoritário na Constituição brasileira de 1988”. No que segue, acompanho de perto o seu modelo explicativo, extrapolando um pouco na maneira de conceituar os resultados de suas análises.
[18] Cf. Dalmo de Abreu Dallari “O Estado de Direito segundo Fernando Henrique Cardoso”, revista praga nº3 (São Paulo: HUCITEC, 1997)
[19] Sigo em parte a recapitulação de Giorgio Agamben, Estado de exceção (São Paulo: Boitempo, 2004).
[20] Clinton Rossiter, Constitutional Dictatorship: Crisis Government in the Modern Democracies (1948), apud Agamben, op.cit. p.22.
[21] Cf., por exemplo, Juan Méndez, Guillermo O’Donnell e Paulo Sérgio Pinheiro (orgs.), Democracia, violência e injustiça: o Não-Estado de Direito na América Latina (São Paulo: Paz e Terra, 2000). Há um tanto de inocência nesta caracterização. A começar pelo lapso tremendo — quando se pensa na consolidação da impunidade dos torturadores e “desaparecedores” — que consiste em expressar sincera frustração causada pela quebra da expectativa de que “a proteção dos direitos humanos obtidas para os dissidentes políticos no final do regime autoritário seria estendida a todos os cidadãos”. De sorte que sob a democracia ainda prevalece um sistema de práticas autoritárias herdadas, seja por legado histórico de longa duração ou sobrevivência socialmente implantada no período anterior e não elimináveis por mera vontade política. Resta a dúvida: o que vem a ser um processo de consolidação democrática “dualizado” pela enésima vez em dois campos, um “positivo”, outro “negativo”. O autor cuja deixa aproveitamos, diria que a persistência da aliança com as instituições coercitivas asseguram aos integrantes do campo positivo um hedge face aos riscos futuros implicados numa tal assimetria entre os “direitos” dos primeiros e o “destino” desafortunado dos que circulam entre os campos negativos. Dúvida que também acossa os autores da referida obra coletiva: até quando democracias sem cidadania plena para a massa pulverizada das não-elites? O que vem a ser “um Estado de Direito que pune preferencialmente os pobres e os marginalizados”? Na gramática dos Direitos Humanos, como se costuma dizer, só pode ser erro de sintaxe.
[22] Franz Neumann, Béhémoth: structure et pratique du national-socialisme (Paris: Payot, 1987). Ver a respeito o excelente capítulo de William Scheuerman, Between the Norm and the Exception (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1994, cap.5). Embora reveladora, não se tratava de uma circunstância trivialmente excepcional, como voltou a sugerir o mesmo William Scheuerman, agora a propósito da dinâmica mundializada da acumulação: a cultuada afinidade eletiva entre o capitalismo moderno e the rule of law, que Weber enunciara como uma cláusula pétrea, talvez tenha sido não mais que um efêmero entrecruzamento histórico. Cf.William Scheuerman, Liberal Democracy and the Social Acceleration of Time (Baltimore: John Hopkins U.P., 2004, pp. 151-158).
[23] Estou empregando abusivamente — et pour cause — uma expressão original, até onde sei, de Jacques Rancière, La haine de la démocratie (Paris: La Fabrique, 2005). Não posso me estender a respeito, mas desconfio que o argumento geral do livro nos incluiria no pelotão dos inconformados com o presumido escândalo libertário da Democracia. E por isso mesmo teimaríamos na absurda convicção de que “o conteúdo real de nossa democracia reside no ‘estado de exceção’” (p.23). Daí a necessária correção de tamanho disparate: não vivemos em campos de concentração submetidos às leis de exceção de um governo biopolítico etc, pelo contrário, num Estado de Direito, só que “oligárquico”. Quer dizer num Estado em que a pressão das oligarquias — de resto, como sabemos desde Robert Mitchels, a oligarquização é uma tendência inerente a toda forma de poder organizado — vem a ser justamente limitada pelo duplo reconhecimento da soberania popular e das liberdades individuais (cf. p.81). Nos dias que correm, impossível discordar de um tal programa garantista. E no entanto, para início de conversa, as derrogações emergenciais do Direito, que vão configurando a exceção jurídica contemporânea, são cada vez mais a regra. A bem dizer, toda norma, mesmo constitucional, contém algo como uma cláusula suspensiva. Numa palavra, mesmo nesse exemplar Estado europeu de Direito, porém oligárquico, o Direito está perdendo o monopólio da regulação (cf.François Ost, Le temps du droit, Paris, Odile Jacob, 1999, cap IV). Como me pareceria um igual e simétrico disparate suspeitar desse jurista, aliás belga, de ódio enrustido e ressentido da democracia, observo que o indigitado Agamben não está dizendo coisa muito diferente desse diagnóstico do “estado de urgência” em que ingressamos com a absorção do direito pelo imperativo gestionário. E o curioso é que Rancière também não, quando reflete sobre as patologias da democracia consensual. Pois então: a “exceção” normalizada de agora se confunde, desde seu renascimento histórico, com a ampliação dos poderes governamentais desencadeada durante a Primeira Guerra Mundial, mesmo entre os não-beligerantes, como a Suíça, com a quebra da “hierarquia entre lei e regulamento, que é a base das constituições democráticas, delegando ao governo um poder legislativo que deveria ser competência exclusiva do Parlamento” (Agamben, op.cit. p.19).
[24] Para esta caracterização do novo Estado “dual”, ver, por exemplo, entre tantos outros, Loïc Wacquant, Punir os pobres (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001). Um Estado de Direito tão punitivo quanto o regime que o precedeu, ou engendrou, funciona como uma polícia de fronteira, no caso a fronteira mesma do direito, que deixa de sê-lo quando atravessado por uma divisória apartando amigos e inimigos. Para um estudo recente do funcionamento desse Estado “bifurcado” na periferia da cidade de São Paulo, ver Gabriel de Santis Feltran, “A fronteira do direito: política e violência na periferia de São Paulo”, artigo posteriormente incorporado em sua tese de doutoramento, Fronteiras de Tensão, Unicamp, 2008.
[25] Cf. Jorge Ferreira, (org.), O populismo e sua história (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, em particular, Daniel Aarão Reis Filho, “O colapso do colapso do populismo”. E ainda do mesmo Jorge Ferreira, O imaginário trabalhista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005).
[26] Cf. Greg Grandin, The Last Colonial Massacre: Latin –America in the Cold War (Chicago: Chicado UP, 2004)
[27] Cf. Caio Navarro de Toledo (org.), 1964: Visões críticas do golpe (Campinas: Edunicamp 1997)
[28] Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; edição norte-americana de 1971.
[29] Tradução francesa de 1973 pela Editora Seuil.
[30] Para a genealogia da expressão Guerra Civil Européia, e depois, Mundial, ver Luciano Canfora, A democracia: história de uma ideologia (Lisboa: Edições 70, 2007, cap.XII).
[31] O constructo Guerra Fria já foi desmontado, por exemplo, entre outros, por Mary Kaldor The Imaginary War (Cambridge: Blackwell, 1990) e Noam Chomsky, Contendo a democracia (Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2003).
[32] Cf. Willian Robinson, Promoting Poliarchy (Cambridge, UP, 1996).
[33] São Paulo: Alfa Omega, 1984. pp 325-326
[34] Gilberto Bercovici, “ ‘O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece’: a persistência da estrutura administrativa de 1967”. Ver ainda Gilberto Bercovici e Luiz Fernando Massonetto, “A constituição dirigente invertida: a blindagem da constituição financeira e a agonia da constituição econômica”, Boletim de Ciências Econômicas, vol.XLIX, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2006.
[35] A idéia de uma sociedade assombrada por um grande “bloqueio”, reforçado pelos mais diversos mecanismos de denegação e banalização dos conflitos, pode ser rastreada nos escritos recentes de Maria Rita Kehl e Vladimir Safatle. É deste último a fórmula e argumento de que a monstruosa profecia nazi da violência sem trauma acabou se cumprindo neste quarto de século de normalidade brasileira restaurada. Cf. do autor “A profecia da violência sem traumas”, OESP, 06.07.2008, p.D-6, a propósito do filme Corpo, de Rossana Foglia e Rubens Rewald, que a seu ver desenterraram a “metáfora exata desse bloqueio”.