O novo nome da democracia
Por Nilmário Miranda
Debate em torno do PNDH 3 precisa ser qualificado, separando-se a crítica do preconceito. Documento coroa processo iniciado no governo Fernando Henrique
A participação brasileira na Conferência Internacional de Direitos Humanos em Viena, em 1993, acabou tendo grande repercussão interna. Nossos representantes tiveram papel destacado nos documentos finais, como os diplomatas Gilberto Sabóia (anos depois seria secretário nacional de Direitos Humanos) e José Augusto Lindgren Alves. A emergente sociedade civil planetária via com aflição a Declaração Universal dos Direitos Humanos se tornar letra morta, e, pior ainda, ser usada nas disputas ideológicas entre potências. Viena tornou-se um marco na implementação dos direitos
humanos.
Os direitos humanos são universais; ninguém pode relativizar a dignidade de pessoa humana alegando particularismos nacionais ou adequá-los a pactos políticos para praticar ou tornar impunes crimes inenarráveis. Os direitos humanos são indivisíveis; não resolve praticar políticas igualitárias e subtrair os direitos democráticos, as liberdades civis e políticas, a participação política e o respeito às diferenças. Nem o inverso; anunciar a adesão à democracia formal e sonegar os direitos culturais, sociais e econômicos.
Direitos humanos são interdependentes; não se alcançam os direitos humanos, econômicos, sociais e culturais sem a democracia, que permite o livre curso dos conflitos de classes e dos grupos excluídos.
E mais: Viena recomendou a todos os países que estivessem saindo de períodos autoritários, totalitários ou do colonialismo, que adotassem Planos ou Programas Nacionais de Direitos Humanos e que criassem lugares nos Estados nacionais para tratar exclusivamente de direitos humanos.
De volta de Viena, a delegação brasileira passou a se reunir no Ministério da Justiça, sendo ministro Mauricio Corrêa, que junto com o que de melhor se conhecia traçou uma agenda para o país nessa área. Dois anos depois, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, sendo Nelson Jobim o ministro da Justiça e José Gregori o primeiro secretário nacional de Direitos Humanos, saiu o PNDH 1, que passou pela 1ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, convocada pela recém-instituída Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e pelo Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos. Graças a esta agenda comum, acordada entre todos, independentemente da situação de classe, partido, ideologia, religião, os direitos humanos ganharam no Brasil dimensão inédita. Poucos anos depois foi desencadeada campanha nacional e internacional sob a rubrica Direitos humanos sociais também são direitos humanos (4ª Conferência Nacional de Direitos Humanos – 1999), que redundou no PNDH 2, que começou a incorporar os direitos igualitários em 2002.
Como se observa, os dois primeiros PNDHs foram editados como decretos no governo FHC. Não deixa de soar estranho que vários críticos questionaram o PNDH 3 por tratar de temas como violência no campo, taxação de grandes fortunas, racismo, sexismo, homofobia, papel da mídia na cultura dos direitos humanos quando todos estes temas já estavam nos PNDHs anteriores. Quando eram da base parlamentar ou membros do governo, não fizeram as críticas que hoje são feitas.
Crítica e pretexto Eu dividiria as críticas em dois grandes blocos. Aquelas do tipo “não li e não gostei” e que usam o PNDH 3 apenas como pretexto para disseminar opiniões ligadas às disputas eleitorais de 2010 ou para destilar preconceitos. Este comportamento rompe com a saudável tradição de não partidarizar os direitos humanos.
E o bloco da discussão legítima e pertinente ao PNDH 3. Por exemplo, a Igreja Católica, em sua maioria, histórica defensora dos direitos humanos que estendeu seu manto protetor aos torturados, às famílias dos mortos e desaparecidos durante o regime autoritário civil-militar, que participou dos PNDHs 1 e 2 e que critica, no PNDH 3, a inclusão da descriminalização do aborto, a união homoafetiva e a ostentação ou não de símbolos religiosos em instituições públicas. Esta mesma Igreja defende o avanço da reforma agrária, inclusive com o estabelecimento de limites ao tamanho das propriedades, e uma reforma tributária para o enfrentamento da pobreza.
Também é pertinente debater se a necessária avaliação ou monitoramento de baixarias na TV, bem como os flagrantes desrespeitos aos direitos humanos, embutem ou não algum tipo de cerceamento à liberdade de expressão.
O que propõe o PNDH 3? Que seja regulamentado o artigo 221 da Constituição para que o ministério das Comunicações, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, os Ministérios da Justiça e da Cultura e a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara levem em consideração o respeito aos direitos humanos quando da outorga ou renovação de concessão de rádios ou TVs, prevendo penalidades. Que patrocínio e publicidade oficial sejam negados em meios que vinculem racismo, ofensas graves à dignidade das pessoas, sexismo, preconceitos. Criar um ranking dos veículos que destilem baixarias. Tudo isso se insere na educação em direitos humanos. Onde está o cerceamento à liberdade de expressão?
Medo à verdade Acredito que foi a proposição da instituição de uma Comissão da Verdade que desencadeou a onda de ataques ao PNDH 3. O tema do direito à memória e à verdade sempre dividiu opiniões no Brasil. O mesmo Rui Barbosa que na Oração aos moços defendeu tratar desigualmente os desiguais mandou queimar os arquivos da escravidão, queimando a história da maioria da população negra e parda.
Toda vez que se busca passar a limpo a história de violações de direitos ocorridas durante a ditadura surge a reação dos que temem a verdade, dos que não querem debater o que se passou. Mas não há como fugir. Os fantasmas só desaparecem quando jogamos luz sobre eles.
Feridas maltratadas não cicatrizam. Estamos debatendo hoje temas da abolição sonegados há 122 anos, tais como os direitos à educação; à moradia decente; à não discriminação no trabalho; à garantia do direito à propriedade para os quilombolas; à igualdade de oportunidades. Toda vez que nos dispomos a enfrentar nossas dívidas históricas surgem reações do status quo. Os direitos das mulheres são reais: impunidade ou condescendência com maridos e ex-maridos homicidas, violência doméstica, a escassa representação política das mulheres são ou não problemas reais que diminuem nossa democracia?
As ações afirmativas para garantir acesso dos afrodescendentes e indígenas à escola superior por meio de cotas provocaram a reação do conservadorismo, que alega que as políticas de igualdade racial estariam incentivando o racismo! Do mesmo modo, o decreto que regulamentou o artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição para o reconhecimento das áreas quilombolas estaria afrontando o direito à propriedade.
Os ruralistas conservadores (nem todos são) reagiram à institucionalização das audiências públicas antecedendo despejos. Na verdade, há mais de uma década desde os PNDHs 1 e 2 foram se desenvolvendo mecanismos de mediação de conflitos que fizeram despencar as mortes no campo que envergonharam nosso país.
Em 1998, quando dos 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos – e José Gregori foi um dos homenageados pela ONU –, FHC disse que “direitos humanos é o novo nome da democracia” e nós aplaudimos. Por que mudar de rumo? O presidente Lula, ao assinar o decreto que institui o PNDH 3, disse a mesma coisa: “O PNDH 3 é um verdadeiro roteiro para seguirmos consolidando os alicerces do edifício democrático: diálogo permanente entre Estado e sociedade civil; transparência em todas as esferas de governo; primazia dos direitos humanos nas políticas internas e nas relações internacionais; caráter laico do Estado; fortalecimento do pacto federativo; universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; opção pelo desenvolvimento sustentável; respeito à diversidade; combate às desigualdades; erradicação da fome e da extrema
pobreza”.
Na mesma apresentação do PNDH 3, o presidente Lula diz: “No tocante à questão dos mortos e desaparecidos políticos no período ditatorial, o PNDH 3 dá um importante passo no sentido de criar uma Comissão Nacional da Verdade, com a tarefa de promover esclarecimento público das violações de direitos humanos por agentes do Estado na repressão aos opositores. Só conhecendo inteiramente tudo o que passou naquela fase lamentável de nossa vida republicana, o Brasil construirá mecanismos seguros e um amplo compromisso consensual – entre todos os brasileiros – para que tais violações não se repitam nunca mais”.
Plural e suprapartidária O PNDH 3 prevê a criação de um grupo de trabalho que elabore um projeto de lei para ser enviado ao Congresso até abril para instituir a Comissão Nacional da Verdade, plural e suprapartidária, com mandato e prazos definidos, para passar a limpo as violações de direitos humanos. Desde quando leis aprovadas pelo Congresso num Estado de Direito, e que não podem fugir aos critérios de constitucionalidade, são autoritárias?
Outra inverdade sobre o PNDH 3 é que teria sido editado de forma autoritária. Em janeiro de 2008, após as homenagens aos mortos do Holocausto, o presidente da República convocou a Conferência Nacional de Direitos Humanos para revisar o PNDH 2. Ao longo do ano houve 137 encontros de caráter local e 27 conferências estaduais, com participação de governos municipais e estaduais e de assembleias legislativas, culminando na 11ª Conferência Nacional, realizada entre 15 e 18 de dezembro de 2008 com 1,2 mil delegados e 800 observadores em Brasília. Além disso, o PNDH 3 incorporou propostas de mais de 50 conferências nacionais realizadas desde 2003 que reuniram quase 5 milhões de pessoas. Ficou meses a fio no portal da SEDH para receber críticas e sugestões.
O PNDH 3 foi assinado pelo presidente, apresentado por 31 ministros e redigido por 15 mil militantes do bem, tudo feito às claras, com transparência e alto espírito público.
Direitos humanos continuam sendo o novo nome da democracia.
Nilmário Miranda é jornalista, presidente da Fundação Perseu Abramo e membro do Conselho Consultivo do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil. Foi ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e é autor dos livros Porque direitos humanos e Teófilo Ottoni, a
República e a utopia do Mucuri”.
Publicado no Caderno Pensar do jornal Estado de Minas em 15/3/2010