Mitos e realidades do 8 de Março
Quantas vezes não lemos uma história das origens do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, relatando um incêndio numa fábrica onde trabalhavam mulheres tecelãs? Mas a versão não é bem assim. De fato a Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague em 1910, decidiu pela realização de um dia internacional especialmente dedicado à luta das mulheres, e que foi proposto por Clara Zetkin. Se a história que tantas vezes lemos ou ouvimos não retrata realmente a realidade, é certo que esse dia se tornou a principal data de luta do movimento de mulheres em todo o mundo.
A discussão das origens do 8 de Março vem sendo realizada há mais de vinte anos. Pesquisadoras de Canadá e Espanha nos mostram que a greve de Nova York, em 1857, quando teriam morrido mais de cem operárias queimadas, nunca existiu, nesse dia. Mas se esta greve não existiu, a origem dessa data vem das lutas das mulheres trabalhadoras e das mulheres socialistas.
Uma das primeiras publicações sobre as origens do 8 de Março é o livro da pesquisadora canadense, Renée Côté, de 1984, O dia Internacional da Mulher – Os verdadeiros fatos e datas das misteriosas origens do 8 de março, até hoje confusas, maquiadas e esquecidas. Ela nos conta, de modo nada acadêmico, que certezas criadas pelos movimentos feministas são pura ficção e derruba um mito tão caro para nós feministas, que tanto lutamos para afirmar esta data, como um dia de luta das mulheres.
Hoje, existem outros estudos, acompanhados de vasta bibliografia que vão no mesmo sentido das pesquisas de Renée. No Brasil, está sendo lançado neste 8 de Março As Origens e a Comemoração do Dia Internacional das Mulheres, da historiadora espanhola Ana Isabel Álvarez González, pela SOF – Sempre Viva Organização Feminista e Editora Expressão Popular.
Foi nos anos 1960, quando o mundo vivia uma grande convulsão político-ideolológica e a bipolaridade da Guerra Fria, que esta história surgiu e acabou sendo aceita pelos dois blocos em disputa. O que aparece e vem sendo contatado em todos os cantos é que a dirigente socialista Clara Zetkin (1857-1933), integrante do Partido Comunista Alemão, propôs a data, em 1910, na Conferência das Mulheres, em homenagem às trabalhadoras tecelãs em greve que morreram em um incêndio na fábrica que trabalhavam em 8 de março de 1857.
Esta história teve origens, provavelmente, em pelo menos três fatos, dois deles ocorridos na mesma cidade de Nova York, 50 anos, depois da suposta greve. O primeiro foi uma longa greve de costureiras que durou de 22 de novembro de 1909 a 15 de fevereiro de 1910. O segundo foi um dos tantos acidentes de trabalho, ocorridos no começo do século 20, ocorrido na mesma cidade da greve das costureiras, em 1911. Nesse episódio, em 25 de março, durante um incêndio, causado pela falta de segurança nas péssimas instalações de uma fábrica têxtil, foi registrado a morte de 146 pessoas, sendo 125 mulheres. As portas da fábrica estavam fechadas, como de costume, para que as operárias não se dispersassem na hora do almoço. Esse incêndio foi, evidentemente, descrito pelos jornais socialistas, numerosos nos EUA naqueles anos, como um crime cometido pelos patrões, pelo capitalismo. E o terceiro fato remete á Revolução Russa. No dia 8 de março 1917 (23 de fevereiro no Calendário Juliano), trabalhadoras russas do setor de tecelagem entraram em greve e pediram apoio aos metalúrgicos. Para alguns historiadores da Revolução de 17, como também afirma Trotski, esta teria sido uma greve espontânea, não organizada, e seria o primeiro momento da Revolução de Outubro.
Pouco a pouco, o mito dessa greve das 129 operárias queimadas vivas se firmou e apagou da memória histórica das mulheres e dos homens outras datas reais de greves e congressos socialistas que determinaram o Dia das Mulheres, sua data de comemoração e seu caráter político. As pesquisadoras das origens do 8 de março nos afirmam que essa greve, contada tantas vezes, nunca existiu. É um mito criado a partir da confusão entre a greve de 1910, nos EUA; a de 1917, na Rússia e o incêndio de 1911, em Nova York. Em 1970, centenas de milhares de mulheres americanas, ao participarem de manifestações contra a guerra do Vietnã e com um forte movimento feminista, publicam um boletim reafirmando esse mito, e que vai se repetir mundo afora. A incorporação pela ONU do 8 de Março, em 1975, como data mundial contribuiu para essa retomada em larga escala, ao mesmo tempo que também incentivou um viés institucional da comemoração.
Essa história-mito tem mais um aspecto, pois partir dos anos 1970, o mundo todo a reproduzirá como verdadeira. Aparecerá até um pano de cor lilás, que as mulheres estariam tecendo antes da greve. Daquela greve que não existiu. “Quem conta um conto aumenta um ponto”, diz o ditado. Por que não vermelho? Porque vermelhas eram as bandeiras das mulheres da Internacional. Vermelhas eram as bandeiras de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai, delegadas dos seus partidos, na conferência na Dinamarca, em 1910.
O livro As Origens e a Comemoração do Dia Internacional das Mulheres, de Ana Isabel Álvarez González, é um livro histórico e vai retratar o debate da época, no campo do socialismo. A autora recompõe com detalhes a história da criação do Dia Internacional das Mulheres e a definição posterior de um dia unificado para sua comemoração, o 8 de março, acontecimentos diretamente vinculados à luta das mulheres socialistas. Ao mesmo tempo, aponta os dados que nos ajudam a compreender como uma versão tão diferente se impôs por tanto tempo em mais de um país.
“Recuperar o histórico do Dia Internacional das Mulheres como parte da luta social, como inegável ponto de intersecção entre a luta das trabalhadoras, do movimento socialista e da luta feminista, evidencia o caráter político dessa comemoração e, ao mesmo tempo, retoma historicamente o esforço das militantes socialistas em construir uma dinâmica de organização e luta específica das mulheres”, escreve Nalu Faria na apresentação do livro.
Vera Soares é física, mestre em Educação, pós-graduanda em economia; pesquisadora e militante feminista, Conselheira do Conselho Científico do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero – NEMGE da USP; tem trabalhos publicados sobre trabalho e participação das mulheres, políticas públicas com enfoque de gênero e sobre movimento de mulheres. Integrante da Coordenação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo.