O triunfo de Rafael Piñera nas eleições chilenas de ontem marca o ocaso do projeto político mais exitoso do último ciclo de transições à democracia na América latina. No primeiro turno, pela primeira vez desde o fim do pinochetismo, a Concertação tinha sido batida pela direita, e ontem o megaempresário, dono da Lan e ex presidente do Colo Colo, se converteu no novo presidente de seu país, abrindo uma nova era na história política chilena e alimentando a possibilidade de que a aliança entre o socialismo e a democracia cristã, cuja origem remonta à campanha pelo NO a Pinochet no plebiscito de 1988, finalmente seja rompida, com o consequente risco de que a perna mais moderada da coalizão explore uma aproximação com os setores mais democráticos da direita (precisamente liderada Piñera). No fundo, o esgotamento de um projeto político de duas décadas que deixou triunfos inegáveis mas também algumas sombras.

 

No balanço dos acertos da Concertação, o maior é, sem dúvida, o econômico. Como se sabe, os governos concertacionistas continuaram as linhas mestras do modelo imposto a sangue y fogo por Pinochet, que de todo modo admite algumas nuanças: em que pese suas raízes inegavelmente ortodoxas, certos recursos próprios marcam uma diferença crucial entre o esquema chileno e o neoliberalismo puro e duro. No início, nem mesmo Pinochet se atreveu a privatizar Codelco, a empresa nacional de cobre, nem a desarmar a reforma agraria implementada pela democracia cristiana nos 60, que acabou com os latifúndios e foi chave para a posterior implantação dos agronegócios. O Estado, além disso, cumpriu um papel importante, garantindo um tipo de cambio competitivo primeiro e estabelecendo limites para o ingresso de capitais depois.

 

Para o principal é que nem Patricio Aylwin nem Eduardo Frei nem Ricardo Lagos nem Michelle Bachelet arriscaram os grandes eixos do desenho pinochetista, baseado no manejo macroeconômico muito rigoroso, sem déficit fiscal, com uma pressão impositiva baixíssima (16,5 por cento do PBI) e uma estrutura fiscal regressiva (os impostos ao consumo afetam inclusive aos produtos mais básicos, como o leite e o pão, embora o mesmo imposto sobre a renda é muito reduzido), junto a leis trabalhistas hierflexíveis, com uma das taxas de sindicalização mais baixas da região (menos de dez por cento) e serviços públicos caríssimos.

 

Tudo isso no marco de uma importante abertura ao mundo (Chile firmou tratados de livre comércio com vinte países, desde Estados Unidos e China até Nova Zelândia e México) que funciona como o pilar de um modelo ultraexportador e pro-empresarial que converteu a algumas companhias chilenas, como LAN y Falabella, em gigantes translatinas, e cujos valores de progresso individual e egoísmo capitalista permearam culturalmente a sociedade chilena (um los legados mais duradouros e menos comentados da ditadura de Pinochet).

 

Vejamos alguns números. Nos vinte anos de governos concertacionistas, o salario real cresceu 3 por cento ao ano, o desemprego esteve sempre abaixo de 10 por cento, a inflação se manteve controlada e a dívida externa foi reduzida até chegar a menos de 50 por cento do PBI. O PBI chileno cresceu a uma média de 5,5 por cento ao ano, ainda que o ritmo tenha se desacelerado nos últimos tempos e inclusive –os números oficiais ainda não foram difundidos– se estima uma queda de entre 2 e 3 por cento para 2009, ainda que com uma possível recuperação em 2010. Durante os últimos quinze anos, o Chile conseguiu contornar as crises mexicana, asiática, russa, argentina e mundial sem estouros nem colapsos, marcando uma diferença crucial com o resto dos países da América latina, que cada tantos anos sofrem uma hiper, una recessão profunda ou um default, entre eles Argentina, mas também Brasil e Uruguai (e obviamente todos os andinos). Talvez esta continuidade seja o principal acerto do modelo chileno.

 

Do ponto de vista social, os avanços são igualmente notáveis. Como resultado de uma série de políticas sociais focalizadas, bem implementadas e sustentadas ao longo do tempo , a pobreza foi reduzida significativamente. Em 1989, no último ano da ditadura de Pinochet, a pobreza havia chegado a 42 por cento. Hoje está em 13,2, segundo dados da Cepal, o percentual mais baixo da América Latina, com uma taxa de indigência de 3,2, quase quase a de um país em desenvolvimento. Outros estudos tem diagnóstico parecido: o Índice de Desenvolvimento Humano –um índice mais abrangente que combina níveis de crescimento com desigualdade, baixa renda, saúde e educação – situa o Chile em primeiro lugar de América latina (44º do mundo), superando pela primeira vez a Argentina, que ocupa el 49º (o terceiro é o Uruguai). E um último dado assombroso: hoje existem no Chile bolsões de pobreza rural, sobretudo nas regiões do Norte, e alguns assentamentos precários na Grande Santiago, mas praticamente não existem mais favelas.

 

Esses avanços, que deveriam chegar à reflexão aos que acusam os governos chilenos de encarnar um simples modelo neoliberal, não chegam a esconder os temas pendentes: as políticas sociais, ainda tenham servido para atacar a pobreza e a indigência, demonstraram ser incapazes de enfrentar outros problemas, mais complexos, como a precariedade do trabalho, em geral mal pago e superexplorado, ou as crescentes demandas de uma classe média baixa que não consegue se incorporar ao boom de consumo que alcançou níveis obscenos. o reflexo estatístico destes déficits e a desigualdade, onde os avanços foram menores ou, inclusive, inexistentes. No Chile, a distância entre os 20 por cento mais ricos e os 20 por cento mais pobres da população é de 14 vezes. O índice Gini, o indicador mais popular de desigualdade, é de 0,56, o que situa o Chile como um dos países mais desiguais da região junto com Brasil e Paraguai.

 

nos últimos anos, em especial desde o governo de Lagos, foram iniciadas algumas reformas voltadas a melhorar estas áreas: os serviços de saúde se generalizou muito, a infra estrutura educativa foi reforçada e, já durante a gestão de Bachelet, se aprovou uma reforma do sistema previsional que inclui uma "aposentadoria solidária" para aqueles que não tem idade suficiente (ainda que a reforma não tenha tocado no coração do sistema de aposentadorias, baseado no aporte individual, por exemplo mediante a criação de um sistema misto, e para não mencionar a possibilidade de um sistema totalmente estatal, como aquele que funciona na Argentina e no Brasil).

 

Chegamos assim ao que muitos analistas consideram o cerne do problema. O formidável impulso exportador, explicação última de todos estes progressos, baseado sobretudo em produtos primários ou elaborações a partir deles. Quando o entrevistei para meu libro La nueva izquierda, Ricardo Lagos me disse que a crítica é correta, mas muitas vezes exagerado. "O argumento tem algo de certo, mas às vezes se transforma em uma caricatura. Eu pergunto a vocês: se eu exporto amêndoas, porém colocadas dentro de una embalagem hermética, que por sua vez vai dentro de uma caixa de papel especial, desenhada especialmente para um hotel cinco estrelas da Europa, com o nome e o logotipo do hotel, que tem que chegar em um determinado momento e em determinado volume. O que estou exportando? Amêndoas? Que valor tem as amêndoas nesse produto? Outro exemplo. Tenho um amigo que exportava ostras congeladas, até que se deu conta de que era mais rentável exportá-las congeladas. Isso significa que, desde que as ostras são tiradas do Pacífico até que sejam servidas num restaurante de Paris, Nova York ou Berlim, não podem se passar mais de 30 horas. Que exporta meu amigo? Ostras? Ou exporta know how, tempo, eficiência, segurança?"

 

Além da defesa Lagos, os números são eloquentes: 75 por cento das exportações chilenas estão constituídas por produtos primários ou bens desenvolvidos com base neles. Do total, um percentual importante, hoje cerca de 38, segue sendo cobre. O resultado é um desenho que dificulta a extensão dos benefícios do crescimento a todos os setores sociais, expoẽ a economia aos ciclos externos (o preço do cobre é quase tão importante para o Chile como o do petróleo para a Venezuela ou o gás para a Bolivia), no marco de uma economia que inclui vários enclaves ultraprodutivos (cobre, mas também madeira, fruta ou salmão), um setor serviços generalizado e eficiente (ainda que excludente) e um setor industrial reduzido, com um mercado interno pequeno e pouco dinâmico.

 

Em seus vinte anos de gestão, a Concertação avançou também em outras áreas. Depois de muitas idas e vindas, conseguiu limpar os aspectos mais autoritários da Constituição criada pela ditadura, num movimento de despinochetização institucional que devolveu ao presidente o controle das Forças Armadas, democratizou a Justiça e eliminou a figura dos senadores vitalícios criados por Pinochet, somados a outros avanços no plano cultural, como a eliminação do Comité de Censura y sanção da lei de divórcio (Chile foi o último país do Hemisfério Ocidental –fora de Malta– em aceitar o divórcio). Ao mesmo tempo, persistem déficits severos, com destaque para o sistema eleitoral binominal criado para favorecer a direita, que exclui sistematicamente a representação das minorias.

 

Porém, além deste ajustado balanço de realizações e dívidas, não há dúvida de que o cerne do problema chileno, o que explica o triunfo de Piñera e o início de uma nova era, é econômico-social. Em especial, a relação entre iniquidade e política econômica: realmente, a persistente desigualdade chilena não é o resultado de um desvio do modelo suscetível de correção mediante políticas específicas, mas uma parte essencial de um desenho que a Concertação não quis ou não soube ou não pode modificar.

 

José Natanson é jornalista argentino, cientista político

 

Atualizado em 19/01/2010

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