A crise financeira global desmoralizou a visão dominante de que os mercados financeiros livres e com regulamentação mínima funcionam automaticamente em prol do bem público. A atenção voltou-se para o restabelecimento da confiança e do funcionamento dos mercados financeiros, o que envolveu uma injeção gigantesca de recursos públicos. A última reunião do G-20, que se consolidou como plataforma de coordenação macroeconômica global, em Pittsburgh terminou com uma declaração na qual se afirma estarmos no meio de uma transição crítica da crise, para “virar a página de uma época de irresponsabilidade” e adaptar um conjunto de políticas, regulações e reformas para atender as necessidades da economia do século 21.

Essa irresponsabilidade, porém, vinha sendo construída e acompanhada de um processo de concentração de renda a partir de lucros gerados na esfera financeira, descolada da economia real. Os famosos bônus geraram riquezas de pessoas físicas superiores ao PIB de muitos dos países do Hemisfério Sul. Essa produção de riquezas financeiras opera também o mais longe possível da esfera de regulação tributária e usa fartamente os paraísos fiscais. De outro lado, constatamos um déficit da comunidade internacional para cumprir com os compromissos assumidos no âmbito dos Objetivos do Milênio, embora as metas de redução da fome e pobreza, estipuladas para serem atingidas em 2015, sejam bastante modestas. Cabe lembrar ainda que antes da crise global os países mais pobres vinham sendo atingidos duramente pela crise de preços dos alimentos, em grande parte ligada à explosão dos preços do petróleo, por sua vez ligada em grande parte à esfera da especulação. A crise do choque dos preços dos alimentos, rapidamente esquecida devido à grande crise global, causou um enorme estrago, destruindo muito dos avanços atingidos nos anos anteriores em vários dos países africanos. Assim, contrastando com o progresso tecnológico e científico, com a ganância e a riqueza de uma minoria de ricos, nota-se que mais de um bilhão de seres humanos continua vítima da fome e extrema pobreza, um número superior às populações reunidas dos Estados Unidos, da União Européia e do Japão.

A discussão sobre a regulação dos mercados financeiros não pode, portanto, limitar-se a restabelecer mecanismos existentes anteriormente, mas deve ser encarada como uma oportunidade para buscar transformações na ordem econômica mundial, tal como o Brasil vem defendendo há vários anos de forma sistemática. Por exemplo, nos discursos de abertura na Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), aponta para a necessidade de se construir uma nova ordem internacional, sustentável, multilateral e menos assimétrica. Parte desse esforço consiste na construção de mecanismos solidários internacionais para a erradicação da fome e da extrema pobreza. Nada mais justo que para atingir esse bem público global se peça uma contribuição dos setores que mais enriqueceram com o avanço da globalização, os setores financeiros, por meio de uma taxação sobre fluxos financeiros internacionais.

A idéia não é nova, e como já comentou um de seus idealizadores, o prêmio Nobel Professor James Tobin, a cada crise ressurge o interesse nesta proposta. Nos anos setenta, Tobin, seguindo as idéias precursoras de Keynes, imaginava uma taxa para limitar as especulações e flutuações nos mercados de câmbio. Por conseguinte, o imposto deveria ser suficientemente elevado para garantir esse efeito estabilizador e gerar um fundo que poderia ser utilizado para financiar o desenvolvimento. A Taxa Tobin apontava para uma maior eficiência dos mercados de câmbio ao eliminar os excessos de volatilidade. Em 2004, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Jacques Chirac (França) e Ricardo Lagos (Chile) lançaram uma nova abordagem sobre a taxação dos fluxos financeiros no âmbito da iniciativa da Ação Global contra a Fome e a Pobreza. Nesta proposta, a taxa serviria unicamente para levantar recursos para o desenvolvimento, sem afetar a liquidez dos mercados. A alíquota da taxação deveria ser muito baixo, de maneira a minimizar os efeitos nos mercados financeiros e os riscos de evasão. Contudo, mesmo alíquotas muito baixas poderiam vir a gerar rendimentos expressivos, devido à magnitude desses fluxos, desde que fossem adotadas de forma coordenada entre os principais centros financeiros globais. Levantamentos mais recentes baseados em números do Banco de Compensações Internacionais (BIS) mostram, em termos anuais, um fluxo de US$ 777,5 trilhões. Considerando um mínimo de impacto sobre as transações, causado pela introdução da taxa, uma alíquota de 0,005% garantiria cerca de US$ 33 bilhões anuais para ações solidárias de combate à fome e à extrema pobreza.

A taxação de transações cambiais é preferível a alternativas que envolvam taxação de outros fluxos financeiros por vários motivos. Em primeiro lugar, há nas transações cambiais uma clara separação com a esfera nacional. Em segundo lugar, existe um amplo conjunto de estudos de viabilidade técnica no que diz respeito à sua arrecadação, ainda mais à luz da discussão sobre a nova regulação e considerando o fortalecimento do papel dos bancos centrais. Em terceiro lugar, as transações cambiais são altamente centralizadas: 90% das operações ocorrem em sete países, sendo 80% em 11 centros financeiros; 33% na cidade de Londres; 85% envolvem o dólar, e as demais moedas relevantes (euro, a libra e o iene). A grande maioria das operações é realizada por um número reduzido de bancos internacionais. Considerando o elevado volume das transações cambiais e o patamar baixíssimo da taxa em discussão, há uma probabilidade mínima de distorção dos mercados financeiros

Um novo impulso para a discussão foi efetuado por um conjunto de 12 países, entre os quais Brasil, França, Chile, Espanha, Alemanha e ainda o Reino Unido, principal praça das transações financeiras cambiais do mundo, que criaram em outubro de 2009 uma Força Tarefa e um Grupo de Peritos para elaborar um relatório que possa alimentar o debate nos fóruns decisórios. Mais surpreendente é o fato de o FMI, para o qual este assunto até recentemente foi um tabu, dever apresentar na próxima Cúpula do G-20, em junho de 2010, no Canadá, o resultado de um estudo sobre o tema. Mais surpreendente é o fato de o Fundo Monetário Internacional (FMI), para o qual este assunto até recentemente foi um tabu, também foi instado a colaborar. Deverá apresentar na próxima Cúpula do G-20, em junho de 2010, no Canadá, o resultado de um estudo sobre o tema.

O referido Grupo de Peritos deve, em diálogo com os bancos centrais e os mercados financeiros, detalhar o possível funcionamento da taxa global. Existe inclusive um mecanismo global de compensação do qual participam os bancos centrais e os bancos privados – o Continuous Linked Settlement (CLS) –, que seria o lugar privilegiado para efetuar a taxação dos fluxos cambiais. Com isso, o mecanismo independe, em princípio, das legislações tributárias nacionais e não passaria pelos orçamentos nacionais, eliminando uma série de percalços de ordem jurídica e tributária. É possível ainda imaginar evitar o longo e complicado processo de elaboração até a ratificação de um tratado internacional e partir, pelo menos em um primeiro momento, para um mecanismo negociado entre governos nacionais, bancos centrais, bancos privados e o CLS.

Não resta dúvida de que a viabilidade política da proposta esteja também associada às propostas para o uso dos fundos, incluindo a governança, igualmente importante para dar-lhe credibilidade. Por isso, o Grupo de Peritos deverá também apresentar idéias a respeito da canalização dos recursos e o controle democrático, respeitando o princípio da não taxação, sem representação, o que implica mobilizar a participação de setores privados e da sociedade civil organizada.

Enquanto o Grupo de Peritos trabalha para uma atualização da proposta lançada pelos presidentes do Brasil, Chile, França e Espanha em 2004, considerando a nova situação desencadeada pela crise mundial, surgiram novos argumentos para a taxa global. O ministro das Finanças da Alemanha, Peer Steinbruck, o primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown, e o presidente dos EUA, Barak Obama, mencionaram, cada um em ocasiões diferentes, a oportunidade de introduzir um imposto sobre fluxos de capitais para auxiliar o financiamento dos déficits fiscais nos seus países, que explodiram com as elevadas despesas para recuperar o sistema financeiro. Surgiram, ainda, vozes defendendo a introdução de taxas globais para financiar o combate ao efeito estufa.

Não há dúvida de que a taxação sobre fluxos financeiros estará, em 2010, na agenda das várias cúpulas e instituições de governança global e deverá fazer parte das propostas a serem debatidas sobre a nova regulação do sistema financeiro internacional. Em 2010, a ONU também fará uma avaliação dos Objetivos do Milênio (2015), desta forma, faz todo o sentido voltar a discutir uma taxa sobre fluxos de capitais internacionais, como a constituição de um mecanismo de financiamento para o desenvolvimento, e uma aliança solidária pela erradicação da fome e extrema pobreza.

*Márcio Pochmann, presidente do IPEA e membro do Grupo de Peritos sobre a taxação de fluxos financeiros; Giorgio Romano, coordenador de estudos de política internacional do IPEA.