Entrevista: Pedro Paranaguá – Direitos autorais são bens não-escassos
“Direito autoral não é uma propriedade tradicional. Direito autoral é composto por bens não-rivais. Ou seja, ao contrário da propriedade material, tradicional, o meu uso, usufruto ou gozo, não exclui o uso de outros”, afirma o professor Pedro Paranaguá, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Ele continua explicando: “Direitos autorais deveriam ser tratados de forma diferente da propriedade material tradicional. Não tem como falar em roubo de algo imaterial. Roubo de uma música. Pode-se falar eventualmente de utilização sem autorização, mas não de roubo. Por quê? Porque roubo ou furto implica a subtração de algo, de outra pessoa. No direito autoral, o autor ou o titular da obra continua tendo o bem, afinal é um bem não-rival”. Afinal, segue ele, “os direitos autorais servem para incentivar a criatividade e a disseminação de entretenimento e cultura. Não o controle. Portanto, temos de pensar se os direitos autorais têm servido para esses fins (criação e disseminação) ou se têm sido utilizados para manter o status quo e o modelo de negócio de poucos (porém poderosos). Parece ser necessário um maior equilíbrio, com remuneração não apenas à indústria autoral, mas também aos autores, bem como uma efetiva disseminação cultural e benefício para os consumidores finais”. E dispara: “A liberdade de expressão é condição essencial para uma sociedade livre, igualitária e rica culturalmente. No momento em que leis de direitos autorais passam a limitar tais expressões, algo está errado”.
Pedro Paranaguá é mestre em direito da propriedade intelectual pela Universidade de Londres e doutorando na mesma área na Universidade de Duke, Estados Unidos. É professor da Fundação Getúlio Vargas – FGV-Rio e autor dos livros Direitos Autorais (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009) e Patentes e Criações Industriais (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre o compartilhamento de arquivos pela Internet? Que comportamento social essa iniciativa evidencia?
Pedro Paranaguá – O compartilhamento via redes peer-to-peer (P2P) é uma tecnologia incrível para a troca de arquivos. É muito eficiente e muito mais rápida. Isso encurta as distâncias e elimina consideravelmente custos na distribuição. Elimina, junto, o papel de intermediários (distribuidores). As redes P2P nasceram no meio acadêmico, para troca de pesquisas científicas. Hoje, como todos sabem, é muito utilizada também para troca de arquivos protegidos por direitos autorais. Por um lado, pode gerar dor de cabeça para a indústria do conteúdo, afinal de contas, ameaça o tradicional modelo de negócio da indústria do entretenimento. Por outro lado, é um inegável avanço tecnológico, além de gerar bem estar social, conforme comprovado empiricamente por recentes pesquisas econômicas da Universidade de Maastricht, bem como em outro estudo independente feito por encomenda do governo holandês.
O que muda em relação ao conceito de propriedade e de direito autoral com as novas tecnologias e com a Internet?
Esta questão é importantíssima. Por isso começo com uma historinha para ilustrar: se temos um celular e duas pessoas, enquanto uma delas utiliza o celular, a outra não pode usá-lo, tem de aguardar. Se temos a música Stairway to Heaven e duas pessoas (ou mil pessoas), elas poderão escutar a música ao mesmo tempo (ainda que em lugares ou até mesmo países diferentes). O que isso significa? Que direito autoral não é uma propriedade tradicional. Direito autoral é composto por bens não-rivais. Ou seja, ao contrário da propriedade material, tradicional, o meu uso, usufruto ou gozo, não exclui o uso de outros. Tal como no caso do celular. Além disso, direitos autorais são bens não-escassos. Ou seja: o uso contínuo do bem não o diminui, não o desgasta. Portanto, direitos autorais deveriam ser tratados de forma diferente da propriedade material tradicional. Não tem como falar em roubo de algo imaterial. Roubo de uma música. Pode-se falar eventualmente de utilização sem autorização, mas não de roubo. Por quê? Porque roubo ou furto implica a subtração de algo, de outra pessoa. No direito autoral, o autor ou o titular da obra continua tendo o bem, afinal é um bem não-rival. Além disso, você nunca vai perder a propriedade do seu celular, do seu carro ou da sua casa depois de X anos. Já o direito autoral, apesar das várias extensões recentes, tem prazo limitado, o que a propriedade tradicional não tem. A suprema corte alemã, acertadamente, entende que direitos autorais não são uma propriedade tradicional, mas sim um tipo (diferente) de propriedade. As novas tecnologias evidenciaram mais ainda esses fatores de não-rivalidade e não-escassez. O mundo digital mostra que uma cópia ou mil cópias podem ser idênticas, muito baratas e, ainda por cima, não exclui o uso de terceiros.
Qual sua visão sobre a pirataria e como ela se contrapõe à questão da propriedade intelectual?
Eu prefiro o termo cópia não autorizada. O termo "pirataria" tem cunho emocional e ideológico muito fortes. Remete aos saqueadores (às vezes sanguinários) que eram financiados pela coroa inglesa para subtrair bens de nações vizinhas. Como eu disse acima, a cópia de uma música, ainda que não autorizada, por exemplo, não constitui subtração, portanto, não é roubo ou furto, no sentido estrito da palavra. Não estou, em hipótese alguma, incentivando a cópia ilegal. Mas é preciso diferenciar a retórica propagandista dos fatos reais. Não creio que a cópia não autorizada se contraponha, necessariamente, aos direitos autorais. Temos exemplos crescentes de indústrias milionárias que se baseiam na cópia (não autorizada). A cena musical do tecnobrega, de Belém do Pará, é um grande exemplo. DJs de estúdio fazem a cópia sem autorização. Depois, outros DJs conduzem suas festas com aparelhagem eletrônica também sem autorização. Os camelôs fazem a distribuição, também sem autorização. No final, os artistas saem beneficiados, tamanha a divulgação feita. Seus shows atraem milhares de pessoas. Um modelo de negócio novo, sem se basear nos direitos autorais, e que gera, literalmente, milhões de reais. O cinema nigeriano, conhecido como Nollywood, gera mais de um milhão de empregos e é o que mais produz filmes no mundo, à frente da Índia e dos EUA. Tudo isso filmado em alta definição e distribuindo filmes através de camelôs, a preços acessíveis. Portanto, eu diria que é mais uma questão de modelo de negócio, de manutenção do status quo, do controle (da distribuição, cópia e compartilhamento), do que exatamente uma questão de ilegalidade. Enquanto uns olham com bons olhos, outros não têm gostado muito. Claro que é preciso encontrar uma alternativa para que todos sejam devidamente remunerados e para que o público consumidor seja beneficiado (com preços acessíveis).
Quais os principais temas de debate hoje quando o assunto é troca de informações via rede digital?
Creio que haja ao menos dois temas essenciais atualmente. Um é a negociação secreta de um tratado internacional (o ACTA) entre países ricos para enrijecer (ainda mais) as leis de direitos autorais e, inclusive, como alguns têm dito, cortar a conexão de Internet, caso cópias não autorizadas sejam feitas. A França tem encabeçado tal iniciativa no âmbito nacional, ao passo que EUA e União Europeia têm exercido grande influência na esfera internacional. O outro tema é uma solução inteligente para a questão. A cobrança de um valor fixo, mensal, de usuários de Internet banda larga que queiram compartilhar arquivos protegidos por direitos autorais e que concordem em pagar um valor fixo mensal para compartilhamento ilimitado e sem restrições tecnológicas que limitem ou impeçam a cópia ou o uso das obras em qualquer hardware (iPod, Zune etc.) ou software (Windows ou Mac ou GNU/Linux etc.). Desde 2002,há propostas nesse sentido, incluindo de professores de Harvard ou, mais recentemente, de estudos independentes. As redes P2P seriam legalizadas para quem concordasse entrar no sistema. Alguns provedores de Internet mundo afora já têm disponibilizado sistemas semelhantes, mas normalmente com travas anticópia ou via modelos que não são tão atraentes para consumidores. A questão é: devem-se gastar milhões com lobby nos Congressos? Processando os próprios consumidores e fãs? (aliás, para onde vai o dinheiro das indenizações? Para os artistas?) Indo contra a corrente do avanço tecnológico? Ou será que faria mais sentido utilizarmos a tecnologia para aumentar os lucros, beneficiar os consumidores e engrandecer o ambiente cultural?
Considerando a articulação direta entre os cidadãos pelas redes virtuais, como fica a situação de instituições como imprensa, partidos políticos e indústria fonográfica, por exemplo?
A maioria dos países, pelo menos democráticos, garante a liberdade de expressão de seus cidadãos. E a Internet veio potencializar isso tudo. Cidadãos passam a ser jornalistas, "blogueiros", seja em websites próprios, seja contribuindo diretamente com a grande mídia, enviando relatos, fotos etc., como faz a BBC, O Globo, Estadão e praticamente todos os principais veículos. Quanto à indústria fonográfica, é interessante porque os próprios consumidores ou fãs podem passar a ser o canal de distribuição e de marketing da indústria através de redes P2P. Tudo isso sem custo algum para a indústria. Por que a indústria não aproveita essa grande oportunidade? Por que ela não cria um site bacana, sem "spoofing" (arquivos que a indústria envia para as redes P2P com arquivos falsos, vírus etc.), sem DRM (travas anticópia), com visual atraente, com sistema de busca inteligente, ou faz uma parceria com provedores de Internet banda larga e oferece compartilhamento (download e upload) ilimitado a preço acessível? Há diversos estudos mostrando que o valor cobrado poderia ser baixo, atraente, como US$ 5 nos EUA. No Brasil, poderia (deveria) ser mais atraente, compatível com a renda local. Por que não?
As redes sociais virtuais podem ser um espaço de mobilização social coletiva, capaz de provocar mudanças reais significativas?
Sem dúvida. Veja o caso das recentes eleições no Irã. Por mais que, infelizmente, não tenham conseguido garantir o direito dos cidadãos, ao menos o mundo inteiro ficou sabendo as atrocidades que lá ocorreram logo após as eleições. Tudo através de Facebook, Twitter, blogs etc. (desviando do bloqueio feito pelo governo iraniano). O mundo inteiro assistiu a tudo. O mesmo com o governo totalitário de Burma, que mata não apenas cidadãos, mas monges budistas. Tudo é filmado por cidadãos-jornalistas e enviado para a Suécia, que depois edita e repassa para a BBC e o mundo inteiro. O Twitter tem uma força de multiplicação instantânea incrível – tanto é que até mesmo as grandes corporações passaram a utilizá-lo.
Qual a importância de garantir a livre disseminação da cultura numa sociedade que se baseia cada vez mais em informação? Quais os desafios para se alcançar essa postura?
A liberdade de expressão é condição essencial para uma sociedade livre, igualitária e rica culturalmente. No momento em que leis de direitos autorais passam a limitar tais expressões, algo está errado. Não sou eu apenas que falo isso. Em programas de Direito das melhores universidades do mundo o tema liberdade de expressão e direitos autorais ocupa papel importantíssimo. Afinal, os direitos autorais servem para incentivar a criatividade e a disseminação de entretenimento e cultura. Não o controle. Portanto, temos de pensar se os direitos autorais têm servido para esses fins (criação e disseminação) ou se têm sido utilizados para manter o status quo e o modelo de negócio de poucos (porém poderosos). Parece ser necessário um maior equilíbrio, com remuneração não apenas à indústria autoral, mas também aos autores, bem como uma efetiva disseminação cultural e benefício para os consumidores finais.