A matéria Uma missa para o torturador de autoria de Lúcia Rodrigues e Tatiana Merlino foi a vencedora da categoria Internet do Prêmio Herzog 2009. Ela foi publicada no site da revista Caros amigos, em maio de 2009. Leia a íntegra aqui.

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Celebração dos 30 anos da morte do delegado Sérgio Fleury, torturador da ditadura civil-militar, reúne cerca de 70 pessoas em São Paulo

Por Lúcia Rodrigues e Tatiana Merlino

Uma coroa de flores com o formato e as cores da bandeira nacional enfeita o altar da igreja Nossa Senhora de Fátima, no bairro do Sumaré, capital paulista. Penduradas nela, pequenas faixas com os dizeres, “ordem e progresso” e “herói nacional”. Ao centro, a foto do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos maiores torturadores da ditadura civil-militar (1964-1985), morto há 30 anos.

Cerca de 70 pessoas, entre parentes, amigos, delegados aposentados, representantes da TFP (Tradição, Família e Propriedade) e agentes do serviço reservado da polícia celebraram na noite de quarta-feira (6), o aniversário de três décadas de falecimento de Fleury. Entre eles, estava o delegado Carlos Alberto Augusto, conhecido como Carlinhos Metralha. Augusto, torturador temido nos porões do regime, integrou a equipe de Fleury e convocou a missa pela internet: “familiares, amigos, ex-policiais do DOPS e informantes contam com sua presença à missa”.

Um dos policiais do serviço reservado trajava calça jeans, jaqueta e boné, lembrava o Lula sindicalista do ABC, com sua barba grande. Não fosse pelos abraços calorosos que distribuía entre os presentes, poderia imaginar tratar-se de um militante da esquerda que sofreu na pele as agruras da ditadura. Ciro Moura, ex-candidato a prefeito, nas últimas eleições, pelo PTC (Partido Trabalhista Cristão), que herdou o número da legenda de Collor, foi o único político a comparecer à cerimônia.

Antes do início da celebração, do lado de fora da igreja, velhos amigos conversavam animadamente, enquanto era distribuído um panfleto com a foto do homenageado e os seguintes dizeres: “Sua morte deixou em nós uma lacuna impreenchível. Só o tempo poderá atenuar a sua perda irreparável para a sociedade brasileira. Dr. Fleury ficará na memória de todos, a sua inesquecível figura que tanto bem semeou. À sua passagem, sempre cumprindo ordens superiores e defendendo a sociedade”. Entre os carros luxuosos que entravam no estacionamento, havia adesivos colados. Em um se lia referência ao General Heleno, comandante militar da Amazônia. Outros adesivos faziam alusões à defesa do porte de armas.

A igreja Nossa Senhora de Fátima está próxima da sede da Opus Dei, localizada na avenida Alfonso Bovero, e do Centro de Estudos Universitários do Sumaré, mantido pela instituição.

Os presentes à missa do “herói nacional”, a maioria homens, vestiam terno e tinham cabelos brancos. Alguns mais novos, de terno e gravata, usavam broches com a bandeira do Brasil. As poucas mulheres, de cabelos tingidos de loiro ou ruivo, maquiagem pesada, salto alto, meia calça, terninho.

A missa foi celebrada por Frei Yves Terral, que, durante a homília, afirmou que “Fleury teve, há 30 anos, uma feliz ressurreição” e que “estamos reunidos hoje para lembrar sua memória, e não deixar a história morrer”. Durante a cerimônia, que teve início às 19 horas e durou 28 minutos e 45 segundos, o religioso disse frases como: “nós amamos Fleury”, “Deus ama Fleury” e “Estamos reunidos para lembrar o ideal do jovem Fleury, lembrar que ele tinha um ideal”. Na hora do Pai Nosso, Frei Yves pediu aos presentes que orassem “em nome de Jesus e Fleury”.

Yves Terral é um franciscano, da ordem co-irmã a dos freis dominicanos, Tito, Fernando e Ivo barbaramente torturados pelo delegado Fleury. O religioso, que em entrevista disse ser amigo de policiais militares, também celebrou a missa de sétimo dia do coronel da PM Ubiratan Guimarães, assassinado em setembro de 2006. Ubiratan foi o responsável pela invasão da PM paulista ao Complexo Penitenciário do Carandiru, em 1992, que resultou na morte de 111 presos.

O delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury morreu em 1º de maio de 1979, na Ilhabela, litoral norte paulista, de forma misteriosa. Pouco depois de comprar um iate, supostamente caiu no mar e se afogou ao saltar de uma embarcação para a sua. As autoridades policiais da época mandaram que seu corpo fosse enterrado sem ser submetido a necropsia. Fleury estava à frente do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), um dos mais temidos órgãos da repressão, e era o responsável por assassinatos e torturas que ocorriam no local.

O delegado ganhou “notoriedade” quando chefiou o Esquadrão da Morte, milícia clandestina formada por policiais que coalhava de corpos de supostos bandidos os terrenos baldios da periferia de São Paulo e do Rio de Janeiro. Fleury liderou, ainda, o fuzilamento do guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional (ALN), Carlos Marighella, na alameda Casa Branca, em São Paulo, em 1969. Ao final da missa, a reportagem conversou com Frei Yves. Confira abaixo:

Lúcia Rodrigues (LR) – O senhor considera o Fleury um herói nacional?

Eu não considero, não. Não vem ao caso isso. Eu sou ministro da eucaristia. Na minha mesa todo mundo, até a direita, pode participar. E o Fleury era um desses casos. Não há o que impeça ele de poder participar de uma eucaristia. Eu estava em Mato Grosso, na época do Fleury.

Tatiana Merlino (TM) – O senhor conheceu o delegado Fleury?

Não, não. Eu estava na faixa de fronteira. Não conheci nem pelos jornais. Os jornais nem chegavam lá. Quando chegavam, era com atraso e era sinal de que não tinha notícia importante no Brasil. Porque quando tinha notícia importante não sobrava para nós. Agora eu acho bonito que celebrem a memória. Herói é uma palavra carregada de poder.

LR – É porque na coroa de flores que estava perto do altar (coroa em formato da bandeira do Brasil, com a foto de Fleury ao centro, em que se lia em uma tarja: herói nacional)…

Sim, no altar. Era do pessoal que veio. Era dos parentes, da família. Era, seguramente, muito bonita a coroa.

LR – E por que eles escolheram esta paróquia para realizar a missa?

Diante de muitas possibilidades… Não acho nada de mais.

TM – Achei que a família frequentasse a paróquia.

Se frequenta…

LR – O senhor não conhece?

Não conheço. Eu tenho amigos. Fui chamado para pôr uma imagem de nossa senhora, faz muito tempo, na Polícia Militar, no comando. Encontrei uma turma de jovens oficiais, com formação francesa, cheios de ideal, que realmente me trouxeram admiração. Admiração abre caminho para amizade. Então, eu tenho alguns amigos militares. Talvez entre eles tenham falado: lá tem o frei Yves para rezar por nós. Se amanhã vier a família do Meneguelli (provavelmente se refere a Carlos Marighella) pedir para rezar uma missa aqui, eu vou rezar e vou fazer o que Jesus faz. Se colocar compassivo, do ponto de vista daquela pessoa, daquela família, daqueles amigos.

TM – Durante a celebração, o senhor disse que o Fleury tinha um ideal.

Tenho certeza. Sem o conhecer, eu tenho quase absoluta certeza. Todos os oficiais têm um ideal. Pela profissão, tem sempre um risco de vida maior. No início de sua profissão, da vocação, há um ideal. Depois, algumas vezes, diante da realidade, pode ter coisas belíssimas e coisas que alguns podem discordar. Mas Deus não criou gente ruim.

LR – O senhor acha que ele é uma figura polêmica?

Está na história. Está na história. Só que é uma história que não é contada, por enquanto. O outro lado foi muito bem contado. Porque estão no poder. São sempre os vencedores que contam a história.

LR – Quem são os vencedores?

Os vencedores que estão no governo atualmente. No PT. Essa história daquele lado está sendo contada. O outro não está e Deus queira que não seja contada tão cedo.

TM – Deus queira que não seja contada, por quê?

Porque não está na hora de recomeçar o que foi feito, me parece. Porque estamos numa democracia. Que tem que ser corrigida. Vocês da imprensa sabem muito bem. Vocês embaralham até o Lula.

LR – O Fleury não era um torturador? O senhor rezou durante a missa em nome do Fleury e não pelo Fleury. Eu não sou católica, mas em geral se reza pela alma da pessoa e não em nome da pessoa.

Não podem me culpar por ter rezado pelo Fleury.

LR – O senhor rezou em nome do Fleury.

Eu pedi para que a turma que estava meio fria se manifestasse. Foi uma forma de fazê-los participar. A turma que estava lá, era um pessoal mais reservado. Não era nenhum carnaval, nenhuma vitória do Corinthians. Então, era uma forma deles participarem, era emprestar palavras ao Fleury. Para se manifestarem um pouco. Uma missa não pode ser só o presidente.

LR – O senhor acha que isso ajudou a celebração?

Ajudou eles a participarem. Senão, não teriam participado. Alguns não teriam participado de nada.

LR – Por quê?

Não sei. Porque não estão acostumados a participar de uma missa. Por diversos motivos. Tem gente que vai numa missa de sétimo dia e não fala nada, só segura lágrimas. No Brasil, há tantos tipos de culturas. Graças a Deus. Tem de se conviver. Pode-se rezar uma missa para defuntos de um jeito ou de outro.

LR – Eu entendo a posição do senhor. O senhor é padre e reza por bandidos. O Fleury era um torturador, que assassinou várias pessoas. E o senhor ainda reza em nome dele?

Espera aí, Espera aí. Eu vivi em Mato Grosso. E tinham umas pessoas que a igreja não mandava abençoar quando morriam. Todas morreram de morte violenta. Eu abençoei todos aqueles que me foram apresentados. Você estava lá?

LR – Onde?

Quando ele morreu?

LR – Não. Eu era criança.

Mas Deus estava. Não podemos saber o que aconteceu. Não podemos fazer mau juízo do próximo. Agora, posição política eu não tenho. Eu não sou nem brasileiro.

TM – O senhor disse que ele tinha um ideal.

Tinha um ideal.

TM – Torturando os opositores?

Isso não foi quando ele era jovem. Foi depois. Deus o criou bom.

LR – Mas dentro de uma igreja, ter uma bandeira nacional com a foto dele, escrito herói nacional… Um torturador não é um herói.

O mandamento é honrar pai e mãe. É isso que quer dizer a bandeira brasileira. Foi uma honra.

LR – Há quanto tempo o senhor está no Brasil?

43 anos.

TM – E em São Paulo?

Há 30.

LR – Então o senhor estava aqui quando o Fleury morreu.

Pode até ser. Mas como teve essa mudança de Mato Grosso para cá, naquela época… Não posso dizer se ele morreu quando eu estava em Mato Grosso ou aqui.

TM – É claro que para a igreja todos são filhos de Deus. Mas o senhor celebrou a missa com uma simpatia muito especial pelo delegado Fleury.

O meu Deus é compassivo. O meu Deus é compassivo. Ele se põe do ponto de vista da pessoa. A senhora procure se por do ponto de vista de
Jesus.

TM – O senhor sabia que o delegado Fleury era um torturador?

Eu sabia que era um homem político, que contestava. Que teve uma história não apenas de um simples delegado, mas de uma dimensão política mais forte.

TM – Que era um torturador?

Sei lá se era torturador.

LR – O senhor não sabia que ele era um torturador?

Escuta aqui. No Araguaia, por exemplo. O soldado que foi mandado para lá, para restabelecer a ordem. Se matou alguém, ele era um torturador?

LR – O delegado Fleury é um torturador. Existem pessoas que foram torturadas por ele e outras que viram companheiros sendo assassinados no pau-de-arara, inclusive.

Então precisa de mais reza ainda. Precisa mais de reza do que outros.

LR – Mas o senhor sabia que ele era um torturador?

Eu sabia o que todo mundo sabe. Agora se vocês falam que ele era um torturador… Eu não sei. Eu não lembro, eu estava no Mato Grosso.

LR – A morte dele saiu na TV.

Mas você pensa que em Mato Grosso tinha TV?

LR – Mas o senhor já estava em São Paulo.

Eu sou muito amigo do Dom Paulo (Evaristo Arns). Li todos os livros dele.

LR – O Dom Paulo diz que ele é um torturador.

TM – Então o senhor leu o Brasil Nunca Mais?

Mas isso não tira o direito dele ter uma missa. Não pode ser negado esse direito.

LR – O que nós estamos dizendo é da sua simpatia e da forma que foi colocado. O que surpreendeu foi o senhor ter rezado não por ele, mas em nome dele.

Eu faço isso em todas as missas. Praticamente faço isso em todas as missas.

Pulicado no portal Caros Amigos em maio/2009

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