No episódio hondurenho, as classes dominadoras e bem falantes do Brasil varonil retiraram seus coturnos do armário e enfiaram a botas num pântano semântico. As tormentosas trapalhadas com o significado das palavras marcaram os comentários, pronunciamentos e conexos a respeito “da remoção compulsória e involuntária de Manuel Zelaya do exercício das funções presidenciais”. Aqui me arrisco a mimetizar as cautelas nativas que perambulam entre o “quase golpe”, golpinho, governo de fato, governo provisório.

Essas são apenas algumas, entre tantas teratologias semânticas banhadas no caldo da hipocrisia genética e generalizada da turma do andar de cima, outrora chamada, nas colunas sociais, de anedota e champanhota.

Desde a transição democrática de meados dos anos 80, esse povo anseia pelo desfecho da desperança sem mudança ou, como dizia um crítico de Adorno, “a realização das esperanças do passado”. Assim os senhores da terra concebem o progresso. A história relata que as eleições diretas sucumbiram diante das artimanhas e salamaleques do colégio eleitoral. A nau de Ulisses encalhou nas praias do transformismo à brasileira e os náufragos do regime militar saltaram alegremente a bordo. O episódio hondurenho mostra que, ainda hoje, os quase afogados navegam à solta, despojados das culpas que simulavam depois da derrocada do regime autoritário, fórmula em que apostavam para consolidar a democracia brasileira. Há que compreender, portanto, os pruridos linguísticos nascidos, provavelmente, da negação coletiva e inconsciente da conivência com as tropas que pisotearam a democracia e o Estado de Direito, desde a quartelada levada a cabo naquele distante, mas inesquecível 1º de abril de 1964.

Revisitadas as raízes dos engasgos semânticos, convém retornar aos fatos ocorridos na República de Honduras. Em sua irritante persistência, os fatos relatam que Zelaya, alta madrugada, foi retirado da cama, enfiado no avião e despachado para fora do país. Em qualquer região civilizada do globo habitada por cidadãos acostumados ao exercício da democracia e ao respeito às regras do Estado de Direito, tal cometimento dos gorilas de Honduras, fardados ou não, seria chamado de golpe.

Há quem argumente, como justificativa para suas vacilações e tremeliques, que Zelaya preparava um plebiscito para legitimar sua reeleição, prática expressamente proibida, em cláusula pétrea, pela Constituição. É certo que a Constituição de Honduras não permite tais manobras. Mas também é certo que ela apresenta os remédios legais e não violentos para a destituição da autoridade seduzida pelo continuísmo.

O professor Pedro Estevam Serrano, da PUC de São Paulo, em artigo publicado na Folha de S.Paulo mostra que “a alínea 6 do artigo 42 e diversos outros dispositivos da Constituição hondurenha determinam que a perda de cidadania deve ser aplicada em processo judicial contencioso e com direito a ampla defesa, observado o devido processo legal, o que não aconteceu de modo algum no procedimento adotado pelos golpistas e seus apoiadores.” Ademais, continua o professor de Direito, “o artigo 102 da Constituição estabelece expressamente que nenhum hondurenho pode ser expatriado nem entregue pelas autoridades a um Estado estrangeiro. Ter detido Zelaya ainda de pijama e tê-lo posto para fora do país de imediato atenta gravemente contra tal dispositivo”.

A maioria – comentaristas, articulistas e assemelhados – esmerou-se em escancarar suas reticências ou dúvidas lancinantes diante da natureza notoriamente truculenta e ilegal das ações dos beleguins do senhor Micheletti. Resta-nos o conforto de celebrar as honrosas exceções. Entre elas, raríssimas, está artigo do jornalista Elio Gaspari, de 30 de setembro, quarta-feira. Gaspari cuida dos acontecimentos hondurenhos com a simplicidade e a clareza dignas dos melhores momentos da crítica política e do jornalismo independente.

A posição da diplomacia brasileira fundou-se nos princípios e práticas consagrados no “nomos da terra”. Cuidou de respeitar as instituições internacionais e, sobretudo, o direito de asilo, a despeito das indisciplinas e inconveniências do comportamento do abrigado.