Kucinski e Venício de Lima debatem ponto de inflexão do poder midiático, por Saul Leblon
Em ‘Diálogos da Perplexidade’, lançamento da Fundação Perseu Abramo, dois dos maiores críticos da mídia brasileira saúdam as oportunidades abertas pelas novas tecnologias de comunicação, mas sinalizam que não há panacéia técnica capaz de substituir o organizador político gramsciniano. A chamada grande imprensa ainda é uma de suas trincheiras mais atuantes. Mas se ela ocupa esse espaço no país deve-se muito mais à dispersão política e digital do pólo progressista, do que à uma vitalidade que já não possui. A radicalização editorial crescente acentua as deformações de um jornalismo que perdeu a prerrogativa da notícia para os meios online, deixando ele próprio de ser referência para ser referido.
A coragem do intelectual é argüir o seu tempo; sobretudo perguntar-se a si mesmo acerca de certezas e dúvidas e o fazer publicamente o que nem sempre é indolor do ponto de vista subjetivo e dificilmente impune nas conseqüências políticas e sociais. O pensamento crítico perturba as bases da sociedade panóptica – metáfora emprestada do pai do utilitarismo inglês, Jeremy Bentham [1748-1832], um versátil inventor de bizarrices mas também criador de neologismos que se revelariam caros à ortodoxia econômica, entre os quais maximizar, minimizar e fundamentos racionais.
Coerente, a síntese filosófica do utilitarismo benthamiano está condensada na engenharia de um projeto carcerário criado pelo pensador inglês. Nele, as celas são distribuídas em torno de uma torre central, o panóptico, facilitando a vigilância ininterrupta sem que os presos possam enxergar a sentinela no interior do obelisco. A ubiqüidade do carcereiro invisível daria ao francês Michel Foucault (1926-1984), autor de “Vigiar e Punir”, a inspiração para entender a exasperação do controle social no século XX. O panóptico não assegura apenas a disciplina do sistema, ele o faz ao menor custo e com a máxima a eficiência: sua lógica consiste em aprisionar a subjetividade dos indivíduos tornando-os assim carcereiros de suas próprias vontades.
Bernardo Kucinski e Venício de Lima encontram-se entre os intelectuais que pioneiramente argüiram o poder panóptico da mídia no Brasil. Graças a eles o invasivo poder de introjetar agendas e interditar debates, recursos com os quais a mídia nativa lubrificou entre outras coisas a imposição da cosmologia neoliberal nos anos 80/90, ganhou a dimensões de um desafio à democracia. Não apenas por conta das conseqüências econômicas dessa colonização, mas também pelo efeito corrosivo de uma incansável determinação em desmoralizar tudo o que pudesse remeter a formas de viver e de produzir pautadas pelo interesse público e o bem comum.
Ao darem visibilidade ao vigilante ubíquo transformando-o de referência em referido histórico, intelectuais como Kucinski e Lima reduziram a mídia a um protagonista particular do conflito social. Portanto, um poder que deveria ser objeto de escrutínio, não uma instância dotada de legitimidade imanente e atemporal, como o vigilante da torre de Bentham.
Hoje essa agenda está consagrada. O questionamento ao poder panóptico avocado pela mídia é tema corrente em aulas da academia, tem menção garantida nas reflexões dos partidos de esquerda, arrola-se entre as bandeiras dos movimentos sociais. Os próprios governos se debruçam sobre ele como evidenciam as medidas de regulação discutidas e implementadas na Argentina e na Venezuela. No Brasil, uma Conferência Nacional sobre o tema está prevista para dezembro, convocada pela Secretaria Geral da Presidência da República.
A missão do intelectual, todavia, é o desassossego. Em “Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia”, editora Perseu Abramo, Kucinski e Lima vão além do assalto à arquitetura benthamiana para indagar ao grande relógio da história, ‘que horas são?’ Ou seja, o que de fato mudou e quanto ainda pode mudar, com que velocidade o surgimento de novas tecnologias pode acelerar a subversão das ilusões criadas pela torre midiática? Até que ponto já se podem fazer algumas previsões sobre o jornalismo? – perguntam os dois intelectuais nessa obra em que expõem as perplexidades aflorados em cinco encontros realizados em 2008 em São Paulo, Campinas e Brasília. Como observa o prefácio do professor Muniz Sodré, perplexidade aqui remete não à paralisia, mas ao esforço do esclarecimento, portanto, esta é uma conversa na sala de espera da iluminação intelectual.
A importância descomunal da imprensa na luta social, tema que perpassa boa parte desses diálogos, não é um assunto estranho à reflexão política desde que Gramsci (1891-1936) o incorporou a sua obra. Na Itália, a fragilidade das estruturas partidárias, ao lado das dificuldades impostas por uma unificação feita de instituições ralas e abismos sociais e regionais profundos, os jornais assumiram funções de verdadeiros partidos, ensinou o pensador comunista.
As semelhanças meridionais com o subdesenvolvimento tropical não são negligenciáveis. Nos anos 90, Celso Furtado costumava explicar pacientemente aos jovens jornalistas – os poucos que ainda procuravam o grande economista brasileiro taxado de jurássico pela emergente agenda tucana— que o populismo ao contrário da “tara” demonizada pelas elites refletia o vácuo institucional de uma sociedade pouco sedimentada institucionalmente. O Estado e os líderes carismáticos compensavam o oco político falando direto às massas. E intervindo na economia para organizar a luta contra o subdesenvolvimento.
A colisão entre esse poder ‘populista’ e a torre panóptica organizadora dos interesses das elites gerou entre nós alguns capítulos pedagógicos. O suicídio de Vargas é um deles. O criador da Petrobras apertou o gatilho para não ceder à pressão insuportável do denuncismo lacerdista, que exigia sua renúncia em emissões sistemáticas através da rádio Globo, dirigida então pelo jovem udenista Roberto Marinho. Os comentários de Lacerda na Globo cumpriam o papel organizador da reação no Congresso, representada pela famosa Banda de Música da UDN.
É dispensável enfatizar semelhanças com a pauta e os métodos abraçados hoje pelos grandes veículos de mídia em sintonia com a oposição parlamentar ao governo Lula. O que Kucinski e Venício de Lima se perguntam nestes diálogos é a que distancia estamos do Rubicão, o que mais é preciso para atravessá-lo. Ou seja, até que ponto o advento de novas tecnologias e a disseminação da Internet, associados ao desgaste da mídia benthamiana, sedimentou um degrau de democratização capaz de abrir as portas de um novo espaço favorável à uma imprensa crítica e popular.
O desgaste talvez irreversível do padrão dominante ocupa uma parte das conversas. Kucinski chama atenção para o fenômeno dos jornais gratuitos que lideram as tiragens em todo o mundo. O contraste se dá com a anemia de uma indústria de comunicação convencional emparedada entre o noticiário online – que torna velho o jornal de amanhã – e a tentativa de superar esse revés pela editorialização. O recurso opinativo, avalia Kucinski, deu inegável sobrevida ao papel organizador da grande imprensa diante da algaravia de notícias e opiniões sobre tudo que se multiplicam exponencialmente na rede online. Mas a sobrevida editorializada acentuou ao mesmo tempo a percepção de um poder determinado a manipular a sociedade.
‘Manchetes adversativas’ – assim batizadas por Marilena Chauí – são um exemplo dessa tensão. ‘País melhora, mas não vence o analfabetismo’, estampou a Folha na primeira página no dia 19 de setembro. A frase adversativa tentava minar o impacto dos avanços sociais sob o governo Lula condensados na divulgação da PNAD 2008. Kucinski é impiedoso diante da inconsistência jornalística que a opção preferencial pela opinião trouxe aos diários. ‘Até a revista ‘Kalunga’, dessa rede de papelarias, tem trazido reportagens melhores que as da mídia convencional’, alfineta o professor da Escola de Comunicação da USP, onde acaba de ministrar um curso livre de comunicação pública.
Coube a Venício de Lima deduzir as bases e conseqüências estruturais desse crepúsculo. O professor da Universidade Nacional de Brasília vai ao cerne do embate político ao contestar o “cuore” conservador que rejeita qualquer tentativa de regulação dos serviços audiovisuais em nome da liberdade de imprensa. Primeiro, explica ele, liberdade de imprensa significa, na origem, direito de imprimir. Em segundo lugar – prossegue – a comunicação atual, monopolizada por gigantescos complexos industriais privados, está longe de materializar o ideal da informação que circula livremente. O que tal estrutura emite, no seu entender, é um recorte muito específico de interesses políticos e econômicos. Liberdade de imprensa [dessa imprensa ou dessas empresas] não pode ser tomada, portanto, como sinônimo de liberdade de expressão.
Um segundo ponto importante iluminado pelos dois intelectuais é que a velha liberdade de imprimir [‘liberdade de imprensa’] do século XIX se transmudou, revitalizada, no direito de postar livremente no espaço online do século XXI. O que falta então para o salto qualitativo de uma nova hegemonia? Por que ela não acontece?
A questão não é acadêmica. As perguntas e perplexidades sobre as quais Kucinski e Venício de Lima se debruçam fazem deste livro uma leitura obrigatória de partidos e organizações progressista. Sobretudo, duas questões cobram atenção urgente. A primeira, remete ao ônus da dispersão política, paradoxalmente vinculada, pelo menos por enquanto, à natureza democrática das novas tecnologias. A dispersão enfraquece um desdobramento inegociável da emissão política, advertem os dois professores: ‘ o mais importante não é poder falar, é ser ouvido’. As redes só compensam parcialmente a flacidez dessa sintonia. A ficha da ditadura sobre a então militante Dilma Rousseff foi adulterada pela Folha para incriminar a ministra num suposto plano de seqüestro de Delfim Netto. O desmascaramento do ardil se deu em boa parte na rede online, impondo um revés desmoralizante ao veículo que hoje é o alicerce publicitário da candidatura Serra.
Nada ofusca, porém, a inferioridade da rede face à supremacia dos grandes jornais na coagulação dos interesses elitistas, como se fossem os de toda sociedade. Aqui, de novo, voltamos a Gramsci. Ao iluminar obstáculos à construção de uma nova hegemonia histórica, os ‘Diálogos da Perplexidade’ nos levam à conclusão de que a amplitude política dessa longa travessia é irredutível a impulsos tecnológicos facilitadores do processo, mas insuficientes para concluí-lo. O espaço online, nunca é demais lembrar, serve aos dois senhores desse embate, ambigüidade não minimizada pelos autores do livro. ‘Hoje a cidade toda está sendo filmada; você é filmado em todos os lugares’ (…) ‘se na época da ditadura existissem [esses recursos], quanta gente mais não teria sido presa e torturada’, assinalam Kucinski e Venício de Lima para reafirmar que seu compromisso, acima de tudo, é com o questionamento do nosso tempo. E das nossas ilusões.
Não há panacéias. A imprensa continua a deter um papel coagulador da narrativa dominante, porém o faz de forma cada vez mais explicitamente editorializada. A radicalização do objeto acentua sua ruína. As trincas no panóptico escancaram os vigias e identificam os interesses zelados. Mas, sobretudo, o Brasil não é mais a sociedade gelatinosa do ciclo populista que facilitava a manipulação midiática. Há instrumentos novos e, mais que isso, protagonistas novos da história. O livro de Kucinski e Venício de Lima fotografa esse momento do pêndulo hesitante, mas não congelado.
Conseguir movê-lo na direção de uma nova referência social pode significar a diferença entre a vitória ou a derrota em 2010 para a candidatura progressista à sucessão de Lula. Para isso, porém, a perplexidade das organizações sociais na trincheira da mídia não pode resvalar para o imobilismo. O desassombro deste livro é um guia a seguir.
Publicado na Agência Carta Maior, em 21/09/09.