O Brasil está anunciando o fim da crise. É um anúncio um tanto temerário, que pode não se confirmar embora os indicadores de emprego e de investimentos estejam apontando para um ramo ascendente nas curvas respectivas. Mas como a economia não é uma ciência de leis matemáticas expressas nessas curvas, o mundo pode ainda patinar durante mais alguns semestres antes da volta à normalidade. E acho até que isso vai acontecer na Europa, como vem acontecendo desde há muito no Japão. E antes mesmo da retomada pode, sim, cair ainda em algum buraco cinza que não foi detectado. Porque a economia não é uma ciência exata. E o Brasil, ligado ao mundo inevitavelmente, pode se arrastar ainda um pouco mais antes do soerguimento, e até voltar a sofrer alguns abalos. O fim derradeiro dessa grande derrocada depende muito da estatização dos bancos, como mostra José Carlos de Assis, e esta decisão, muito difícil para os líderes do capitalismo, fere o coração do dogma liberal.

Mas o Brasil se antecipou no anúncio e tem sua razão para tê-lo feito: é a decisão de não ter privatizado a espinha dorsal do seu sistema bancário, como queriam os neoliberais, e de ter jogado fora o neoliberalismo antes mesmo da crise, com o Estado recobrando suas funções desenvolvimentistas e inaugurando funções distributivistas. Essa decisão eminentemente política da sua sociedade permitiu aos brasileiros a jactância de dizer que foram os últimos a entrar e os primeiros a sair do poço. Realmente, é verdade, tirando a China e a Índia, que têm planejamento e bancos públicos e continuaram a crescer a taxas astronômicas. Levando-se em conta que se aproxima o ano da disputa eleitoral, faz sentido essa brasileira afirmação precipitada: dentro do jogo democrático, uma certa dose de prosápia é necessária nessas horas.

Mas vamos adiante, acabou o neoliberalismo, é certo, o Estado retornou à intervenção em todo o mundo, vai ter de controlar os bancos e assumir mesmo a sua gestão em muitos casos. É preciso entretanto tirar algumas outras conseqüências substantivas da crise. Por exemplo: acabar com os paraísos fiscais. É um tema que tem sido objeto de debates e tratativas nas reuniões do G-20 e em outros encontros de cúpula, e parece que se vai
formando uma certa vontade política em torno dele. Procuradores de justiça americanos pedem à Suíça a quebra do sigilo bancário de 52.000 suspeitos de sonegação. É uma primeira manifestação oficial. Mas é preciso muito mais; é preciso que cresça muito forte essa vontade política, e principalmente nos EE UU. Porque é obvio que as resistências são muito grandes: os corruptos do mundo são realmente muito poderosos. São muito mais fortes no mundo do que no Brasil, ao contrário do que pensam os brasileiros. Por exemplo, são fortíssimos na Suíça pura e alva. Não quero dizer que os suíços sejam especialmente corruptos mas afirmar que os corruptos do mundo são fortíssimos na Suíça. Os suíços são, isso sim, grandessíssimos hipócritas, porque sabem que vivem da exploração financeira da corrupção mundial e fecham os olhos, nem de longe querem acabar com as suas contas ultra-secretas. Como fecharam os olhos e as fronteiras para os judeus que tentava salvar suas vidas no tempo da Alemanha nazista.

Bem, mas, mesmo sem a colaboração da Suíça, eu acho que essa coisa de paraíso fiscal, lugar onde os sonegadores e corruptos do mundo conservam e lavam seu dinheiro sujo, vai acabar, tem que acabar, porque é o fecho do esquema de controle sobre o sistema financeiro internacional, que tem de prevalecer porque é condição sine qua para o encerramento da crise e a prevenção de novo episódio.

E a extinção desses “paraísos fiscais” vai contribuir, fortemente, para o combate à orrupção política em todo o mundo, inclusive no Brasil, hoje tão preocupado com ela.

Este aliás pode ser um dos efeitos positivos desta crise tão nefasta. Sua superação vai exigir a secagem de um dos fatores mais importantes da corrupção, que é o meio mais usado no mundo todo para a lavagem do dinheiro sujo. Os corruptos querem dinheiro para usá-lo em vida, não para guardá-lo indefinidamente até o sepulcro. E o uso corrente desse dinheiro requer a sua lavagem, sua purificação, que é feita, maciçamente, industrialmente nesses paraísos fiscais. Claro que a Suíça já existia como cloaca de receptação muito antes
de proliferarem como cogumelos esses paraísos novos pelo mundo a fora, livres de qualquer imposto. O nosso irmão Uruguai chegou a ensaiar uma candidatura ao posto de Suíça americana mas felizmente o projeto não prosperou. Mas é claro, também, que a própria Suíça vai ter de se dobrar e relativizar o grande segredo das suas contas numeradas.

Então, sim, acho que poderemos ter, se não um mundo novo, como quer o Fórum Social, pelo menos algo de novo no mundo, e algo novo moralmente importante, algo que permita dizer que os males da crise não terão sido completamente vazios de boas obras. Poderemos então tratar com mais desenvoltura, num patamar ético um pouco mais elevado, da redução da jornada de trabalho e da sobrevivência do nosso planeta, que são os próximos capítulos da agenda política da História.

Não vou aqui entrar no tratamento desses pontos do futuro, mas tão somente constatar que certamente uma condição prévia para este tratamento é a presença ordenadora de uma outra instância política mais larga, mais abrangente, de âmbito internacional, com um nível de eticidade ainda mais alto do que o dos estados nacionais, um patamar novo, nunca antes pensado, acho que nem pelo próprio Hegel, que valorizou tanto o Estado.

Mas isso, realmente, é outro assunto.

*Saturnino Braga, ex-senador, atual presidente do Instituto Solidariedade Brasil (ISB) e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.

 

Publicado no boletim ISB divulgado em 4/8/2009
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