Movimento LGBT: uma análise de Regina Facchini
Boa noite a todos e a todas! Minhas saudações ao vereador Ítalo Cardoso e aos componentes da mesa. É com prazer que recebi a incumbência de relembrar os primórdios da trajetória da Parada LGBT de São Paulo. Esse é, sem dúvidas, um capítulo importante da história da luta por Direitos Humanos e, em especial, da luta pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais na nossa cidade, no Brasil e no plano internacional.
Me sinto privilegiada pela possibilidade de ter assistido e participado desse começo. À época, eu estava às voltas com minha pesquisa de mestrado, que foi realizada a partir do Grupo Corsa e, entre 1996 e 2000, atuei no Centro Acadêmico de Estudos Homoeróticos da USP (CAEHUSP), no Grupo Corsa e no Núcleo de Gays e Lésbicas do PT (NGL-PT). Olhando para trás, tenho certeza que, nem eu e talvez nenhuma das pessoas e dos atores políticos envolvidos no nascimento da Parada de São Paulo, podiam dimensionar naquele momento o que a Parada viria a se tornar no espaço desses 12 anos que nos separam de seu nascimento.
As manifestações de rua sempre foram uma estratégia importante no interior do movimento homossexual, que depois viria a se chamar LGBT. Em 13 de junho de 1980, um ato público realizado em frente ao Teatro Municipal de São Paulo contra a “Operação Limpeza” promovida pela polícia civil de São Paulo e capitaneada pelo então delegado José Wilson Richetti, marcava o que bem poderia ser lido como um Stonewall brasileiro. Com palavras de ordem irreverentes, cerca de mil pessoas caminharam pelas ruas do centro de São Paulo numa manifestação contra a violência policial, ou o que hoje poderíamos reler como homofobia institucional. Naquele momento a vulnerabilidade individual, social e programática de LGBT era muito maior do que é atualmente. Para quem é mais jovem, talvez seja difícil imaginar isso, dado que, ainda hoje, pesquisas, como a recentemente divulgada pela Fundação Perseu Abramo, retratam um país em que quase 1/3 da população não tem vergonha de declarar explicitamente sua homofobia.
Embora o momento do qual falo aqui esteja inserido num outro contexto histórico, é preciso ter em mente que as manifestações públicas marcadas pela irreverência são um instrumento político tradicional no movimento LGBT.
Os anos 1990 foram muito importantes para o movimento LGBT: a quantidade de grupos organizados voltava a crescer e se expandir por todo o país; a aliança com diversos atores sociais se consolidava; o Estado brasileiro começava aos poucos a olhar para LGBTs como sujeitos de direitos; uma atitude que pretendia deixar de lado o vitimismo e encarar a visibilidade e um caráter mais propositivo ganhava maior impulso. A luta pelos direitos LGBT dava mostras de superação de um período de ativismo heróico de poucos grupos que marcou os primeiros anos da epidemia do HIV/Aids, então chamada de “peste gay”.
Em janeiro de 1995, formava-se a primeira rede nacional de grupos LGBT, a ABGLT, no 8º. Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas, realizado em Curitiba, que contou com a presença de 84 grupos ativistas e, pela primeira vez, de grupos especificamente voltados para travestis. Em junho desse mesmo ano, o Rio de Janeiro sedia a 17ª. Conferência Internacional da Associação Internacional de Gays e Lésbicas, a ILGA. Em outubro de 1995, Marta Suplicy apresentava à Câmara dos Deputados, em Brasília, o projeto de lei 1.151, propondo o reconhecimento legal das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. Nesse contexto, marcado por esperanças de mudanças, o 8º. EBGL e a 17ª. Conferência da ILGA foram encerrados com manifestações públicas pelas ruas de Curitiba e do Rio de Janeiro.
Em São Paulo, em 1996, Paulo Giacomini era o responsável por uma coluna Gay na Revista da Folha e provocou alguns grupos para que alguma atividade fosse feita por ocasião do dia 28 de junho, comprometendo-se a noticiá-la em sua coluna. Atenderam a esse chamado os grupos Corsa, NGL-PT, CAEHUSP, Rede de Informação Um Outro Olhar, Projeto Etcétera e Tal, a Associação para Prevenção e Tratamento da Aids e os anarco-punks. Numa noite fria e chuvosa, cerca de 150 pessoas se reuniram na Praça Roosevelt num ato público que prenunciava o desejo de visibilidade coletiva da comunidade LGBT que viria a se expressar no ano seguinte na primeira Parada. Tempos depois, Lula Ramires me contava que aquele havia sido seu primeiro contato mais próximo com organizações LGBT e marcou sua entrada para o movimento. Logo depois, Lula passaria a compor o NGL-PT em, em agosto de 1996, passava a integrar também o grupo Corsa.
No começo de 1997, ocorria em São Paulo, sob a organização do Grupo Corsa, da Rede de Informação um Outro Olhar e de ativistas independentes, o 9º. Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Travestis. Esse encontro foi finalizado com uma passeata com cerca de 300-400 integrantes, pelas ruas do centro antigo de São Paulo, que se encerrou na Praça Roosevelt e foi recebendo adesões enquanto passava pelas ruas.
Depois das passeatas no final do 8º. EBGL, da 17ª. ILGA e do 9º. EBGLT e do ato realizado no 28 de junho de 1996, muitas pessoas já pensavam que seria bárbaro se a manifestação por ocasião do 28 de junho pudesse caminhar pela ruas cidade e ser vista por muitas pessoas. Eu mesma pensava nisso enquanto caminhava carregando a faixa do CAEHUSP durante a passeata ao final do 9º. EBGLT. No entanto, todas as idéias precisam, para que ganhem corpo, daqueles que lhe dêem conseqüências. Essa é uma característica que une as pessoas que participaram até hoje da organização dos eventos do Orgulho LGBT de São Paulo e provavelmente de outros locais do país: a capacidade de dar conseqüências e concretude a idéias.
Já dizia Raul Seixas que “sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha juntos é realidade”. Pensando nisso, me vêm à memória como se fosse ontem, quando Lula Ramires, Denise Coelho e Paulo Giacomini começaram a dialogar com as pessoas no movimento em torno de uma idéia que tiveram numa conversa: por que não saímos às ruas de São Paulo para celebrar positivamente o orgulho de sermos quem somos, para mostrar que existimos, somos muitos e muitas, somos felizes, pessoas comuns, cidadãos e cidadãs que precisam ter garantias de vida digna respeitadas?
A idéia ganhou eco e uniu vários grupos na criação de uma Comissão Organizadora da Parada do Orgulho GLT. O Corsa, o Núcleo de Gays e Lésbicas do PT, o Centro Acadêmico de Estudos Homoeróticos da USP, o Etcétera e Tal, a Associação para a Prevenção e Tratamento da Aids, o Núcleo GLTT do PSTU, o Grupo Expressão de Campinas e os Anarco-Punks integraram essa comissão, e o apoio do Mix Brasil, da Comissão Municipal de Direitos Humanos, da Casa Brande Lee e do Sindicato das Costureiras se fez presente.
No 28 de junho, pela manhã estávamos ansiosos e apreensivos: como será que vai ser? Virá alguém participar? Seremos vítimas de algum grupo intolerante? Até hoje me lembro da nossa divisão de tarefas – que me colocava na coordenação da comissão de segurança, composta por jovens, garotos e garotas anarco-punks – e sou incapaz de não me emocionar vendo uma foto da nossa Kombi branca, emprestada pelo Sindicato das Costureiras, onde ficava o microfone para as falas e palavras de ordem e que tocava as fitas de MPB gravadas pela Denise. Tudo deu certo, a Parada aconteceu pacificamente e cresceu. Certamente, a Parada e as lembranças destes 12 últimos anos estão marcadas nos corações e nas mentes das pessoas que estão aqui hoje e fazem parte da história pessoal de cada um ou cada uma de nós.
Hoje homenagearemos três pessoas, Lula, Paulo e Denise, que naquele momento eram ativistas do Grupo Corsa e/ou do NGL-PT. Trata-se de uma homenagem simbólica a todos e todas que, nesse primeiro momento, deram conseqüência a uma idéia, sonharam juntos e fizeram com que se tornasse realidade. A Parada nos permitiu sair do impasse que exigia a exposição individual e que se abrisse mão do direito à privacidade para garantir direitos coletivos. Hoje essa responsabilidade se tornou mais coletiva e ganhou uma cara muito mais diversa: nestes 12 anos passamos de duas mil a mais de três milhões de pessoas e nossas demandas ganharam manchete dos maiores jornais e se tornaram matéria de TV em horário nobre. Essa visibilidade se reverte em favor da luta pelos direitos sexuais. E esse crescimento reflete a expansão e o fortalecimento de um campo social que acredita na diversidade das formas de amar e na legitimidade de todas elas. Mas mesmo quando a mídia não é ainda capaz de nos retratar com respeito, o efeito não se perde. Pelas escolas, empresas e pontos de ônibus, no dia seguinte, se fala da Parada, propiciando a abertura de espaço para que intervenções contra o preconceito aconteçam a partir dos próprios cidadãos e cidadãs que viveram a experiência de estar ali.
Foi a partir de ativistas como os que homenagearemos hoje que foram tomadas decisões cruciais – como fazer uma marcha, passeata ou parada; panfletar nos Jardins ou nos bares do “centrão”; passar pela Paulista, cartão postal e coração financeiro de nossa cidade, pela Consolação, que abrigava bares que haviam sido alvo de ataques de gangues intolerantes, e terminar na Praça Roosevelt, onde a existência do bar Corsário, tradicional ponto de encontro da comunidade, vinha sendo alvo de pressão de moradores e policiais. Foi com a empolgação, o empenho e a habilidade desses militantes, que se juntaram outros atores políticos e braços ativistas, que surgiram os primeiros apoios de parlamentares, como é o caso do próprio Vereador Ítalo Cardoso, e de empresários do meio GLS.
A sensibilidade política dessas pessoas permitiu pensar em como proteger quem tivesse receio de se expor e em como estabelecer meios de diálogo com pessoas da comunidade ou de fora dela que não são ativistas. Isso tudo por meio de uma receita que, como poderiam dizer os organizadores ou participantes daquele primeiro ato de 13 de junho de 1980, não é exatamente nova: luta política, festa e irreverência podem e devem andar juntas. Dizia o material de divulgação da primeira Parada: “Venha montada, desmontada, casada, descasada, solteira, de botas ou de tamanco. Afinal, quem vai notar você no meio da multidão?”. É assim que efetivamente temos mostrado que “somos muitos [e muitas], estamos em todos os lugares e em todas as profissões” e temos colaborado para avançar a luta contra a homofobia no Brasil.
*Regina Facchini é pesquisadora-colaboradora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre outros livros, é autora (junto a Júlio Simões) de “Na trilha do arco-íris”, recém-lançado pela EFPA.