*Painel apresentado durante o seminário Brasil na China, em maio.

O neoliberalismo, padrão de acumulação hegemônico no mundo durante as últimas décadas, parece estar com seus dias contados. A crise econômica que, a partir dos EUA, irradiou-se pelo mundo nos últimos meses de 2008, expôs mais uma vez as contradições do capitalismo, a incapacidade do mercado de se auto-regular e o papel do Estado na economia e na organização da sociedade.

Diante de uma crise de tais proporções, ainda não se sabe ao certo que ordem econômica e política emergirá, depois que seus efeitos mais imediatos forem enfrentados. Mas parece haver um certo consenso em torno da idéia de que mudanças mais profundas no sistema financeiro e econômico internacional serão incontornáveis.

Em meio às distintas análises e interpretações sobre a crise, torna-se lugar-comum a idéia de que estamos diante do fim de um ciclo. Muitos falam agora em um “período pós-neoliberal”.

No entanto, é preciso cautela ao comemorar a vitória sobre o neoliberalismo. Se é verdade que seus fundamentos econômicos e políticos foram postos em questão pela crise, também é verdade que seu impacto e influência nos diversos países em que foi implantado ultrapassam em muito o simples manejo da política macroeconômica.

Nesse sentido, conhecer esses impactos e influências em cada país torna-se fundamental para construir as saídas da crise, apontando no sentido da superação do modelo neoliberal, que não é senão a forma assumida pelo capitalismo em sua atual fase histórica.

I – O neoliberalismo e a crise

Quando nos referimos à crise atual e sua relação com o neoliberalismo, é importante lembrarmos que a situação de ebulição econômica pela qual passamos hoje tem sua origem nos anos 1970, quando, buscando superar aquela outra crise vivida na época pelo capitalismo, deu-se início a um verdadeiro movimento ideológico, político, militar e econômico que produziu o que chamamos de hegemonia neoliberal.

Naquela ocasião, a ordem econômica que vigorava no mundo desde o Pós-Guerra chegara a seu esgotamento. Os mecanismos de regulação monetária e financeira que haviam sido acordados por 44 países na Conferência das Nações Unidas realizada em Bretton Woods apareceram então como um entrave à manutenção e ampliação dos níveis de acumulação de capital. O caráter redistributivista do Estado do bem-estar social, mesmo em suas versões atenuadas, passou a ser responsabilizado pela crise econômica, como um entrave ao exercício da “liberdade econômica”, da “eficiência”, da “competitividade” e do “empreendedorismo”, considerados assim virtudes inerentes ao capitalismo.

A partir de um ambiente político favorável, alcançado com as vitórias de Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher na Inglaterra, uma importante alteração do sistema econômico internacional foi operada, visando desmontar as políticas anticíclicas que deram base à expansão capitalista dos “30 anos dourados” do período pós-guerra.

Na maior parte dos países, a circulação de capitais saiu do controle dos Estados nacionais, e os excedentes monetários passaram a ser geridos pelo mercado. O próprio Estado transformou-se, perdendo capacidade não só de funcionar como agente econômico, mas também de planejar, regular e administrar.

O capital penetrou, através das privatizações, em domínios até então públicos (energia, comunicação, infra-estrutura, saúde, educação, previdência social etc.). As relações de trabalho foram precarizadas, importantes direitos sociais foram retirados dos trabalhadores, e os sindicatos perderam sua força e poder. A concentração da renda e a desigualdade social aumentaram, e as políticas públicas foram esvaziadas, sobretudo em seu caráter universalista.

Essa política econômica, inspirada nas proposições de Friedrich Hayek e Milton Friedman, entre outros, conformou o que veio a ser conhecido como modelo neoliberal. E é esse modelo que agora é posto em cheque pela atual crise econômica, deixando perplexos seus fiéis seguidores e seus hesitantes críticos.

Os efeitos nocivos desse modelo, do ponto de vista social e no que se refere ao aumento da desigualdade mundial, são conhecidos. Mas mesmo do ponto de vista estritamente econômico, esses efeitos foram contraditórios. Por um lado, houve uma efetiva ampliação da acumulação capitalista e, em alguns lugares do mundo, sobretudo nos primeiros anos do século XXI, um aumento da produção e dos níveis de consumo. Por outro lado, esse crescimento foi obtido, em grande medida, graças a uma financeirização sem precedentes da economia mundial, em que uma parte significativa do dinheiro circulante assumiu a feição de “capital fictício”, não sendo reinvestido efetivamente na produção e não possuindo qualquer relação com a riqueza real produzida.

É preciso destacar que a introdução dessas medidas, que visavam resolver um problema de acumulação do sistema econômico, foi possível graças a uma conjuntura política de grande hegemonia do capitalismo e, do ponto de vista geopolítico, pelo fim da bipolaridade que marcou o período pós-guerra.

A hegemonia do pensamento neoliberal abriu caminho para mudanças estruturais nas relações sociais e políticas, e também para a difusão de um novo conjunto de idéias e valores, que tiveram um impacto profundo sobre as classes trabalhadoras de todo o mundo. Nesse sentido, podemos enumerar, de forma sintética:

1)As mudanças objetivas ocorridas no processo produtivo, tais como a ampliação do desemprego estrutural e das formas precarizadas de contratação da força de trabalho. Estas mudanças objetivas foram acompanhadas de uma diminuição do poder de mobilização e organização dos sindicatos;

2)As alterações ocorridas na distribuição da riqueza nacional, inclusive a retração das políticas sociais. O empobrecimento resultante impactou também o comportamento dos setores médios, fazendo crescer o conservadorismo ideológico e o preconceito contra as camadas mais pobres da população;

3)O enfraquecimento político e ideológico das idéias da esquerda junto às classes trabalhadoras, reforçando a hegemonia do pensamento conservador e favorecendo a disseminação, entre os trabalhadores, de uma cultura baseada na primazia do indivíduo sobre a coletividade, do privado sobre o público, da competição sobre a solidariedade;

4)O crescimento da influência político-ideológica, em setores da classe trabalhadora, dos meios de comunicação de massa, das igrejas em geral e até do crime organizado. Ao mesmo tempo, organizações tradicionais, como os sindicatos e os partidos, viram um decréscimo na sua militância voluntária.

Cabe assinalar que, se o programa neoliberal tinha um receituário geral, baseado nas idéias produzidas no chamado “consenso de Washington”, em cada país ele assumiu feições particulares, em razão das especificidades históricas. Vejamos agora com maior detalhamento como esse impacto e influência se fizeram sentir no Brasil.

II – Os antecedentes históricos do neoliberalismo no Brasil

2.1 – Antecedentes políticos

Se no cenário mundial as transformações citadas acima começam a se processar já na década de 1980, no Brasil a implantação do modelo neoliberal se dá de forma tardia, em relação ao ocorrido em outros países. Isso se explica pelas características históricas do processo de redemocratização do país, após a vigência do período ditatorial que se instalou com um golpe de Estado em 1964.

Os anos 1980 serão, no Brasil, um momento de importante ascensão das lutas sociais, e de uma grande participação da sociedade brasileira na vida política. Data desse período a fundação de várias organizações dos movimentos sociais, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em 1984. Também foi nessa década que se deu a formação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e a legalização dos partidos de esquerda que estavam na clandestinidade, como o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1985.

É neste período também que se instalará o Congresso que aprovará, em 1988, a nova Constituição Brasileira, considerada bastante avançada em termos sociais, justamente como reflexo desse momento de mobilização política.

Podemos dizer que esse processo culmina, em 1989, com a primeira eleição direta para a Presidência da República após os anos de ditadura, na qual o candidato Luis Inácio Lula da Silva, lançado pelo PT e apoiado no segundo turno por todas as forças de esquerda do país, quase chega à vitória, com um programa bastante radicalizado para a época. Lula obteve 47% dos votos, contra 53% do candidato vitorioso, Fernando Collor de Mello.

Mas essa derrota por poucos votos, se por um lado consolidou um partido de esquerda – o PT – como pólo aglutinador das forças progressistas, com condições reais de disputar os rumos políticos do país (o que era um fato inédito em nossa história), por outro abriu caminho para a aplicação, em nosso território, das políticas neoliberais.

A década de 1990 pode ser, assim, chamada de a “década neoliberal” no Brasil. E seus efeitos se fizeram sentir de forma profunda sobre a sociedade brasileira.

2.2 – Antecedentes econômicos e sociais

A crise do regime político instalado após o golpe de 1964 e a crise de acumulação do capitalismo brasileiro, fenômenos inter-relacionados que se originaram em meados da década de 1970, produziram um cenário econômico na década de 1980 marcado, do ponto de vista econômico, por altas taxas de inflação e baixo crescimento da economia. Se nos anos 1970 a economia brasileira teve um crescimento médio de 8,8% do PIB, nos anos 1980 essa taxa caiu para 3,0%.

Não obstante esse quadro econômico, o país permanecia em grande medida isolado do circuito financeiro mundial e protegido da concorrência internacional, sobretudo após a crise da dívida externa brasileira, já no início da década, quando se tornou escasso o fluxo de financiamento vindo do exterior. A redução do mercado de trabalho, assim, apesar do cenário de piora dos indicadores macroeconômicos, não era muito significativa, e nem o crescimento do chamado “trabalho informal” (emprego da força de trabalho em pequenas atividades econômicas não registradas, como vendedores ambulantes, serviços domésticos etc.).

Do ponto de vista social, com todas as deficiências das leis trabalhistas ou a possibilidade de seu descumprimento por parte dos empresários, ainda assim uma parte expressiva de trabalhadores registrados gozava de um importante sistema de direitos e benefícios trabalhistas. No setor público esses benefícios eram ainda maiores, e os servidores que ingressavam na vida pública através de concursos contavam com carreiras estáveis.

Na última metade dos anos 1980, sob o governo de José Sarney, sucessivos planos de estabilização monetária (planos Cruzado I e II e Verão) foram tentados e fracassaram. O agravamento da crise tornava imperativa para a burguesia brasileira a reestruturação da economia e do Estado, bem como uma mudança no seu modo de inserção no sistema mundial – seguindo os passos e o modelo que já estavam sendo implantados em vários lugares no mundo, no que viria depois a ser chamado de “neoliberalismo”. E a vitória eleitoral das elites liberal-conservadoras em 1989, a que nos referimos acima, criou as condições necessárias para a realização de tais reformas do capitalismo brasileiro.

A seguir, analisaremos mais detidamente as características que a implantação desse modelo assumiu no Brasil, buscando avaliar seus impactos econômicos, sociais e políticos.

III – A implantação do neoliberalismo no Brasil

3.1 – Os impactos econômicos

A década de 1990 inicia-se assim, no Brasil, com a vitória eleitoral de Fernando Collor de Mello, que se comprometeu desde o início com as políticas neoliberais. Depois do fracasso de seus planos de estabilização econômica (Planos Collor I e II), que buscavam sobretudo deter a hiperinflação do período – e que jogaram o país em uma recessão, com uma queda de 10% do PIB entre 1990 e 1992 –, o governo deu início à abertura comercial, através da eliminação das barreiras não-tarifárias e de uma gradativa redução das alíquotas de importação, seguindo claramente as orientações pró-liberalização comercial da Organização Mundial do Comércio (OMC). Paralelamente, Collor criou o Programa Nacional de Desestatização, cujo objetivo era a privatização das empresas públicas brasileiras.

A incapacidade de Collor em dar respostas aos problemas econômicos mais graves do país, sua dificuldade política em cumprir o papel de articulador nacional das reformas neoliberais, somados aos escândalos de corrupção nos quais ele se envolveu, levaram em 1992 a seu impeachment. Em seu lugar, assumiu o vice-presidente, Itamar Franco, em um movimento que acabou por gerar as condições políticas para o lançamento de um novo plano de estabilização macroeconômica: o Plano Real. Sustentado basicamente por um programa de financiamento externo, esse plano foi bem sucedido no que se refere ao controle da inflação no país. E o então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, valendo-se da popularidade conferida ao Plano Real por esse sucesso, elegeu-se Presidente da República em 1994, apoiado por uma aliança política liberal-conservadora bastante ampla.

A vitória de Cardoso abriu caminho para a consolidação de uma nova hegemonia burguesa, capaz de articular as elites políticas e econômicas em torno do projeto neoliberal. Criaram-se novas perspectivas para investimentos privados, internos e externos, através de uma política de estabilização monetária e de reforma do Estado, que visava basicamente sua privatização.

Em um primeiro momento, esse impulso de investimento, e sobretudo a queda drástica da inflação (de 46,60% em junho de 1994, para 3,34% em agosto do mesmo ano), produziram uma pequena retomada do crescimento da economia brasileira – ainda que não de forma contínua, uma vez que esse crescimento era grandemente afetado todas as vezes em que havia um período de instabilidade na economia mundial. Mas a paridade entre o dólar e a moeda brasileira (o Real), um dos alicerces do plano econômico, começou a se mostrar impraticável, sobretudo após a crise dos países do sudeste asiático e da Coréia do Sul, assim como a da Rússia, em 1997.

Para não perder popularidade e visando ser reconduzido ao cargo de presidente, Cardoso manteve artificialmente essa paridade até 1998, ano em que foi reeleito. Tão logo assumiu o segundo mandato, entretanto, em janeiro de 1999, ocorreu a desvalorização do Real.

De qualquer modo, a política neoliberal do governo Cardoso criou as condições macroeconômicas para um novo ciclo de acumulação no Brasil, aproveitando-se da liquidez do mercado financeiro internacional e do crescimento da economia norte-americana no período. As medidas econômicas adotadas, baseadas na privatização e na abertura ao capital internacional, eram justificadas ideologicamente como inevitáveis, em razão da pretensa “globalização”.

Áreas até então sob controle público foram abertas aos investimentos privado. O Programa Nacional de Desestatização entrou em plena execução, principalmente com a privatização das empresas siderúrgicas, de telecomunicações e de energia elétrica. Se nos governos Collor e Itamar Franco foram vendidas principalmente as empresas de bens de produção (siderurgia, fertilizantes, petroquímica), no governo Cardoso a ênfase foi dada às áreas de transporte, mineração e telecomunicações.

Os empreendedores internacionais realizaram grandes negócios. Entre 1994 e 1997, as fusões e aquisições na indústria e no setor de serviços, com presença significativa do capital estrangeiro, cresceram cerca de 22% ao ano no Brasil. A política de abertura comercial e o câmbio sobrevalorizado contribuíram para a falência de muitas empresas brasileiras. Aprofundou-se a desnacionalização da economia brasileira. O capital estrangeiro, que em 1991 correspondia a apenas 36% do faturamento dos 350 maiores grupos do país, passou para 53,5% no final de 1999. A participação estrangeira no faturamento das maiores empresas do país subiu 146% entre 1991 e 1999.

Mas ao contrário do que ocorria até então, quando os capitais privados estrangeiros instalavam novas empresas no país, sendo um fator de geração de empregos, nesse período neoliberal eles foram incentivados a adquirir as empresas nacionais já existentes, em um processo a um só tempo de concentração e desnacionalização da cadeia produtiva instalada no território brasileiro.

A contraface desta política era a manutenção de taxas de juros elevadíssimas, bastante atraentes ao capital especulativo internacional, que visavam manter a estabilidade dos indicadores macroeconômicos, mas que tornavam praticamente inviável para o capital nacional a realização de investimentos produtivos.

O mau desempenho das empresas nacionais, derivado portanto dessa inserção dependente na chamada globalização, foi no entanto tratada pelo governo como um problema de “gestão”. Programas que apontavam novas diretrizes de “eficiência”, “produtividade” e “competitividade” foram instituídos, em geral induzindo essas empresas a cortar gastos com a força de trabalho.

A partir de 1994, essa política, como veremos adiante, cobrará seus reflexos no mercado de trabalho, com um aumento dos índices de desemprego e a ampliação das formas precarizadas de contratação (terceirização, trabalho temporário etc).

Após 1997, o padrão de acumulação neoliberal imposto ao mundo começará a enfrentar seus maiores desafios, com a sucessão de crises econômicas e sociais verificadas em vários países. Diante desse quadro, a saída proposta pelos EUA para a situação latino-americana será um aprofundamento da liberalização econômica e da relação de dependência, com a criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

A intenção do governo de Cardoso era aderir à ALCA, o que provavelmente induziria as demais economias da região a tomar uma decisão semelhante. A resistência popular a essa iniciativa, associada a uma crescente perda de popularidade do presidente – tendo em vista a piora das condições sociais de grande parte da população e a insatisfação de parcela da burguesia nacional com as dificuldades impostas ao capital produtivo –, impediram que ele levasse essa ideia adiante. Registre-se que a vitória de Lula e dos demais governos de esquerda na América Latina acabaram por sepultar de vez esse projeto norte-americano.

Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, durante a década neoliberal de 1990 as taxas de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) foram medíocres. Se nos anos 1980 tivemos uma taxa média anual de crescimento de 3%, nos anos 1990 o crescimento anual médio do país atingiu apenas 1,7%.

Apesar do controle da inflação, a distribuição de renda permanecia sendo uma das mais desiguais do mundo. A concentração de riqueza e capital aumentou, assim como a distância salarial entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE), se em 1992 a diferença entre a renda mais alta e a mais baixa era de cerca de treze salários mínimos, em 1999 passou a ser em torno de dezessete salários mínimos.

Pesquisas produzidas por institutos como a Associação Nacional de Empresas de Pesquisa (ANEP) e a Associação Brasileira dos Institutos de Pesquisas de Mercado (ABIPEM) mostraram que em 2002 havia 137 milhões de brasileiros nas classes C, D e E, com rendas mensais brutas inferiores a R$ 1 125,00, e baixíssima capacidade de consumo.

Aliás, uma das características deste período neoliberal foi a diminuição contínua da renda dos trabalhadores, além de uma piora significativa nas condições de trabalho. Uma pesquisa do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) mostrou que na década de 1990 o salário médio real do trabalhador caiu 18,8% na região metropolitana de São Paulo, onde se concentra o maior contingente de assalariados do país, como conseqüência do aumento do desemprego e da informalização crescente do trabalho (em meados de 2000, por exemplo, dos 822 mil empregos criados nas seis regiões metropolitanas, apenas 62 mil foram com carteira assinada). Outro dado importante é que a participação dos salários no PIB, de 45% em 1990, caiu para 37% em 1999.

Essa piora nas condições de emprego e renda dos trabalhadores brasileiros refletiu-se também em outros indicadores sociais, tais como o aumento dos níveis de criminalidade nos centros urbanos, consequência da incapacidade do modelo econômico de absorver força de trabalho, por um lado, e da forma como o neoliberalismo afetou o Estado e sua capacidade de implementar políticas sociais, por outro. Sobre esse segundo fenômeno, trataremos a seguir.

3.2 – Os impactos sociais

Do ponto de vista social, os anos 1990 consagraram-se como uma década de contínua transformação não apenas das condições objetivas, mas também da subjetividade dos trabalhadores, com impactos negativos sobre sua consciência de classe.

Em primeiro lugar, o “choque de competitividade” imposto pela abertura ao comércio internacional e a conseqüente reestruturação produtiva por que passou o capitalismo brasileiro, sobretudo no setor industrial – com a introdução de novas tecnologias e de novas formas de organização da produção, tais como o just-in-time, a terceirização, o “trabalho em equipe”, os “programas de qualidade total” e os sistemas de remuneração flexível –, além de uma intensificação da exploração do trabalho via ampliação do número de horas trabalhadas, fez aumentar a produtividade da força de trabalho, que se fez acompanhar, como já dissemos acima, por uma redução dos postos de trabalho e dos salários pagos.

No setor bancário, por exemplo, a introdução de novas tecnologias microeletrônicas voltadas para o auto-atendimento, assim como o incremento da prática da terceirização e das novas formas de gerenciamento do trabalho, contribuíram para uma drástica redução da força de trabalho ali empregada. Estima-se que, entre 1994 e 1996, cerca de 140 mil bancários perderam o emprego. Se em 1989 a categoria bancária no Brasil era constituída por aproximadamente 811 mil trabalhadores, em 2001 esse número caiu para 394 mil.

Ao mesmo tempo, cresceu intensamente o número de empregados em trabalhos temporários e de trabalhadores domésticos, inseridos no mercado de trabalho de forma precária, prestando serviços para a indústria, os bancos e o comércio por tempo parcial e determinado, em sua maioria sem contar com nenhuma seguridade social, nem com os benefícios trabalhistas previstos na lei.

Esses processos em massa de constantes demissões e de admissões através de contratos precários geraram um clima de instabilidade permanente entre os trabalhadores, minando as formas de convivência, integração e sociabilidade no interior da empresa. Podemos mesmo dizer que uma nova linguagem foi introduzida no mundo do trabalho, na qual conceitos como “produtividade”, “eficiência”, “novas habilidades”, “corte de custos”, “remuneração variável”, entre outros, passaram a fazer parte não só do ideário dos capitalistas, mas também do chamado “mundo do trabalho”.

Esse novo discurso produtivista mascarava a crescente exploração da força de trabalho e dificultava a construção de uma identidade e de uma solidariedade de classe. E mesmo aqueles que não eram convencidos por essa ideologia, acabavam subordinando-se a sua lógica pela insegurança e medo gerados por essa política sistemática de demissões imotivadas e pela precarização das relações de trabalho.

Aliás, nesse período o governo Fernando Henrique Cardoso buscou por vários mecanismos introduzir uma política de desregulamentação do mercado de trabalho, através de uma reforma das leis que asseguravam os direitos trabalhistas. Se não obteve pleno sucesso nessa empreitada, foi graças à resistência dos trabalhadores e das forças de esquerda no Brasil, com especial destaque para o papel cumprido pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

Outro dado importante dessa desagregação do mundo do trabalho está no aumento do pequeno comércio chamado “ambulante” e do trabalho autônomo de baixa remuneração nos centros urbanos médios ou grandes, que são na verdade formas ocultas de desemprego, às vezes não registradas nas estatísticas.

A degradação das relações de trabalho na década de 1990 atingiu não apenas o setor privado da economia brasileira, mas também o setor público. O governo Collor iniciou e o governo Cardoso aprofundou uma série de medidas neoliberais de desmonte do Estado, com um corte substantivo dos recursos para custeio e contratação, que prejudicou a qualidade do serviço público, desvalorizou salários e reduziu a capacidade do governo de realizar investimentos sociais. Entre 1995 e 1997, dados apontam para uma redução de cerca de 140 mil empregos no setor público. E com as privatizações ocorridas em 1998 e 1999, esse número cresceu ainda mais.

Assim, se a Constituição promulgada em 1988 havia garantido à população brasileira, nos marcos jurídicos e legais, um conjunto de direitos sociais relativos à seguridade social, educação, cultura, saúde, entre outros, as políticas neoliberais significaram um retrocesso no usufruto desses direitos, com a implantação, a partir principalmente de 1995, de um novo conceito de Estado, cuja função seria apenas a de “gestor” das políticas sociais, que deveriam ser implementadas por instituições privadas.

Esse novo modelo tinha como características principais a focalização sobre a pobreza extrema e a oferta de serviços apenas a algumas camadas sociais, no lugar da universalização prevista na Constituição; e a privatização da oferta de serviços públicos, incluindo saúde e educação, com o aumento da participação não-governamental na sua provisão.

Um exemplo claro dessa política deu-se no setor da educação superior. Entre 1994 e 2000, o número de alunos matriculados em instituições privadas cresceu em 86%. Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), em 2002, do total e vagas oferecidas no ensino superior brasileiro, 83,4% eram nas instituições privadas, e apenas 16,6% nas públicas.

Desse modo, embora no Brasil não se tenha completado o desmonte da educação, da saúde e da previdência públicas, como ocorreu em outros países – em grande parte em razão das lutas empreendidas pelos setores populares –, houve sem dúvida um encolhimento do Estado e uma redução significativa da parte do orçamento público destinado às políticas sociais. A lógica era priorizar o pagamento das dívidas públicas, que haviam sido profundamente elevadas pela dependência do capital externo e pela política de juros altos então praticada.

Novamente, usamos o setor da educação como exemplo. No período de 1990 a 1995, foram gastos em média, com o pagamento de juros, encargos e amortizações das dívidas interna e externa, 6,20% do PIB. No mesmo período, a educação recebeu, em média, 1,06% do PIB.

Essa gestão pública orientada por um modelo monetarista acabou por aumentar os índices de pobreza e a desigualdade social no país, disseminando a lógica segundo a qual uma vida digna e justa nunca seria possível para todos. Apenas os mais aptos e capazes teriam direito a ela. Essa lógica levava a sociedade a crer que a dificuldade de acesso a bens e serviços básicos não era culpa do Estado, mas um resultado do fracasso individual.

Esse sentimento, aliado às outras características do modelo neoliberal, também resultou em graves consequências para a vida política das classes trabalhadoras, como veremos a seguir.

3.3 – Os impactos políticos

No Brasil, assim como em outras partes do mundo, a hegemonia do pensamento neoliberal e as alterações objetivas e subjetivas provocadas por esse novo padrão de acumulação, conforme buscamos apontar, trouxeram como conseqüência, paralelamente às teses do fim da historia e do fim do Estado, a idéia do “fim da política”.

Essa idéia do fim da política estava relacionada a algumas das características centrais do neoliberalismo, entre as quais citamos:

a)O aumento das desigualdades sociais, que fragmentou profundamente o tecido social e ampliou o abismo entre as maiorias empobrecidas e as minorias que enriqueceram ainda mais. Esse fenômeno acentuou as contradições entre as necessidades dos primeiros e os interesses dos últimos, o que afetou a idéia de “bem comum”, de “interesse coletivo”, fundamentos tradicionais da atuação política. Ao mesmo tempo, a lógica da privatização, invadindo todos os setores da vida social, enfraqueceu o sentido da representação política, que só pode ser exercida nos espaços públicos.

b)A idéia de que a sociedade deve ser organizada pelo mercado, o que significa que quanto mais fortes são os interesses privados, maior sua capacidade de se impor sobre o conjunto da população. Incapaz de encontrar assim os canais para ver suas demandas atendidas, a maioria dos indivíduos acaba por desacreditar completamente dos poderes públicos e da representação política;

c)A idéia de que as medidas tomadas pelos governos neoliberais eram inevitáveis e indiscutíveis, uma vez que se justificavam por argumentos “técnicos”. Assim, fazia-se crer que os Estados não tinham nenhuma alternativa na tomada de decisões na área econômica, o que ampliava a sensação de que a política era impotente, e de que a alternância de poder não seria capaz de mudar efetivamente nada.

Aliás, esse esvaziamento dos espaços públicos e sua substituição por formas midiatizadas de fazer política, aliado à perda de força, na sociedade, das idéias socialistas, empurraram os partidos de esquerda para a luta institucional e as disputas eleitorais, atuando negativamente sobre sua capacidade de promover a mobilização social.

Cabe destacar, nesse sentido, os efeitos do neoliberalismo sobre a organização dos trabalhadores, que também teve impacto sobre os partidos políticos que se propunham a representá-los, como o PT.

Ao longo da “década neoliberal”, houve no Brasil uma verdadeira ofensiva do capital sobre as principais categorias organizadas, tais como metalúrgicos e bancários. A perda de postos de trabalho, a nova cultura “empresarial” introduzida no ideário dos trabalhadores, a precarização das formas de contratação e a disseminação do medo como forma de coação resultaram em uma redução das bases dos sindicatos, enfraquecendo o potencial de mobilização e luta dessas organizações.

Essa redução atingiu também os sindicatos no setor público, tendo em vista as privatizações realizadas e a introdução da lógica do mercado em seu funcionamento.

É importante ressaltar que a debilitação relativa da força dos trabalhadores não foi um efeito colateral das medidas neoliberais. Tratou-se na verdade de um de seus elementos centrais, pois nela residia a possibilidade de ampliar a exploração da força de trabalho sem enfrentar a resistência organizada dos sindicatos.

Assim, de uma posição política ofensiva no final da década de 1970 e início da década de 1980, as organizações sindicais passaram, nos anos 1990, a uma postura defensiva. Tratava-se de tentar conservar os direitos e manter seus filiados, cujo número tendia a reduzir-se consideravelmente. O número de greves, assim como a adesão a elas, diminuiu significativamente, sobretudo no setor privado.

Se os sindicatos maiores, apesar disso, conservaram algum poder de negociação, a situação era mais dramática para aqueles trabalhadores que, ao serem submetidos a contratos precários, sequer podiam organizar-se formalmente. Isso explica porque, entre 1994 e 2000, os que recebiam acima de vinte salários mínimos obtiveram até 41% de reposição salarial, enquanto os que ganhavam cinco salários mínimos tiveram, ao contrário, 7,2 % de queda no salário.

Isso não significa que a capacidade de resistência da classe trabalhadora na década de avanço do neoliberalismo no país tenha desaparecido. Mas houve, sem dúvida, uma grande fragmentação, além de um enfraquecimento das visões mais estratégicas. Muitas das lutas assumiram uma dimensão tática, específica e contingente. Trabalhava-se, naquele momento, mais para garantir a manutenção de certos direitos, do que para avançar na conquista de poder para a classe.

Essa escalada de implantação do neoliberalismo no Brasil, conforme a descrevemos acima, foi de certo modo interrompida com a vitória de Lula, em 2002. No entanto, como assinalamos anteriormente, seus efeitos afetaram estruturalmente o país, e representam uma pesada herança com a qual o atual governo e a sociedade ainda se defrontam cotidianamente.

Assim, se a crise internacional coloca em cheque os pressupostos desse padrão de acumulação, suas influências ainda se fazem sentir. Daí a importância e a necessidade de avançar no processo de transformação do Brasil iniciado com o governo Lula, aproveitando inclusive a crise para superar definitivamente o neoliberalismo e instaurar um novo modelo de desenvolvimento sócio-econômico no país.

Fontes consultadas:

ALVES, Giovanni. “Trabalho e sindicalismo no Brasil: um balanço crítico da ‘década neoliberal’ (1990-2000)”. Revista de Sociologia e Política, nº 19. Curitiba: UFPR, novembro de 2002.

POCHMANN, Márcio. O emprego na globalização : a nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: Boitempo, 2001.

POMAR, Wladimir.O modelo Collor-FHC. Portal eletrônico da Fundação Perseu Abramo: www.fpabramo.org.br. 15/04/2009.

Páginas eletrônicas:

DIEESE – Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos: www.dieese.org.br.

IBGE – Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística: www.ibge.gov.br.

INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais: www.inep.gov.br

IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas: www.ipea.gov.br.

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