Resolução do Encontro Brasil Central – O Financiamento e o Mercado da Cultura
Anápolis, GO – 24 a 26 de abril de 2009

Breve histórico

Depois da pouco exitosa experiência com a Lei Sarney surgiram a Lei 8.313 de 1991 (Lei Rouanet) estabelecendo um Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), a Lei 8.685 de 1993 (Lei do Audiovisual) e a MP 2.228 de 2001, que regulamentam o fomento ao audiovisual por intermédio da renúncia fiscal, além de uma série de leis estaduais e municipais.

Por meio dessas leis foram criados mecanismos de financiamento diferenciados segundo sua natureza e destinação, abrangendo no mesmo complexo ferramentas distintas como o fundo público, a renúncia fiscal para doações e patrocínios e os fundos de investimento.

Aos poucos, motivados pela tese do Estado mínimo e pela memória recente do dirigismo estatal sobre a cultura durante a ditadura militar, os governos nos três níveis federativos, com honrosas exceções, passaram a dar ênfase apenas ao instituto da renúncia fiscal em detrimento dos demais mecanismos, ao mesmo tempo, no mercado, as verbas de mecenato passaram a ser operadas não por departamentos culturais, mas sim pelos departamentos de marketing das empresas.

Essa conjugação levou a uma lógica perversa, pois o maior volume de recursos disponibilizados para o fortalecimento da produção cultural estava a serviço, na verdade, das estratégias de fortalecimento da imagem institucional das empresas patrocinadoras, e o resultado foi que somente os projetos que criassem essa possibilidade passaram a ser contemplados com verbas.

Vale uma ressalva à orientação que vêm sendo adotada nos últimos anos pelas empresas estatais, efetivamente integradas ao contexto de políticas culturais definidas pelo MinC.

Na sequência vieram as fundações e institutos que ostentavam generosamente o nome das suas marcas patrocinadoras, onde até o material de escritório era pago com recursos públicos, mas que pouco contribuíram para ampliar o acesso da população aos produtos realizados com recursos incentivados.

Isso não impediu que muitos bons projetos culturais fossem e ainda sejam viabilizados pelos recursos oriundos da renúncia fiscal, sem os quais não haveria a retomada do cinema brasileiro, não se produziriam nem metade dos espetáculos que foram realizados, milhares de músicos não teriam difundido seu trabalho, orquestras desapareceriam, em resumo, não se viabilizaria a incipiente, mas importantíssima economia da cultura que existe hoje no Brasil e por meio da qual são gerados mais empregos que na indústria automobilística, sem falar no que gera de pertencimento.

Mas é igualmente verdade que praticamente toda essa economia está assentada sobre uma base extremamente frágil que coloca nossa indústria cultural em situação de dependência dos recursos geridos, mesmo que indiretamente, pelo Estado, justamente o que as leis de incentivo pretendiam evitar. E em momentos de crise financeira como a que estamos atravessando expõe ainda mais esta condição.

Mais grave ainda é o fato de que a maioria das atividades culturais brasileiras não alcançarem qualquer estímulo através desse mecanismo, seja por que realizam obras que não aderem às expectativas dos patrocinadores, seja por que são originárias de regiões onde não há grandes empresas que declaram imposto de renda com base no lucro real.

O MinC, durante a gestão do presidente Lula, tem sido responsável por recuperar um papel ativo para o Estado na formulação de políticas culturais e sobretudo por difundir a multiplicidade de dimensões que elas devem abranger, criando fundos de investimento e redes de pontos de cultura dentro de um mesmo projeto político sem que haja prejuízo do conceito de Cultura com que opera.

No entanto, as limitações criadas pelo sistema de financiamento fazem com que esse projeto não se cumpra plenamente, e parte do esforço empreendido submerge sob um debate onde o maniqueísmo das posições encaminham para um dilema de difícil resolução, enquanto o mais acertado parece ser a superação do modelo de financiamento à cultura no Brasil.

O maniqueísmo do debate

As polêmicas envolvendo a política de incentivo à cultura com base nos mecanismos de renúncia fiscal surgiram junto com a própria política, mas ultimamente vêm ganhando contornos de disputa ideológica. É preciso deixar claro que consideramos o conflito e a polêmica meios de fazer avançar a democracia mesmo quando não produzem consensos, e a disputa ideológica é absolutamente legítima, desde que se apresente como tal, sem disfarces nem subterfúgios.

No entanto, o acentuado maniqueísmo nas posições de alguns grupos que se manifestam nesse debate não contribui para o fortalecimento das instituições democráticas e é nessa perspectiva que o Partido dos Trabalhadores pretende atuar.

De um lado há os que percebem nas propostas de reformulação da Lei Rouanet recentemente apresentadas pelo MinC uma intenção estatizante, que concentraria poder de decisão sobre os destinos dos recursos incentivados no governo, retrocedendo a um modelo de dirigismo estatal.

Do outro lado da polêmica há os que percebem nessa crítica a tentativa de manter intacto o privilégio de alguns poucos agentes culturais que contam com patrocínios de grandes empresas, e argumentam que, se a determinação de quais serão os beneficiados pelos recursos incentivados continuar cabendo apenas ao mercado, estaremos submetendo a produção simbólica e a construção dos valores da sociedade à lógica do lucro.

Para que tenhamos um bom debate sobre mecanismos de incentivo fiscal à Cultura é necessário considerar qual o papel destinado ao Estado e ao mercado na difícil tarefa de fortalecer o campo da cultura no Brasil, pois que, pela sua própria natureza, políticas com base na renúncia fiscal sempre envolverão a presença de ambos, em alguma medida.

Em primeiro lugar é preciso afastar o preconceito que questiona a legitimidade das leis de incentivo com base na renúncia fiscal. O Estado sempre utilizou políticas fiscais para estruturar economias que julgasse relevantes para o país, e as indústrias culturais não são apenas importantes pela quantidade e qualidade de empregos e renda que geram, mas, também pelo poder de alavancar outras indústrias nacionais, reposicionando a imagem do Brasil no mundo.

Constatar a realidade e a necessária utilização das leis de renúncia fiscal não significa, em hipótese alguma, admitir que sejam ferramentas suficientes, pelo contrário. O Partido dos Trabalhadores defendeu nos programas de governo das duas campanhas do presidente Lula o fortalecimento dos fundos púbicos de fomento direto às atividades culturais e a criação de mecanismos de fomento direto ao consumo, no entanto, essas e outras iniciativas deverão ser formuladas e implementadas no âmbito de um grande pacto social e federativo que é o Sistema Nacional de Cultura (SNC).

O SNC

O Partido dos Trabalhadores vem defendendo que essa superação é possível pela implementação de um sistema público de formulação, gestão e fiscalização de políticas culturais: o Sistema Nacional de Cultura.

SNC precisa ser pensado a partir dessa perspectiva de superação, ou seja, não como substituição de um modelo baseado em mecenato por outro baseado em financiamento a fundo perdido, mas como um complexo que abrange essas e outras possibilidades que se articulem federativamente e movimentem diferentes atividades por intermédio de diferentes mecanismos.

A noção mais difundida de sistema público é aquela que deriva das experiências da saúde e da educação, que apesar das inúmeras limitações que enfrentam são sistemas efetivamente públicos e federativos e se caracterizam por uma grande rigidez normativa. É justamente a perspectiva dessa rigidez normativa que assusta quem tenta imaginar o que seria esse princípio aplicado ao nosso campo.

Essa rigidez dos sistemas de saúde e educação é necessária para dar conta de um efetivo compartilhamento de recursos e de responsabilidades entre os entes federativos e se justifica pelos múltiplos níveis de complexidade dos serviços prestados em saúde e educação, mas só é possível ocorrer por que ambas as atividades possuem lócus bem concreto e atores bem definidos, ou seja, qualquer um sabe identificar onde estão os ambulatórios, os hospitais e quem são os profissionais de saúde, assim como todos sabem onde fica a escola, a creche ou a universidade, o que é preciso para compor a merenda escolar ou equipar a biblioteca e quem são os profissionais de educação.

Na cultura não há como erigir políticas que dependam desse grau de concretude, pois nossa principal característica é a fluidez e nosso principal tesouro é a liberdade de mudar de rumo a todo o momento. Isso fica ainda mais reforçado quando pensamos em políticas culturais sob a orientação do conceito de Cidadania Cultural, que ultrapassa a velha visão clientelista de políticas voltadas para atender artistas e coloca o fortalecimento da cidadania como seu objetivo.

Nesse ambiente, as políticas cultuais precisam objetivar o direito que cada cidadão tem de se expressar pelos mais diversos meios e linguagens, de fruir livremente os conteúdos culturais de sua comunidade e do mundo e de ver preservados o patrimônio material e imaterial que lhe conferem sentido de pertencimento, direitos esses que só poderão ser garantidos por políticas públicas sólidas e perenes, que não mudem completamente a cada quatro anos quando um novo governo é eleito.

É preciso afirmar que a adoção do conceito de Cidadania Cultural como premissa das políticas públicas de cultura não afasta a necessidade de fortalecer as empresas que formam as indústrias culturais, criar condições objetivas para uma companhia de Dança ou Teatro se programar para realizar o longo ciclo que vai da pesquisa até a apresentação de um espetáculo, para que uma editora opere por dez ou quinze anos até formar seu público, para que um órgão municipal de cultura realize seu plano plurianual, enfim para que se estruturem essas e outras atividades e processos que demandam tempo e regularidade nas regras de relacionamento com o Estado.

Em resumo, ao falarmos de Sistema Nacional de Cultura precisamos ter em mente algo que constitua uma sólida malha institucional, mas que também se caracterize por uma gestão ágil e articulada.

Entender o problema por esse ângulo significa trazer toda aquela gama de atores sociais, gestores culturais, legisladores, investidores, pesquisadores e usuários de cultura, enfim toda sorte de interesses e necessidades, para compor espaços de constante negociação, onde sejam definidos programas continuados que objetivam resultados de logo prazo que demandem o envolvimento articulado de vários atores com suas respectivas responsabilidades.

Esse desafio poderá ser enfrentado pelo Plano Nacional de Cultura, que traz a oportunidade de promover esse grande pacto em torno das políticas e programas de interesse nacional prevendo também suas próprias instâncias de avaliação e validação. Considerando que o PNC cumpra essa tarefa, restará ainda instituir processos e fluxos de gestão que confiram agilidade, transparência e objetividade ao conjunto das instituições públicas, onde o pacto federativo seja operacionalizado de fato e resulte em ações concretas.

A ferramenta que vai primeiro trazer essa concretude para o SNC, permitindo uma co-gestão efetiva de programas culturais é justamente o sistema de financiamento público. E nossa defesa permanece na prioridade de ampliação dos recursos orçamentários como mantenedor do tripé da política. Novas leis e políticas se tornarão um grande barco a motor sem combustível sem a aprovação da emenda constitucional 150/03 que vincula orçamento mínimo para a gestão da cultura nos três níveis com 2% para a União, 1,5% para os Estados e 1% para os municípios.

A perspectiva aqui é a de erigir um processo eficiente e permanente para gestão de recursos e competências. Isso é Sistema Nacional de Cultura e começa pela revisão das leis de fomento, avançando na estruturação das redes de relacionamento e intercâmbio político-administrativo com amplo controle social, que darão sustentação às políticas culturais como um todo e não criar mais programas e mais leis de fomento que herdem a mesma sorte de problemas das que hoje existem ou criar leis e órgãos sem uma base de cultura política assentada sobre o princípio da co-gestão.

Avançar na estruturação de um sistema público para a cultura no Brasil significa avançar na reformulação de um programa efetivamente nacional de fomento à cultura, sem o que o sistema não se sustenta, por esse motivo seria fundamental que o Partido dos Trabalhadores, por meio da sua militância cultural, retomasse o debate sobre as leis de fomento à cultura no contexto do debate sobre a estruturação do SNC, evitando simplificações, recusando o sectarismo e apontando para a construção de uma arquitetura institucional concreta.

A posição do PT

Assim como ocorre em outros setores da economia, a Cultura se estrutura em cadeias produtivas cujos elos são interdependentes, e essas diversas cadeias se comunicam criando uma complexidade de que cada uma das atividades culturais necessita para existir. Isso implica elaborar políticas que tenham simultaneamente um alto grau de complexidade e de resolutividade, dentro de um aparelho estatal burocratizado e lento e essa complexidade toda é o que o maniqueísmo do atual debate sobre a reformulação da Lei 8.313 está escondendo, fazendo parecer que se trata de uma escolha simples.

O Ministério da Cultura, desde o início do primeiro governo Lula, vêm fazendo uma decidida inflexão no sentido de ampliar o escopo de sua atuação, esforço esse que precisa ser incentivado e preservado. Sabemos todos que existem falhas e precariedades, assim como sabemos que existem vários outros exemplos de políticas públicas, em diversos lugares do país, que comprovam a possibilidade de lidar de modo eficiente com a realidade fluida e complexa do campo da Cultura.

A conseqüência mais indesejável do maniqueísmo que se instalou nesse debate é desviar o foco daquilo que deveria ser o centro dessa reforma: a necessidade premente de buscar uma cultura de gestão sistêmica das políticas de cultura, baseada em um amplo pacto federativo, com recursos orçamentários diretos e principalmente, legitimados pela presença orgânica dos espaços de participação social na elaboração, gestão e fiscalização dessas políticas.

Para o Partido dos Trabalhadores esse momento impõe rever os processos de tomada de decisão e de compartilhamento de recursos entre Estado e sociedade e dentro do próprio Estado, realizando um pacto com dupla dimensão: social e federativo. Assim, se chegaria ao ponto de superação do maniqueísmo no sentido de uma conquista efetiva, que pode orientar a reformulação do arcabouço institucional que vêm servindo para fomentar menos a Cultura, do que as disputas que se dão em torno dos destinos dos recursos públicos no Brasil.

Em virtude do exposto acima, o Partido dos Trabalhadores acredita que mais do que um debate sobre a reformulação da Lei Rouanet é importante buscarmos propostas de formulação de um sistema público de fomento à cultura para todo o país.

Reconhecemos a importância de fortalecer toda oportunidade de debate democrático na Cultura, mas salientamos que não se trata apenas de debater os mecanismos de fomento que existem e os que podem vir a ser criados, mas antes, implementar formas efetivamente democráticas e republicanas de gestão desses mecanismos.

Considerando essas ressalvas vimos apresentar nossa contribuição ao projeto de lei colocado para consulta pública:

Sugestões de premissas para reformulação do Projeto de Lei 8.313
Financiamento

1. Criar uma contribuição sobre a venda de aparelhos de televisão, rádio, DVD, CD player, dispositivos de armazenamento de dados como pen drives, discos rígidos e aparelhos de telefonia móvel a ser destinada ao FNC e distribuída entre nos novos fundos setoriais.
2. Aumentar para 30% a exigência de destinação ao FNC por parte do patrocinador que destinar recursos incentivados às pessoas jurídicas com finalidade cultural por ele criada.
3. Prever na lei a possibilidade de elaboração de Editais, tanto com recursos orçamentários quanto com recursos de co patrocinadores, nos moldes dos Programas Especiais de Fomento da Lei do Audiovisual, que envolvam o compartilhamento de recursos e de poderes entre União, estados e municípios.
4. Aumento do escopo de empresas que podem fazer jus à renúncia fiscal incluindo as que operam com lucro estimado usando como referência a redação dada pelo decreto 6.304 que regulamenta lei 8.685;
5. Aumento para 10% do percentual de do IR devido por pessoa física que pode ser destinado a projetos incentivados.
6. Criação de um sistema de fiscalização e monitoramento dos recursos públicos investidos na Cultura que articule os três entes federativos.
7. Adoção de critérios técnicos para o escalonamento da renúncia fiscal por modalidade.
8. Adoção de mecanismos de prestação de contas dos projetos incentivados via web nos moldes do Portal Transparência Brasil.

Participação social e pacto federativo

Estipular no texto da lei a composição, processo eletivo, tempo de mandato e publicidade dos atos da CNIC nos seguintes moldes:

1. Entre os representantes do governo na CNIC, no mínimo um terço será composta por representantes dos órgãos públicos responsáveis pelas políticas de cultura dos estados e municípios, eleitos pelos seus pares em fóruns ou encontros com ampla publicidade.
2. Entre os representantes da sociedade civil deverão constar representantes das categorias artísticas e Pontos de Cultura que estiverem estruturadas em Câmaras Setoriais do CNPC, eleitos diretamente pelos membros das respectivas câmaras;
3. Entre os representantes da sociedade civil deverão constar empresários dos segmentos de produção, distribuição, programação e exibição de bens das indústrias culturais eleitos diretamente pelos seus pares;
4. Representantes da cultura popular serão eleitos diretamente pelos seus pares durante fórum específico promovido pela SID-MinC.
5. O mandato dos membros da CNIC será de 2 anos, sem direito a renovação imediata.
6. As reuniões da CNIC serão abertas ao público e transmitidas por videoconferências e pelo sistema público de TV.
7. Os pareceres dos projetos deverão ser publicados no site do MinC, dentro dos critérios técnicos e objetivos.
8. A CNIC deverá expedir relatório semestral demonstrando os resultados atingidos na ampliação do acesso aos bens e serviços culturais e o impacto dos recursos destinados no fortalecimento e qualificação das empresas e grupos culturais.

Desconcentração e descentralização

* A CNIC irá estipular tetos percentuais para destinação de recursos entre as cinco regiões do país, considerando a densidade populacional de cada uma.

Direitos

1. Uma vez que uma obra seja financiada com no mínimo 50% de recursos públicos é justo que o Ministério da Cultura e demais órgãos da Administração Pública Federal possam dela dispor para fins não-comerciais com períodos diferenciados para cada tipo de produto cultural a partir de sua primeira veiculação. No entanto, é preciso remeter esse tema para uma regulação específica que trate das condições dessa utilização, para que não gere dolo ao autor/produtor da obra ou serviço, que permita contestação mediante comprovação de que o uso pelo poder público geraria efetivo prejuízo a operações comerciais previamente estabelecidas, e que limite o direito de veiculação, publicação e uso da obra ou serviço por parte do Estado.

2. Supressão do limite de 05 anos para o mecenato, garantindo a continuidade do mecanismo preservando a vigência da Lei 8.313/91.

3. Garantia de que os projetos não poderão, em nenhuma hipótese, ser objeto de apreciação subjetiva quanto ao seu valor artístico ou cultural.

4. Garantia de transição entre o modelo da lei Rouanet até a completa regulamentação do PROFIC, sem prejuízo para os produtores e patrocinadores, prevendo capacitação e formação dos agentes culturais para adaptação ao novo modelo.