Embora a “grande imprensa” venha, de modo geral, apresentando um comportamento bem menos figadal do que o adotado por ocasião da discussão do projeto da Ancinav, a cobertura, pelos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, das discussões em torno da renovação da lei de incentivo à cultura está permeada por omissões, manipulações editoriais e estratégias discursivas que impedem uma apreensão mais abrangente do processo ora em curso – e dos interesses em jogo.

O debate para renovação da lei começou oficialmente em 2003, foi pontualmente retomado depois disso e ganhou força no ano passado, durante o Fórum Nacional de Financiamento da Cultura, entrando para a ordem do dia a partir da divulgação, há um mês, de documento, produzido no âmbito do Ministério da Cultura, que resume e hierarquiza as propostas anteriormente debatidas. Desde então, PDF com as diretrizes do projeto está disponível para consulta pública no site do órgão.

Os maiores problemas identificados são a concentração dos projetos em poucas empresas produtoras (3% dos captadores obtiveram 50% do volume de verba arrecadada desde a vigência da lei), a desigualdade regional (Sul e Sudeste ficaram com 86% do total de verba captada entre 2002 e 2007), o baixo investimento privado (apenas 10% do custo dos projetos; o restante é coberto por dinheiro público) e, sobretudo, a “censura privada” (80% dos projetos julgados aptos a captar recursos não encontram diretor de marketing que os patrocine – com dinheiro público, convém notar). O fato de o ingresso mínimo para o Cirque du Soleil – que, acredite, captou recursos pela lei – ter custado $300,00 chamou a atenção para a necessidade de instituir alguma forma de retribuição social ou controle de preço de ingressos; já o montante arrecadado através da lei por órgãos governamentais (nos âmbitos federal, estadual e municipal) e da oposição (por exemplo, o Instituto Fernando Henrique Cardoso) evidenciou a necessidade de coibir seu uso político.

As principais propostas
Apresentadas aqui de forma extremamente resumida, as principais propostas do projeto são:

1. Fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura (FNC), aumentando seu volume de recursos e o montante de investimento público direto empregado em produção cultural no país (que em 2007 foi da ordem de 19%);

2. Diversificação das modalidades de financiamento de projetos, que passariam a incluir linhas de crédito e as chamadas PPCs (Parcerias Público-Privadas);

3. Ampliação da participação decisória dos setores artístico-culturais para além do âmbito do FNC (ou seja, incidindo sobre capital oriundo de renúncia fiscal);

4. Co-parcerias com estados e municípios;

5. Criação de diversas faixas de cotas de patrocínio via isenção tributária, somadas às de 30% e 100% vigentes;

6. Promoção da exportação da cultura;

7. Criação de loteria para gerar fundos para o setor e do “Vale-Cultura” – benefício nos moldes dos tíquetes-refeição, no valor individual de R$50,00 mensais.

(Informação mais detalhada e crítica acerca do projeto pode ser encontrada aqui).

Temores e preferências
Se você, leitor(a), for depender dos jornalões para encontrar todas as informações acima reduzidas e se inteirar do projeto, será quase impossível que logre fazê-lo. Alguns dos problemas identificados e, principalmente, algumas das propostas simplesmente não são mencionados. Em seu lugar, duas questões praticamente monopolizam a atenção: a discussão – geralmente em forma de questionamento raivoso – das desigualdades regionais na distribuição de recursos da lei e, sobretudo, os alertas contra a “ameaça de dirigismo”. Arisca, rebarbativa, insidiosa como o comunismo durante o macartismo, ela é presença recorrente na cobertura do caso pelos dois maiores jornais do país.

O diário paulista, que vinha apresentando uma cobertura mais ou menos equilibrada – embora incompleta – da renovação da lei, em matérias assinadas ora por Larissa Guimarães, ora pela repórter Silvana Arantes, teve o primeiro ataque de pânico causado pela alegada ameaça no editorial intitulado “Nova Lei Rouanet”. O texto, embora criticamente comedido, apresenta, em nada menos do que cinco dos nove parágrafos, alertas contra o “dirigismo”, o “arbítrio estatal”, a “indicação de representantes chapa-branca”, a “brecha tentadora do aparalhamento estatal da cultura”. Quanto à pífia atuação do setor privado da economia durante a vigência da lei, nenhuma palavra.

Mas foi na cobertura de evento promovido pela Folha de S.Paulo em que o ministro Juca Ferreira, o secretário paulista da Cultura, João Sayad, e mais três convidados debateram a nova lei, que os temores e as preferências dos dois jornalões tornaram-se mais evidentes.

A pecha de autoritário
O Globo, imparcial como de costume, descreve o ambiente: “Com o auditório da Folha lotado, principalmente com a presença de atores e produtores culturais que não concordam com as mudanças propostas, consideradas `autoritárias´, foram freqüentes as manifestações tanto contra, com vaias, gritos e até palavrões, como a favor do ministro, com aplausos.”

O aspecto contraditório da descrição (uma maioria que aplaude o que é contra?), sua adjetivação unilateral e inexata (autoritarismo está entre as menos recorrentes – e mais improcedentes – acusações contra um projeto exaustivamente discutido) e seus truques discursivos (como enumerar três modalidades de manifestação do público quando reage a Sayad, contra apenas uma quando se dirige a Ferreira) poderiam até passar em branco, se o leitor não dispusesse de outras fontes – inclusive a Folha – para se informar sobre outras e coincidentes versões do que ocorrera de fato no evento.

Já o diário paulista abre a matéria em que cobre o debate – atribuída a anônima “reportagem local” – com uma jornalisticamente injustificada frase do ministro, que teria declarado ter feito “ioga” durante o aparte de um dos debatedores para conseguir ficar calado. Segundo a Folha, com tal gesto o ministro “desautorizou” o interlocutor. Essa abertura atípica e só aparentemente despropositada tem objetivo insidioso, que perpassa toda a matéria e, como veremos, se torna explícita ao final: colar a pecha de autoritário em Juca Ferreira.

Frase de impacto
Tratamento bem diverso o jornal dispensa ao seu ex-colunista João Sayad, que seguiu à risca o figurino tucano-paulista no evento, apoiando com destemor o dirigismo privado ao afirmar que “para mim está bom” que o destino sobre dinheiro público seja determinado por empresas. Na reação bairrista às assimetrias regionais na distribuição de recursos da lei, apontadas por Ferreira, utilizou uma argumentação tão curiosa quanto insustentável:

“Parece-me mistificação colocar o problema de um ponto de vista conflitivo que me lembra minha época de estudante de economia, quando a gente tinha aquelas teorias de que o Nordeste é pobre e São Paulo é rico.”

A Folha não chega a desmentir tais teorias malucas, apartadas da realidade, nem a corroborar a supremacia econômica do Nordeste sobre São Paulo, mas registra que a resposta do ministro (“Qualquer brasileiro tem direito de acesso à cultura. Todos os brasileiros, inclusive os do Piauí”) recebeu aplausos, porém sem o grito de “Bravo!” da “platéia” – exclusividade de Sayad.

Ao final, a matéria anônima viola o princípio da equidade jornalística, pois ouve apenas uma opinião a favor da lei – a da atriz Maria Alice “Tapa na Pantera” Vergueiro – e duas contrárias – a do “ator e produtor” Odilon Wagner (que também é consultor em comunicação para políticos, tendo atuado nas campanhas de FHC e José Serra – informações que a Folha omite) e a da atriz Beatriz Segall, cujo depoimento encerra a matéria com uma frase de impacto contra o ministro: “Como ele pode propor transparência se ele mesmo não aceita o diálogo e não aceita as críticas?”

Ligada à família, não à Globo
Seria interessante que outros órgãos da imprensa – talvez menos interessados em posicionar estrategicamente depoimentos a fim de causar espécie – entrevistassem a intérprete de Odete Roitman para esclarecer o que exatamente ela quis dizer com tal afirmação, já que poucas leis foram tão exaustivamente debatidas no país. Mesmo a mais tendenciosa descrição do evento atesta que diálogo é o que não faltou ali e, com todas as restrições que se possa e deva fazer à atuação do ministro, seria desonesto não reconhecer que é raro um dirigente demonstrar a capacidade de assimilar críticas – e, o que é mais importante, de efetivamente aplicá-las na correção dos aspectos falhos por elas apontados – exibida nos últimos meses por Juca Ferreira no que tange à reforma da legislação de fomento.

Porém a matéria que anuncia um novo patamar de conflito entre instituições ligadas a grupos de mídia e o projeto de reforma que contraria seus interesses intitula-se “Fundação Roberto Marinho contesta MinC” e foi publicada, em 15/04, com destaque, no caderno Ilustrada. Assinada pela supracitada Silvana Arantes, a matéria não viola frontalmente as normas do bom jornalismo (embora fique devendo a checagem de afirmações categóricas do entrevistado quanto a dados facilmente obtíveis, como veremos).

Nela, Arantes reporta que a fundação “encaminhou ao Ministério da Cultura um questionamento, amparado em argumentos jurídicos, à mudança da Lei Rouanet” e entrevista Hugo Barreto, secretário-geral da entidade. Este sustenta que a fundação, que contabiliza 33 projetos e R$ 81 milhões arrecadados através da lei, “é ligada à família Marinho, e não às empresas Globo”, como se o dinheiro dos Marinho tivesse vindo de fonte outra. Eles, segundo o texto, “doam anualmente R$ 20 milhões `já tributados´ à fundação, que `opera com recursos de terceiros´”.

“Dialética do impasse”

É lícito perguntar se, num meio artístico-cultural tão pobre do ponto de vista econômico como o brasileiro, uma fundação milionária, que goza de generoso espaço na corporação televisiva de maior audiência, deve mesmo ter tal acesso a dinheiro público, ao invés de ser obrigada a captar recursos no mercado – o que seria, inclusive, uma atitude condizente com a ideologia apregoada pelo grupo de mídia em questão.

A exemplo de Sayad, Barreto também questiona as diferenças regionais na distribuição dos recursos da Lei Rouanet, atribuindo-as a “reflexo de uma condição macroeconômica, não indício de distorção específica da lei” e afirmando que elas também ocorrem na gestão de verbas do próprio MinC – e aqui, a repórter, embora ouça o outro lado, tomando depoimento do ministro Ferreira, não se preocupa em checar nem os dados macroeconômicos nem os do Ministério (se o fizesse, constataria que ambos apresentam assimetrias consideravelmente menos pronunciadas do que as verificadas na captação de recursos pela “lei Rouanet”). Com a omissão desses dados, a matéria transforma-se num jogo de acusações e respostas, com o representante da Fundação Roberto Marinho no ataque e o ministro na defesa.

Mas, para Barreto, é o Ministério que, ao ressaltar as desigualdades regionais, “cria essa dialética do impasse, do conflito”. Assim, o funcionário da Fundação Roberto Marinho acaba por emular, em relação à “nova lei Rouanet”, a postura do diretor-executivo de jornalismo da – adivinhe – Rede Globo, Ali Kamel, em relação às cotas raciais, como se evidenciar o problema equivalesse a criá-lo.

Dando voltas em círculos
Após, valendo-se avant la lettre de pareceres jurídicos, a Fundação Roberto Marinho questionar diretamente o Ministério da Cultura, abdicando do diálogo aberto e dos mecanismos de consulta pública disponíveis aos demais cidadãos, em relação aos quais tenta se colocar em outro patamar; evidenciando, com o gesto distintivo e exclusivista e com os termos de sua demanda, o peso e a ideologia da organização de mídia que, a despeito das negativas de fachada, lhe dá suporte; e, talvez mais importante, tendo suas demandas repercutidas com destaque pelo outro grande órgão diário da imprensa, que se presta a co-desempenhar a função de interrogador quanto às suas demandas, está aberto o caminho para uma nova campanha conservadora, voltada para a manutenção de privilégios e do stauts quo.

Infelizmente, a união entre grupos de mídia para defender interesses em comum, que se esboça uma vez mais no atual estágio de discussão da nova “lei Rouanet”, não encontra resistência equivalente nos indivíduos e setores mais progressistas da sociedade, que ainda não se deram conta de que uma política de comunicação realmente democrática – com o fim do monopólio da mídia por poucas famílias, da perseguição às rádios “piratas”, das tentativas de se restringir a livre-manifestação na internet – não se coaduna com leis de incentivo que, embora utilizando dinheiro público, permitem que funcionários de empresas privadas determinem o que vai e o que não vai ser filmado (e publicado e encenado e musicado) no país.

A luta por uma política avançada de comunicações engloba necessariamente a produção cultural e passa pela superação do estágio de adoção do neoliberalismo como ideologia orientadora das políticas oficiais – algo que a proposta do MinC não logra, apenas insinua. Do contrário, ficaremos todos, tanto na esfera comunicacional quanto na artística, dando voltas em círculos, submetidos ao poder da “grande mídia” e do mercado financeiro.

*Maurício Caleiro é jornalista, cineasta, doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense.