Juca e os fora-da-lei (Rouanet), por Maurício Thuswohl
Cinqüenta por cento dos recursos provenientes de deduções fiscais que são destinados à cultura no Brasil vão parar nas mãos de apenas 3% dos proponentes. São quase sempre as mesmas produtoras ou profissionais que se beneficiam desses recursos, num flagrante caso de concentração indevida ou, no mínimo, injusta do incentivo à cultura. Ainda assim, há quem considere correto o sistema atual e reaja de maneira virulenta às tentativas de mudança implementadas pelo governo Lula por intermédio do Ministério da Cultura.
Um dos pontos positivos mais marcantes do atual governo é o trabalho desenvolvido no Ministério da Cultura para dar maiores oportunidades de expressão artística e cultural a regiões e populações culturalmente “ilhadas” ou marginalizadas de norte a sul do Brasil. Neste sentido atuou desde o primeiro momento o ex-ministro Gilberto Gil, que soube enfrentar com coragem e serenidade a onda de protestos e resistência surgida no seu próprio meio, a elite cultural brasileira. Nesse embate, Gil perdeu umas e ganhou outras, mas jamais recuou da intenção de realizar o “Do-in cultural” que prometera ao país assim que assumiu o ministério.
O atual ministro, Juca Ferreira, persevera no caminho da democratização da distribuição dos incentivos à produção cultural. Ciente de que o atual modelo favorece a concentração dos recursos e a formação de “panelinhas”, o Ministério da Cultura elaborou uma série de propostas de alteração na Lei Rouanet, que, nos últimos 18 anos, vem sendo o principal mecanismo de incentivo cultural baseado na renúncia fiscal de empresas. A mudança mais importante é o fim da renúncia fiscal como principal meio de patrocínio e a criação do Fundo Nacional de Cultura, que será dividido em cinco fundos setoriais (Artes, Livro e Leitura, Memória e Patrimônio Cultural, Diversidade Cultural e Fundo de Equalização).
Segundo a proposta do governo, o Fundo Nacional de Cultura terá um comitê gestor, formado por integrantes do Ministério da Cultura e por representantes indicados por organizações da sociedade civil. Esse comitê passaria a ser o principal órgão de decisão sobre a aprovação de projetos culturais e o encaminhamento dos recursos do fundo, fato que representaria uma autêntica revolução, já que atualmente as empresas é que decidem internamente quais projetos vão apoiar.
Essa mudança é o principal motivo da gritaria dos “incomodados” com as alterações na lei propostas por Ferreira. Neste grupo, naturalmente, estão incluídos empresários e diretores de estatais temerosos da perda de prestígio e também determinados artistas e produtores que há três décadas vivem de produções culturais realizadas com recursos públicos e talvez não saibam mais viver sem isso.
No dia 4 de abril, os principais veículos de mídia do país noticiaram um debate organizado na véspera pelo jornal Folha de São Paulo. Frente a um auditório majoritariamente tomado por antipatizantes das propostas de mudança na Lei Rouanet feitas pelo governo, Ferreira foi bombardeado por duas horas numa mesa em que, entre outros, se destacava o secretário estadual de Cultura de São Paulo, João Sayad, enfático ao denunciar “o dirigismo cultural do ministério” e ao defender que “a destinação dos recursos, não tem jeito, tem de ser decidida pelo empresário”.
Segundo o jornal O Globo, “uma das mais irritadas com as mudanças pretendidas pelo governo” era a atriz Beatriz Segall, que teria até mesmo dirigido impropérios ao ministro. Ora, todo mundo sabe que a grande Beatriz é amiga de Sayad e do governador José Serra, a quem já declarou apoio na disputa pela presidência da República! Ao lado de Regina “eu tenho medo” Duarte, de Christiane Torloni e de outras divas menos cotadas, Beatriz Segall nunca escondeu seu repúdio ao governo Lula. Com todo o direito, diga-se de passagem, afinal vivemos numa democracia. Mas, o fato é que todo mundo sabe que Odete Roitman apóia Serra, assim como Flora Fontini apóia Ciro Gomes.
O evento organizado pela Folha foi, portanto, um bem-sucedido jogo de cartas marcadas para produzir manchetes contrárias às mudanças na Lei Rouanet. Apesar da torcida contra, o ministro manteve-se firme e, a meu ver, resumiu tudo numa declaração emblemática: “Eu sabia que a redistribuição desses recursos não seria pacífica. Quem tem acesso evidentemente não quer perder, não quer critério público, não quer critério nenhum, não quer mudança nenhuma porque já tem acesso e conhece o caminho das pedras”.
Juca Ferreira sabe o que está fazendo, e é difícil que recue. Daqui pra frente, cabe ao ministro tornar públicos e transparentes os critérios e os mecanismos de escolha dos integrantes do comitê gestor do Fundo Nacional de Cultura, além de tornar transparente e democrático o processo de indicação dos representantes da sociedade civil. Mais tarde, o Ministério da Cultura terá a obrigação de tornar ainda mais claros os critérios de escolha dos projetos aprovados. Somente isso afastará o fantasma do dirigismo cultural e as críticas oportunistas. Somente isso consolidará as mudanças agora propostas como um significativo avanço para a democratização da cultura no Brasil.
*Maurício Thuswohl é jornalista.