A nação brasileira despertou na manhã de 1º de abril de 1964, sob o bombardeio dos meios de comunicação – com exceção do jornal “Ultima Hora” – que proclamavam a salvação do país da ameaça comunista. Assim foi anunciado o golpe de Estado que depôs o Presidente da República, João Goulart, eleito constitucionalmente. Rompia-se assim o estado de direito vigente desde a constituição de 1946. E estabelecia-se um regime que usurpou o poder, sob a condução de uma aliança cívico-militar conservadora.

Uma aliança que envolvia oficiais superiores das Forças Armadas, articulados desde o fim da II Guerra Mundial em torno do projeto gestado na Escola Superior de Guerra – ESG, que tentara repetidas vezes, sem êxito, ao longo dos anos 50 dar um golpe na recém-nascida democracia brasileira que emergira do Estado Novo. O segundo elemento dessa aliança vinha de um empresariado reacionário, herdeiro de concepções escravistas que encarava as Leis Trabalhistas do período Vargas como uma permanente ameaça à prosperidade dos seus negócios, agregada aos representantes das empresas estrangeiras que se estabeleciam no país naquele período. Um terceiro elemento no quebra-cabeças do golpe vinha da imprensa – com a exceção mencionada acima – encarregada de “criar o clima” de instabilidade institucional, e o medo da “ameaça comunista” numa sociedade frágil e sem autonomia; aos setores conservadores da Igreja Católica coube a tarefa de potencializar o espectro do comunismo e mobilizar os setores médios urbanos, contra os nascentes movimentos sociais dos trabalhadores. Um quarto elemento se compunha da ação dos partidos conservadores e dos governadores francamente oposicionistas de S. Paulo, Rio e Minas e, por fim, mas não menos importante a entusiasmada participação da Embaixada dos Estados Unidos, pelas mãos do golpista Lincoln Gordon.

Contra essa aliança estivera nas ruas nos, últimos três anos, um conjunto de movimentos sociais de trabalhadores e setores médios urbanos organizados em torno de sindicatos, das Ligas Camponesas, particularmente no Nordeste e do efêmero Comando Geral dos Trabalhadores – CGT, em defesa das chamadas Reformas de Base: o conjunto de reformas anunciadas pelo governo Goulart: a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, Bancária, a mudança na lei de remessas de lucros das empresas estrangeiras aos seus países de origem, etc.

Na recente tentativa de reescrever a história do período por meio de editoriais em veículos da imprensa conservadora, que de maneira notória colaboraram com a ditadura, e mesmo em artigos assinados por acadêmicos, afirmou-se, entre outros embustes, que “o regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos. Não é possível chamar de ditadura o período de 1964-1968 (até o AI-5) com toda a movimentação político-cultural. Muito menos os anos1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições para os governos estaduais em 1982”.

O regime de 1º de abril tinha clareza sobre o inimigo a combater e sobre os métodos de repressão a utilizar: antes que terminasse o ano de 1964, mais de 500 sindicatos de trabalhadores sofreram intervenções, seus dirigentes foram destituídos, presos, torturados ou forçados ao exílio; o Congresso subjugado, extintos os Partidos Políticos, estabelecidas as Comissões Gerais de Inquéritos – CGIs, instaurados os Inquéritos Policiais Militares – IPMs para investigar e punir os desafetos do novo regime, que levaram às prisões alguns milhares de cidadãos em todo o país.

A violência repressiva que seria a marca permanente do regime explicitou-se já de começo, ao contrário do que afirma o acadêmico citado acima, na vã tentativa de fatiar os anos dessa tragédia para facilitar a digestão do leitor desavisado. A cena do dirigente comunista Gregório Bezerra arrastado pelas ruas do Recife, atado à traseira de um Jipe do Exército, e o cadáver do Sargento Manoel Raimundo Soares, com as mãos atadas às costas, boiando nas águas do Rio Guaíba, em Porto Alegre, são eloqüentes. Dão conta do ânimo dos novos detentores do poder. Ambos anunciavam os vinte e um anos de opressão e terror que o país viveria sob a ditadura.

Rompeu-se o Estado de Direito. O Presidente da República, legitimamente eleito foi forçado a exilar-se. Os generais que usurparam o poder rasgaram a Constituição de 46 e atribuíram-se a legitimidade originária da boca dos canhões para lançar o Ato Institucional, ainda sem número, que abriria uma série deles ao longo de duas décadas.

13 de dezembro de 1968. O Ato Institucional nº 5 eliminava qualquer possibilidade de oposição legal à Ditadura Militar. Foi considerado pela resistência e mesmo para alguns dos seus apoiadores de primeira hora como um “Golpe dentro do Golpe”. O regime aprofundou o caráter repressivo; estendeu uma rede capilar de delatores em todos os organismos do Estado; multiplicou os olhos para vigiar qualquer gesto de resistência da sociedade; converteu a tortura aos opositores, uma prática já corriqueira, no método por excelência dos interrogatórios; radicalizou a censura à imprensa, ao teatro, à música, às artes. Aboliu, para escândalo do mundo, o habeas corpus, instituto que, no Ocidente, distinguiu secularmente as sociedades civilizadas. Recriou a figura do banimento instituindo, com ela, uma legião de apátridas, aqueles que, não apenas estavam impedidos de retornar – muitos foram punidos com a morte ao atravessar as fronteiras, na tentativa de faze-lo – mas também de receber qualquer tipo de auxílio ou de amparo por parte das embaixadas brasileiras, nos países onde passaram a viver.

Nesse momento – pós AI-5 – se estreitaram os nós entre os setores mais reacionários do empresariado, não por acaso os que mais se beneficiaram com as políticas de arrocho salarial, na economia, e repressão, na política e o Estado Policial que se estabelecera no país. A constituição da OBAN foi o fruto mais notável dessa união. Não se tratava, por suposto, de um aparato clandestino. Desconhecido dos comandos, como pode parecer a alguns. Nenhum comandante do II Exército ignorou o endereço da Rua Tutóia, esquina com Tomás Carvalhal, 1030 e o que lá acontecia, entre 1969 e 1976.

A intervenção do general Geisel, depois do assassinato do Jornalista Vladimir Herzog (outubro de 1975) e do operário Manoel Fiel Filho (janeiro de 1976), ao destituir o Comandante do II Exército respondeu a uma nova percepção da Ditadura: a sociedade brasileira já não suportava mais a brutalidade sem limites, os assassinatos e o cinismo dos “atropelamentos”, das “tentativas de fuga”, dos “suicídios”, dos “desaparecimentos” perpetrados pelo aparelho repressivo, então em plena potência, em nome dos “objetivos nacionais permanentes”.

A destituição do general Ednardo D’Ávila Mello deteve naquele momento a máquina de terror que se instalara na Rua Tutóia. Um aparato que explicitava como nenhum outro o nexo entre o braço armado do estado empenhado em executar a estratégia de extermínio dos opositores do regime, e seus financiadores: grupos industriais, comerciais, financeiros, de imprensa que contribuíam regularmente para o êxito da empreitada. Aqui reside um dos nós que a sociedade brasileira não desatou no âmbito do estado ou da sociedade: a extensão do alcance da Anistia aos agentes do estado que, naquele período, cometeram os denominados “crimes conexos”. Não há até hoje, um único agente do estado brasileiro que tenha sido levado aos tribunais, pela tipificação dos crimes conexos a que se refere a Lei. Supostamente, não cometeram eles, nenhum crime. Não podem, portanto, ser anistiados de crimes que não cometeram.

Aos primeiros acenos, ainda débeis do Movimento Feminino Pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbini, os generais reagiram: “Aqui não haverá Anistia. No máximo admitiremos a revisão de processos”. Passo seguinte, resultado do vigor de uma sociedade que buscava canais para expressar-se na cena pública do país, multiplicaram-se os Comitês Brasileiros Pela Anistia – CBAs. “Só para os que não se envolveram com o terrorismo”. Essa foi a reação do regime que desejava interditar os que não haviam sido aniquilados. A resposta do Senador Teotônio Villela, líder da ARENA, o Partido do Governo à pergunta da repórter da Rede Globo, ao sair dos portões do Presídio do Barro Branco, depois de uma visita aos presos: “Como foi seu encontro com os terroristas?” – Não vi nenhum. Vi jovens que jogaram sua vida pelo seu país. “O senhor os convidaria para jantar em sua casa?” – Todos. O que não faria com vários membros do meu partido. Eles, os que romperam o Estado de Direito e usurparam o poder do Presidente da República legitimamente eleito, há 45 anos repetiam: “Não haverá Anistia”. Desfigurada, imperfeita, inconclusa, distante da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita que demandamos nas ruas. Mas houve uma Anistia. E o movimento da sociedade revelou um vigor suficiente para seguir demandando depois do 28 de agosto de 1979 e hoje, 30 anos depois, o esclarecimento dos crimes cometidos naquele período em nome do Direito à Justiça e à Verdade.

Hoje, 45 anos depois do golpe de 1º de abril e 30 anos depois da Lei 6.683 o Brasil se encontra diante de um processo inconcluso que passa pela conquista de 79, pelas Disposições Transitórias da Carta de 88, pela regulamentação de 95 e interpela a História para que ela responda ao veredicto do penúltimo ditador: “Aqui não haverá Nüremberg”.

*Hamilton Pereira (Pedro Tierra) é poeta. Militante do PT e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. Cumpriu cinco anos de prisão durante a Ditadura Militar.