Branda ou dura? Ditadura
“… Mas, se as chamadas “ditabrandas” – caso do Brasil entre 1964 e 1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça – o novo autoritarismo latino – americano, inaugurado por Alberto Fujimori, no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente”. (Editorial da Folha de S. Paulo, de 27/02/2009).
Esse parágrafo do editorial Limites a Chávez desnuda qualquer pretensão crítica de Folha de S. Paulo à ditadura militar. Constituiu uma impressionante defesa do golpe militar de 1964. Vamos dar uma olhadinha apenas nele, nesse parágrafo, para que depois entremos com mais rigor no assunto. Primeiro, a Folha diz que não havia golpe. Havia apenas uma simples “ruptura institucional”. Não houve tanques nas ruas, não houve prisões, não houve torturas. Nada.
E na sequência, depois dessa quase angelical ruptura institucional, a ditabranda – o neologismo cunhado pela Folha para definir a ditadura militar – preservou a disputa política na sociedade brasileira, certamente em moldes civilizados, como está quase explícito no texto. A ditabranda, que os leitores desculpem o uso abusivo do termo, depois da ruptura institucional – outra vez peço desculpas – preservou ou instituiu “ formas controladas de disputa política e acesso à justiça”. É, na opinião da Folha, foi apenas isso.
A ditadura garantia não só a disputa política como também acesso à justiça. Diabo é o Chávez que, em 10 anos de poder, disputou 15 eleições, venceu 14, e em todas elas experimentou a presença rigorosa de observadores internacionais. Seguramente não foi esta a ditadura que eu vi, que a sociedade brasileira viu.
“… A via-crucis de Eduardo Collen Leite – Bacuri – durou 109 dias. Foi preso no dia 21 de agosto de 1970, no Rio de Janeiro, pela equipe do delegado Sérgio Fleury, e conduzido a um centro clandestino de tortura em São Conrado. Foi interrogado e torturado em muitos locais no Rio e em São Paulo. Após ser retirado do X-1 do Deops/SP, nunca mais foi visto por ninguém, a não ser por seus algozes. No dia 08 de dezembro de 1970, o corpo de Bacuri foi encontrado nas imediações de São Sebastião, litoral norte do Estado de São Paulo. Seu corpo foi encontrado apresentando hematomas, escoriações, cortes profundos, queimaduras, dentes arrancados, e olhos vazados”. ( Dos filhos deste solo: Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio).
Não houve a singeleza da ruptura institucional, que só a Folha e a direita brasileira viram. Houve um golpe violento. Sem exagero, regado a sangue. Sangue de brasileiros e brasileiras. Um golpe que usou e abusou da tortura. Que matou covardemente centenas de opositores. Matou quase invariavelmente na tortura. Que prendeu, perseguiu, humilhou, maltratou milhares de pessoas. Que fez desaparecer pessoas. Que seviciou mulheres e crianças. E sempre fez isso à custa do sacrifício da liberdade, inclusive a de imprensa, que, parece, a Folha não viu ou não quis ver. Por que a Folha, então, designa uma ditadura tão violenta, tão sanguinária, de ditabranda?
Uma ditadura que teve à frente generais tão cruéis como Castello Branco, Costa e Silva, como Garrastazu Médici, como Ernesto Geisel, pode ser tida como branda? Uma ditadura que criou monstros como Doi-Codis, como a Operação Bandeirantes, como o CENIMAR, como o Deops/SP, essa infernal máquina repressiva, de tortura, pode ser anistiada assim, como o fez a Folha? Uma ditadura que se vale de um Fleury, de um Ustra, pode ser tida, dita como branda? Só pela Folha mesmo!
“… Lamarca se levantou e tentou se afastar. No mesmo instante, uma rajada de metralhadora, disparada por Dalmar Caribé, atingiu-o pelas costas. Caiu imobilizado pelo impacto de três tiros – nas nádegas, na mão direita e no ombro esquerdo. Deitado estava, deitado ficou, sem tempo de usar o Smith Wesson e o Taurus 38. Ainda estava vivo quando recebeu mais quatro tiros, a curta distância, três deles no peito e um último a queima roupa no coração”. (Do livro Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Emiliano José e Oldack de Miranda).
Costumo dizer que, salvo as sempre honrosas exceções, a imprensa brasileira não pode contar sua própria história. Infelizmente, sempre ficou ao lado das ditaduras e contra quaisquer governos democráticos e reformistas. O grupo Folha foi um aliado da ditadura. Por isso essa posição, a que “deixa escapar” o termo ditabranda não deveria surpreender ninguém. O neologismo ditabranda não é um simples ato falho.
Corresponde à história do grupo. Há um livro precioso de Beatriz Kushnir – Cães de Guarda – que deveria ser leitura obrigatória das escolas de jornalismo e de quem pretenda conhecer uma parte considerável da história de jornalismo sob a ditadura, de modo especial a história do grupo Folha. Por ele se compreenderá a gênese da ditabranda, se esclarecerá o quanto de cumplicidade houve entre a ditadura e o grupo Folha. Não falo mais para não prejudicar a leitura.
A Folha, depois de receber uma saraivada de críticas de leitores indignados com o editorial, fez um primor de Nota de Redação. Disse que “na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional”. Decididamente, o jornal podia ser um pouco mais zeloso, ter um mínimo de respeito com os leitores, consideração com a inteligência dos brasileiros. Será que a Folha, ao fazer sua macabra contabilidade – quantos mortos pela ditadura brasileira, quantos pela ditadura Argentina, por exemplo – queria dizer que se a ditadura brasileira matou “só” algumas centenas de pe ssoas, torturou “apenas” alguns milhares de brasileiros, foi mais branda porque “afinal” podia ter matado e torturado muito mais?
O editorial, para além dos equívocos históricos e conceituais quanto a Hugo Chávez, constitui uma afronta à sociedade brasileira e uma atitude de escárnio face a milhares de familiares de pessoas presas, torturadas, mortas, mutiladas, desaparecidas por conta da ação da ditadura quem em momento algum foi branda, insista-se.
Para aumentar o desastre, a Folha desqualificou a crítica, tentando diminuir os professores Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides, que se insurgiram corretamente contra o editorial. Lamentável.
E é sintomático que o editorial de defesa da ditadura apareça no momento em que o Brasil discute a punição dos torturadores. Muito sintomático. A existência rotineira de tortura por si só é a negação de qualquer brandura. Ditadura, nunca mais!
“… Assim que começou a atravessar a rua em direção ao carro, estalou a fuzilaria. Não se sabia de onde exatamente vinham os tiros, porque vinham de todas as direções. O primeiro perfurou-lhe as nádegas, entrando pelo lado direito e saindo pelo esquerdo. O segundo atingiu-o na região pélvica, a bala se alojando no arco pubiano. O terceiro atingiu-o de raspão, no queixo. E um quarto tiro fraturou-lhe uma costela e perfurou a aorta e o pulmão. Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura, estava morto” (Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar, de Emiliano José).
*Emiliano José é jornalista e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.
Saiba mais:
– Conheça o livro “Dos filhos deste solo: Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado“, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio
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