A crise econômica atual dissemina-se num mundo ineditamente integrado e subordinado à lógica de funcionamento das forças de mercado. Noutras oportunidades, como nas grandes crises sistêmicas de 1873, 1929 e 1973, o mundo era constituído parcialmente por países com economias de mercado.

Nas depressões de 1873 e 1929, por exemplo, havia uma quantidade significativa de colônias vinculadas aos velhos impérios (Inglaterra, França, Holanda e Portugal) que mantinham ativos os modos de produção e consumo pré-capitalistas, e nas crises de 1929 e de 1973 existiam economias centralmente planejadas, como a antiga União Soviética. Hoje, constata-se que o avançado grau de internacionalização capitalista sofre importante abalo por decorrência da crise econômica, que coloca em xeque as principais forças privadas responsáveis pela sustentação da própria globalização.

Sem a ação pública coordenada e civilizada, a inflexão desglobalizadora tende a prosseguir pela via da saída clássica. Ou seja, a promoção da maior concentração de capital nas grandes empresas em meio à contração da demanda estimulada por cortes no nível de emprego e de remuneração dos ocupados. Na sequência das medidas estatais adotadas para salvar empresas financeiras e não-financeiras insolventes e para compensar parcialmente a queda no consumo, ganham maiores destaques as intervenções de caráter protecionista. Outro ciclo de conflitos entre nações pode estar sendo gestado no mundo no caso de continuar predominando a ausência das condições concretas de retomada da trajetória do crescimento econômico e social.

Com a fragmentação em curso da economia global, a dinâmica geográfica deve assumir novo patamar, com estruturas de hegemonias regionalizadas. Noutras palavras, a transição do mundo unipolar desde o fim da Guerra Fria para a multipolaridade evidenciada por sinais crescentes da decadência dos EUA. No mesmo sentido, ressalta-se que o desenvolvimento econômico deve ser reconfigurado tendo em vista a quebra dos vínculos entre as finanças nacionais e globais.

De um lado, pelo enfraquecimento das fontes geradoras de liquidez internacional, fundamentais na retroalimentação dos esquemas de financeirização da riqueza interna e externa. Na ausência de novas formas confiáveis de drenagem dos recursos entre países, empresas e famílias, deficitárias ou não, a base do financiamento da globalização torna-se ainda mais escassa. Para os países não desenvolvidos, os fluxos internacionais de crédito foram praticamente interrompidos, com queda estimada para 2009 de quase US$ 1,2 trilhão para menos de US$ 200 bilhões.

Ademais da dificuldade para as empresas que operam em rede manterem o circuito da produção desterritorializada, o comércio externo sofre enorme retrocesso. Por conta disso, não se mostra desprezível o surgimento de nova onda de recomposição produtiva no mundo multipolar, consagrado por escassos esquemas de financiamentos nacionais e regionais. O fluxo de migrações inversas (das regiões ricas às não desenvolvidas), acompanhado da maior discriminação contra migrantes na Europa, por exemplo, revela o quadro geral de disputa do emprego fora da globalização.

De outro lado, pelo fortalecimento das moedas de curso regional, que pode levar ao estabelecimento de estruturas bancárias modificadas, já que o esvaziamento dos bancos locais, estaduais e regionais terminou por concentrar a quase totalidade dos depósitos em poucas localidades. Ou seja, a quebra de compromissos que poderiam haver entre a poupança e a aplicação de recursos na mesma localidade. De maneira geral, tende a prevalecer a transferência da poupança bancária de regiões pobres para as regiões mais ricas, estimulada fortemente pela concentração bancária.

Em síntese, a desglobalização já desponta como uma das consequências da crise econômica atual. Sua reversão parece possível, mas depende da adoção de outra modalidade de saída da crise que não seja a clássica. Nesse caso, o padrão de financiamento precisa ser reconstituído, bem como outro modelo de produção e consumo necessita ser adotado. Mas, para isso, uma nova maioria política global deveria ocupar o lugar deixado vago pelo grupo de interesses articulados pelo ciclo da financeirização de riquezas, estabelecendo na esteira da governança mundial outra institucionalidade para além das agências multilaterais como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, entre outras.

*Marcio Pochmann, 46, economista, é presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp. Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy). É autor de Desenvolvimento, trabalho e solidariedade (EFPA), entre outros livros.

Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo, seção Tendências/Debates, em 24/03/2009


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