Cana-de-açúcar e produção de energia, por Rubens Otoni
Vira e mexe a viabilidade do etanol e do biodiesel brasileiros é posta em questão. Os argumentos são os mais variados, mas inquestionavelmente políticos. O objetivo é impedir que o Brasil e, sobretudo, outros países emergentes rompam ou amenizem sua dependência do petróleo.
Nesse cenário o Brasil é particular, porque ele não é tão dependente de importação de petróleo e certamente se transformará em exportador num prazo relativamente curto.
É por isso que num momento em que o barril de petróleo aproximava-se de astronômicos 150 dólares, o que foi um poderoso estímulo à inflação mundial, já que o preço do petróleo influi em tudo, acusava-se o etanol de ser o responsável pela inflação dos alimentos. Isso não é inocente. ONGS financiadas por petroleiras e outras manifestações de diversos interesses nem facilmente identificáveis, as quais pretendem perpetuar a dependência de países pobres, certamente estavam por trás desta história estapafúrdia.
Para contrapor-se à onda acusatória, foi necessário que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse a Roma numa conferência anual da FAO, órgão da ONU para as questões de alimentação, para desmontar acusações maliciosas contra nossos biocombustíveis. As principais acusações eram as seguintes: eles aumentariam as taxas de desmatamento, causariam fome no mundo, não reduziriam as emissões de gases do efeito estufa, e, ainda, que somente seriam viáveis em países como o Brasil. Essa era a concessão que faziam a um país que há mais de 30 anos criou o carro a álcool (1975) para fugir da dependência do petróleo e, como resultado, contribuiu significativamente para reduzir a emissão de gases poluentes, o que é motivo de ciúmes em todo o mundo.
Desde então a situação se alterou significativamente. A campanha contra os biocombustíveis arrefeceu. Os preços do petróleo, antes inflados pela especulação, sofreram fortes reduções, e a inflação mundial não somente foi contida, mas deu lugar a uma ameaça de deflação. Como resultado, os preços das chamadas commodities agrícolas sofreram baixas significativas e o discurso esperto contra os biocombustíveis se esvaziou.
Nesse quadro, a escolha feita pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, do nome de Tom Vilsack para o cargo de secretário americano da Agricultura é muito positiva para o Brasil. Ex-governador do Estado de Iowa, principal produtor de milho daquele país, Vilsack não apenas reconhece que o etanol de cana é mais virtuoso e eficaz do que o etanol de milho produzido em seu país, como defende publicamente a eliminação da barreira tarifária que impede a entrada do etanol brasileiro no mercado norte-americano.
É preciso, no entanto, considerar que a barreira alfandegária referida só pode ser removida pelo Congresso Americano. Exige, portanto, a revogação ou a alteração de uma lei. Mas o fato de que o ministro do setor seja a favor de eliminar a barreira poderá ser decisivo para que tal mudança ocorra. Consta inclusive que ele já discutiu com empresários brasileiros uma forma para alcançar este objetivo.
É certo que a abertura, ainda que parcial, do mercado americano para o etanol brasileiro significaria um impulso para o setor. Não só aqui, mas em diversos outros países do Terceiro Mundo, os quais vêm imitando o Brasil na busca de alternativas menos poluentes do que o petróleo.
A abertura daquele mercado seria um passo importante para transformar o etanol em uma commodity, e abriria grandes perspectivas para os negócios do setor canavieiro, que já é uma cadeia complexa, mas pode se ampliar mais ainda.
É deplorável que alguns teóricos simplórios costumam amaldiçoar a cana, dizendo que com ela o país continua atrelado ao modelo econômico inaugurado no segundo século da colonização, na condição de exportador de produtos primários. Nada mais equivocado. Em verdade, o setor cana é hoje uma realidade de crescente complexidade e diversificação tecnológica e produtiva.
Não se resume à produção e à comercialização de álcool, açúcar e cachaça, como foi tradicionalmente no passado. Pelo contrário, este setor tem hoje uma abrangência muito mais significativa e uma crescente sofisticação tecnológica.
O setor envolve atividades industriais modernas, como a produção em larga escala de carros flex, a construção de enormes usinas para o processamento da cana, a utilização do vinhoto (subproduto da cana) como adubo, e a utilização do bagaço e da palha da cana para produzir energia.
A produção de energia elétrica a partir de derivados da cana, no Brasil, já é uma realidade. Em geral, as usinas de processamento da cana já são autosuficientes em matéria de energia elétrica. Elas funcionam com a energia elétrica derivada do bagaço da própria cana que elas processam. Nada a ver com o processamento do milho americano para produzir etanol, que consome óleo diesel e polui mais.
Para se ter uma idéia, a Empresa de Pesquisa Energética, órgão oficial brasileiro, informa que os produtos derivados da cana tiveram uma participação de 16% na oferta de energia em 2007, ocupando a segunda posição entre as fontes consumidas de energia, e assim superando, pela primeira vez, a energia hidrelétrica, pois esta passou a ter, naquele ano, uma participação de 14,7% na matriz energética nacional. A energia derivada da cana ficou atrás apenas da energia oriunda do petróleo. Isso certamente causa ciúmes.
Uma outra virtude essencial da utilização do bagaço e da palha da cana é que ela é um poderoso estímulo à eliminação das queimadas nos canaviais, já que toda a sobra pode ser convertida em energia. Esse novo aproveitamento do bagaço e da palha funciona também com o impulso à mecanização total da colheita da cana.
A colheita manual da cana é um trabalho penoso e desumano. Deve, portanto, ser eliminada. O desemprego causado por esta eliminação é um problema que deve ser enfrentado pelas autoridades, qualificando, realocando a mão-de-obra descolada para outros setores e ampliando a reforma agrária.
Além dos produtos até aqui citados, a cana é fonte de vários outros produtos. A partir dela já se produz plásticos biodegradáveis, papel, tecidos, proteínas, colágenos e ceras com aplicação farmacológica. É por isso que o interesse no estudo desta planta tradicional só tem crescido.
São muitas as pesquisas em andamento que tem a cana como objeto. O sequenciamento genético da cana mostrou que ela é uma planta muito complexa.
As empresas de biotecnologia Cana Vialis e Alellyx desenvolveram uma cana transgênica com mais de 80% de sacarose (teor sacarose), em relação às variedades convencionais. Este experimento vai ser analisado pela CTNBio para fins de liberação para comercialização.
Muitas outras pesquisas estão em andamento aqui e no exterior. Uma das mais promissoras é aquela que busca formas para transformar a celulose em etanol. Pesquisadores brasileiros estão em estágio avançado de desenvolvimento de tecnologia para obter o etanol por via enzimática utilizando celulases, enzimas capazes de quebrar o açúcar da celulose, que será então transformado em álcool combustível após processo de fermentação. Este processo poderá ser aplicado a outras biomassas residuais, como sabugo e palha de milho, restos de madeira, papel descartado e outros materiais.
Como se vê, as perspectivas para o setor dos biocombustíveis no Brasil são animadoras. Os desafios também são muitos. É preciso, por exemplo, vencer o protecionismo americano e europeu, ampliar a cooperação científica e tecnológica com esses parceiros, transferir a tecnologia para países africanos e latinos e eliminar o trabalho degradante neste e em todos os setores que o utilizam, o que requer esforço das autoridades, colaboração do patronato e empenho do movimento sindical.
Assim não somente estaremos fortalecendo um setor importante da economia, mas estaremos também dando uma colaboração especificamente brasileira para superar a crise econômica e reduzir os efeitos do aquecimento global. O Brasil virou solução.
Rubens Otoni é deputado federal pelo PT-GO (www.rubensotoni.com.br).