… o tempo passou na janela e só Carolina não viu! (Chico Buarque)

Introdução
Quando o Fórum Social Mundial se realizou pela primeira vez em janeiro de 2001 em Porto Alegre foi um grande passo adiante na luta contra o neoliberalismo, tanto do ponto de vista organizativo, quanto político. Ele ocorreu no momento em que o modelo neoliberal não conseguia mais justificar as suas políticas depois das crises asiática, brasileira, russa e outras que se seguiram combinadas com a ascensão de mobilizações sociais realizadas nos espaços nacionais, mas com bandeiras e retórica anti-globalização e anti-neoliberalismo, comuns.

Este movimento tornou-se conhecido como “altermundista” e conquistou uma vitória importante durante a III Terceira Conferência de Ministros da Organização Mundial de Comércio (OMC) em Seattle em 1999 ao reunir mais de 50.000 pessoas entre ativistas sociais, sindicalistas, ONG’s, entre outros militantes para protestar contra o chamado “livre comércio”. Além de produzir uma mobilização inédita desta monta, a conferência se encerrou sem dar início à pretendida nova rodada de negociações comerciais.

O Fórum Social Mundial nas suas primeiras edições conseguiu abrigar este espírito “altermundista” ao polarizar o debate com o Fórum Econômico Mundial de Davos sobre o fracasso do modelo neoliberal e criar um espaço de convergência do movimento social de dezenas de países com seus diferentes matizes e culturas para discutir alternativas.

Desde o primeiro Fórum havia ansiedades para aprovar iniciativas concretas contra o neoliberalismo a partir do próprio espaço criado. Porém, era mais importante consolidá-lo e a evolução deste espaço nos anos seguintes deu uma contribuição importante para a afirmação de que “outro mundo é possível” a partir das discussões realizadas e a convocatória do dia mundial de protesto contra a guerra no Iraque nascida no Fórum de 2003 e que se realizou em abril do mesmo ano com a participação de milhões de pessoas em muitos países.

A primeira edição do Fórum realizada fora do Brasil foi a de Mumbai na Índia em 2004, um lugar imprescindível para se conhecer se quisermos realmente falar de pobreza e mazelas sociais com conhecimento de causa.

Este foi o apogeu político do Fórum apesar das várias e válidas tentativas posteriores de inovar sua dinâmica criando o “Território Social Mundial” em 2005 de volta a Porto Alegre, no entanto, gerando uma enorme dívida financeira; o disperso Fórum “Policêntrico” de Mali, Venezuela e Paquistão em 2006; o Fórum Social Mundial na África em 2007 que merece um comentário a parte; o desmobilizado “Dia Global de Ação” em 2008 e o novo retorno do Fórum ao Brasil ao realizar-se em Belém em janeiro de 2009 no meio da mais grave crise econômica mundial dos últimos oitenta anos que, no entanto, foi tratada da mesma maneira que outros vinte e tantos assuntos.

O comentário sobre o Fórum de 2007 realizado em Nairóbi no Quênia é porque este lugar foi escolhido para promover a participação do movimento social da África num evento mundial, normalmente, ausente de atividades realizadas em outros continentes devido aos altos custos envolvidos. Além disso, o Quênia era considerado um país politicamente tranqüilo e além de sediar várias organizações internacionais.

Entretanto, a participação de organizações sociais africanas foi pequena e houve inúmeras críticas à comercialização do espaço do Fórum por meio da venda de cartões telefônicos e concessões a restaurantes e lojas de artesanato para financiar o evento em alternativa ao apoio governamental que localmente não houve. O mais dramático foi que menos de um ano depois morreram mais de mil quenianos num conflito entre facções políticas que disputaram as eleições presidenciais do país sem que houvesse qualquer manifestação dos grupos facilitadores do Fórum Social Mundial como se nunca tivéssemos estado ali.

A questão central que marca o Fórum Social Mundial depois de Mumbai é que a conjuntura mudou e a concepção sobre seu papel, na prática, permanece a mesma.

O que mudou?
Seguramente haveria muitas contribuições para esta análise a partir de cada realidade nacional e concepção política, mas creio que há alguns fatos gerais que se destacam e apresentam um quadro muito diferente daquele de 2000/2001 quando se concebeu e realizou o primeiro Fórum Social Mundial.

Entre as mudanças favoráveis ao movimento social podemos mencionar que o pensamento único neoliberal sofreu abalos ao não conseguir justificar a piora das condições de vida das pessoas diante do aprofundamento das medidas liberalizantes e certos dogmas como o “Estado Mínimo” se desmoralizaram cada vez mais. As instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial, FMI e OMC perderam o poder que tinham de determinar os rumos da economia mundial. Certos temas como o aquecimento global e as mudanças climáticas são hoje de domínio e preocupação pública gerando novas dinâmicas políticas. Na América Latina há um contínuo crescimento de governos progressistas e anti-neoliberais cujas posições têm transcendido as fronteiras do continente.

Algumas iniciativas neoliberais têm, inclusive, sido derrotadas como no caso das Américas onde a ação do movimento social e a postura dos novos governos conseguiram impedir a aprovação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), uma tentativa de liberalização comercial radical conduzida principalmente pelos EUA e que seria muito prejudicial aos países de economia menor. A resistência do movimento social também foi vitoriosa ao impedir a privatização da água e saneamento básico em muitos lugares.

No entanto o “movimento altermundista” refluiu e entre os principais elementos estruturais e conjunturais desfavoráveis a mobilizações mais poderosas podemos mencionar a disseminação do conceito neoliberal das iniciativas individuais como solução para os problemas das pessoas invés das ações coletivas; da mesma forma a idéia da auto-suficiência da sociedade civil para assegurar seus direitos em detrimento do Estado como provedor e regulador de direitos; a baixa auto-estima do movimento social que freqüentemente não reconhece suas próprias vitórias como no caso do encerramento das negociações da Alca.

Além disso, os governos também se organizaram para enfrentar as mobilizações, pois depois da reunião do G-8 em Gênova onde mais de 200.000 manifestantes foram à rua para protestar contra o neoliberalismo, todas as demais ocorreram em locais de difícil acesso e com grandes perímetros de segurança. A partir da posse de George Bush na presidência dos Estados Unidos e, particularmente, depois do ataque terrorista em 11 de setembro houve a ascensão de políticas conservadoras e belicistas gerando um ambiente de insegurança geral e forte postura anti-movimento social em nível mundial. O crescimento eleitoral da direita na Europa, a movida dos partidos social democratas para o centro político e o crescimento da xenofobia na sociedade européia, isolaram setores importantes do movimento social daquele continente.

Por fim, cabe registrar que persiste a dificuldade de superar os limites dos estados nacionais na luta, principalmente, diante de graves crises como a que enfrentamos atualmente.

Neste sentido, o fórum policêntrico, o africano e o dia da ação global tiveram o mérito de buscar a ampliação da participação social no processo, mas não contribuíram para a convergência do movimento social em torno de medidas concretas, pois como reza a Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, o Fórum não propõe e nem aprova resoluções.

Autonomia e responsabilidade
A falta de convergência e propostas concretas tem sido motivo de frustração para muitos participantes, é o maior problema que o Fórum enfrenta há alguns anos e se tornou crucial neste momento de crise. Não é sem motivo que no meio de centenas de eventos interessantes em Belém, o mais concorrido e o que deu maior visibilidade para o Fórum foi o encontro dos presidentes Lula, Morales, Correa, Chávez e Lugo com seus participantes.

A Carta de Princípios elaborada pelo Comitê Internacional em 2001 rechaça a participação de representações partidárias, parlamentares e governamentais, mas os participantes do Fórum Social Mundial sabem que a solução dos problemas discutidos durante sua realização e a superação do neoliberalismo, sem sombra de dúvidas, passa pela organização social, mas passa também pela conquista de políticas de Estado. Portanto, é lógico e natural que o movimento social dialogue e negocie com seus governantes, principalmente, quando estes são originários do próprio movimento como é o caso de Lula, Evo Morales e Fernando Lugo ou quando são seus aliados como no caso de Chávez e Correa.

Aliás, a relação da organização do Fórum com os governos e partidos é profundamente contraditória. Apesar da visão predominante da importância da autonomia da sociedade civil frente a governos e partidos, a realização do Fórum desde seu início foi altamente dependente do apoio material do Estado para se viabilizar, com exceção de Mumbai e Nairóbi. Porém, para o Estado cumprir seu papel de atender aos interesses e necessidades da sociedade não basta que ele financie a organização de um espaço de expressão de uma parcela importante do movimento social, como é o Fórum Social Mundial, mas que ele possa acolher e atender as propostas emanadas do mesmo. Para isso a atual relação deve mudar criando uma relação transparente e autônoma entre o Fórum e os governos que se comprometerem com a construção de outro mundo e isto deveria ocorrer abertamente neste espaço, sem os subterfúgios da presença de um Chefe de Estado depender do convite feito por alguma entidade participante.

O mesmo ocorre em relação aos partidos políticos que estão vetados de participar diretamente do Fórum, embora muitas vezes representem amplos setores sociais. Porém, acabam participando por intermédio da inscrição de entidades para-partidárias ou de seus filiados que militam em diferentes organizações sociais. Apesar da preocupação dos organizadores do Fórum em evitar a influência partidária sobre seus rumos por meio da aplicação da Carta de Princípios, mais uma vez há contradições demonstradas na prática quando perdemos o governo do Rio Grande do Sul e depois a prefeitura de Porto Alegre em 2004. Logo após a edição de janeiro de 2005, o Fórum se despediu do Brasil e quando retornou, foi para Belém do Pará, estado atualmente governado pela esquerda. É óbvio que depois que o Fórum se realizou quatro vezes em Porto Alegre, a mudança se deveu à alternância de poder ocorrida naquela cidade e no Rio Grande do Sul e esta decisão não foi determinada por nenhum partido político, mas pelo Comitê Internacional.

Embora o Fórum e, muito menos seus facilitadores, não dirijam o movimento social, foi um grande erro que não houvesse uma atenção especial para a atual crise econômica mundial que já se manifestava claramente durante o processo preparatório de 2008. Ao custo de milhões de reais, a energia de cem mil pessoas que estiveram em Belém foi dispersa por duas dezenas de assembléias. Todas de grande importância, mas onde a crise que inclusive determinará a existência e os rumos de muitas organizações sociais nos próximos anos, foi apenas mais uma.

Pode se argumentar que esta foi a vontade dos participantes. Porém, teria sido perfeitamente possível que os facilitadores criassem um espaço especial para priorizar o debate de propostas para enfrentar a crise sem que isto ferisse a Carta de Princípios ou que houvesse qualquer posicionamento do Fórum em si.

A reunião do Comitê Internacional realizada após o Fórum tampouco tomou posição além da possibilidade de organizar um “fórum temático” a ser discutido na próxima reunião, o que, infelizmente é pouco diante de uma questão dessa natureza.

Conclusão
Definitivamente, não se tem a dimensão do que poderá significar esta crise além de seus aspectos econômicos. Em recente evento que participei, não relacionado diretamente ao Fórum Social Mundial, um dos expositores mencionou que a presente crise, assim como a de 1929, “será superada de alguma forma e em algum momento”. Se recordarmos que a crise de 1929 foi superada com a deflagração da segunda guerra mundial, o que poderemos então esperar da atual que tende a ser mais profunda do que aquela devido à integração econômica mundial?

É fundamental reagirmos a ela no seu início enquanto a crise econômica não atingir as fases de crise social e política. Esta reação dependerá de redes e alianças muito mais poderosas do que aquelas forjadas pelas primeiras edições do Fórum, pois a tendência no curto prazo será de recuo do movimento social para agir apenas no interior das fronteiras dos Estados nacionais.

Esta aliança forjada a partir do movimento social deverá incluir partidos e governos que estejam dispostos a enfrentar a crise, bem como instituições que igualmente se disponham a exemplo da OIT que vem chamando a atenção para as conseqüências negativas sobre o emprego.

Apesar do simbolismo de realização do Fórum na Amazônia em função das questões ambientais contemporâneas ele não esteve à altura das respostas que necessitamos.