FSM em sentido amplo
A avaliar pelas estatísticas, o IX Fórum Social Mundial realizado em Belém foi um êxito: 133 mil participantes de 142 países; 489 organizações de África, 119 da América Central, 155 da América do Norte, 4193 da América do Sul, 334 da Ásia, 491 da Europa, 27 da Oceânia. Entre todas, as participações mais marcantes foram as dos jovens (15000) e dos povos indígenas (1300 vindos de 50 países). Para os que vêem no FSM um espaço de encontro, uma plataforma mundial de discussão sobre os problemas que afligem o mundo a partir da perspectiva dos que mais sofrem com eles, este êxito foi incondicional. Para os que esperariam do FSM a formulação de políticas mundiais a serem levadas a cabo pelos movimentos e organizações que o integram, o êxito do IX FSM não consegue disfarçar a exaustão do seu modelo organizativo.
Entre estas duas posições quero defender uma outra que assente na idéia do FSM em sentido amplo. Em minha opinião, o processo do FSM é hoje muito complexo e as reuniões bienais são apenas um dos seus pilares. Foram, sem dúvida, as que até agora deram mais visibilidade ao Fórum, mas não são as mais importantes. Para além delas, o processo do FSM é constituído por mais três pilares. O segundo pilar são as articulações mundiais entre movimentos temáticos que nos últimos anos têm vindo a definir ações e agendas políticas a levar a cabo tanto a nível nacional como regional e global. Estão, neste caso, as articulações entre organizações indígenas que, sobretudo no continente americano, têm vindo a assumir um protagonismo crescente, tendo já marcada para 12 de Outubro deste ano uma jornada mundial de luta pela terra-mãe contra a mercantilização da vida. Para além destas, outras articulações têm vindo a ganhar grande dinamismo: o próximo Fórum Mundial da Água; a auditoria global à dívida externa dos países pobres; a agenda continental dos povos amazónicos, a agenda global dos direitos sexuais e reprodutivos; agenda continental das populações afro-americanas, nomeadamente no que respeita ao reconhecimento dos seus territórios ancestrais (“quilombos”), etc.
O terceiro pilar do FSM em sentido amplo é constituído pela assembléia dos movimentos sociais. É sobretudo conhecida pelas jornadas globais de luta contra a crise econômica, as mudanças climáticas, em defesa do povo palestino e de sanções internacionais contra Israel. Mas, para além disso, é na assembléia que se transformam em decisões políticas muitas das reflexões realizadas nas reuniões do FSM e que por essa razão tenho vindo a defender uma maior articulação entre o FSM e a assembléia dos movimentos. O conjunto dessas decisões constitui hoje a plataforma política do FSM e é por via dela que a alternativa ao Fórum Econômico de Davos mais claramente se revela. Eis algumas dessas decisões: a regulação dos mercados e a prioridade dada à dinamização dos mercados internos; o controle do capital financeiro e das atividades das empresas multinacionais; a prioridade total para as energias renováveis e a abolição do agrocombustível; a proibição da especulação financeira sobre as commodities; centralidade da agricultura familiar e da soberania alimentar enquanto instrumentos de luta contra a fome; o caráter vinculativo dos tratados internacionais que garantem o auto-governo dos povos indígenas e afro-descendentes e seu direito a consulta prévia em relação a todos os projetos de desenvolvimento ou extrativistas que os afetem; extensão da democracia participativa ao investimento público através de referendos ou conselhos permanentes de cidadãos e organizações; desmantelamento do Banco Mundial e do FMI e sua substituição por agências da ONU; auditorias internacionais da dívida externa; reforma do Conselho de Segurança da ONU, atualmente controlado pelos maiores produtores de armas; revogação das leis anti-terroristas sempre e quando usadas para criminalizar o protesto social pacífico.
O quarto pilar do FSM em sentido amplo são os governos progressistas que se inspiraram no FSM para transformar de modo mais ou menos profundo a política dos seus países. Cinco deles estiveram este ano no Fórum: os presidentes da Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai e Venezuela. É certo que, por agora, são todos governos latino-americanos. Mas é de prever que em breve outros surjam noutros continentes, inclusive na Europa. São eles que verdadeiramente garantem a eficácia das decisões políticas do FSM e, por isso, a autonomia entre eles e o FSM, longe de significar divórcio, é expressão de uma complementaridade virtuosa.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).