FSM: O quanto o Brasil é conservador?
Cara do conservadorismo
Cara do conservadorismo
Hoje, domingo, encerramento do FSM – com quase cem mil participantes, de 150 países – a grande imprensa já começa a fazer o “balanço”, uma proposta sem dúvida bastante pretensiosa. Uma das críticas mais presentes é sobre a “dispersão” dos eventos e, mesmo, das propostas. Tal crítica desconhece que a natureza do FSM é a diversidade, a multiplicidade e a ausência de “centro”. Apenas uma atitude “produtivista”, a busca da eficiência a qualquer preço, poderia imaginar um FSM centrado, planejado e “eficaz”.
Na verdade a busca da eficiência a qualquer preço ( e neste caso o preço seria o fim da diversidade e a expontanidade! ) é típico de uma sociedade altamente feitichizada na direção do “time is money”. Uma das coisas que mais se critica na construção de uma agenda alternativa é a colonização das diversas esferas da sociedade – a escola, a clínica, as artes… em fim, a condição humana – pela lógica impiedosa da fábrica. Assim, a chamada dispersão do FSM é a própria recusa à “comoditização” (ou seja, o transformar em mercadoria pronta para a venda ) das idéias e atividades que marcam o exercício da diferença.
A grande imprensa, incluindo a aqui os “jornalões” de Belém, correram para “mostrar” as contradições do FSM. Assim, na edição de domingo do “O Liberal” uma equipe de repórteres seguiu alguns jovens participantes, em especial no campus da UFRA, cujo comportamento pode “desmentir” o próprio FSM. Assim, de forma ostensiva ( “…sem qualquer discrição!” ) alguns estudantes estariam fumando maconha no território do FSM. Além disso, vendia-se (eis o outro crime!) cds e dvds piratas, camisetas e artesanato local sem autrorizações, tipicamente comércio informal! Graves crimes! Ora, faltou um claro entendimento do caráter do próprio FSM.
Liberação da maconha, livre uso, reprodução e distribuição do áudio-visual e uso livre do espaço urbano para um comércio “de formiguinhas” são parte fundamental da agenda do FSM. A tentativa esperta dos jornais em separar o “bom Fórum” – em salas de aula, com o pessoal atento e debatendo – do “anti-Forum” – com a galera nas ruas debatendo com as pernas, as bocas, os narizes, as peles e os sexos – não faz qualquer sentido. Não há dois “fóruns”, há apenas as formas diversas e múltiplas de se estar nos “foruns”( Ok, ok: eu sei o plural “fórum”, “fora”… mas, acho feio e não vou utilizar! ).
Ao contrário da Praça Real, em Amsterdã, ou a “Love Parade”, de Berlim, onde sexo e drogas ( com muita música pop e tecno, em vez do bom e velho rock! ) rolam soltos, o FSM é um espaço da militância, onde a exposição e a auto-exposição são atos de rebeldia altamente pedagógicos, ensinando a ser diferente.
A Marcha da Maconha
Um dos eventos que mais atraiu a atenção da mídia local foi a “Marcha da Maconha”, no sábado (31 de janeiro), organizada, entre outros, pelo cientista político Renato Cinco, do Rio de Janeiro. No próprio convite os organizadores estabeleciam: “ Não recomendamos que os participantes portem ou usem drogas”. Era uma clara precaução, posto que em outros eventos similares, como no Rio de Janeiro, a polícia sentiu-se à vontade para prender e mesmo espancar participantes. Qual o crime? Defender a legalização do uso de uma droga – de uso legal em vários países europeus e estados norte-americanos! Neste caso, a polícia, atravessando a Justiça, punia previamente um crime de opinião. Ora, eu posso defender (e escrever! ), e sair às ruas para fazê-lo, qualquer ato que não cause dano moral, mental ou físico a outro. Assim, posso defender a pena de morte ou a “cura” de gays e lésbicas… Como por sinal se faz frequentemente na grande imprensa. Claro, também posso defender que maconha é menos maléfica do que o álcool, os cigarros ou os automóveis em alta velocidade (uma das causas mais graves de mortes no Brasil! ) que contam com incrível cobertura da mídia e sustentam imensas contas de agências de propaganda!
Quem é conservador no Brasil?
A questão da maconha, de sua legalização e, inclusive, uso médico, é um bom termômetro para medir o conservadorismo brasileiro. Seria importante comparar o número de vítimas fatais do uso da maconha com as vítimas da tabelinha álcool+carros potentes. Mas, álcool e carros potentes, associados nos comerciais com virilidade, prestígio, forma fácil de “ganhar a boa”, etc… não merecem a mesma condenação da opinião pública e da mídia.
Na verdade em uma pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo, apresentada na oficina “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil”, e dirigida por Gustavo Venturi (survey feito em 150 municipios do país ), estabelecia que 41% dos entrevistados teriam repulsa a conviver com usuários de drogas. Mas, não era só isso. Na verdade, a maior rejeição recaia sobre os ateus: cerca de 42% dos entrevistados tinham algum tipo de rejeição a conviver com ateus. Outros 26% não tolerariam qualquer relação com garotos de programa; 24% se recusariam a manter um relacionamento social ou profissional com transsexuais; 22% com travestis e 19% com gays e lésbicas.
Ou seja, qualquer comportamento alternativo, diverso ou desviante merece recusa, ou mesmo repulsa, o que tende a isolar e excluir o alvo da intolerância do conjunto da sociedade e, no limite, dos direitos inerentes à cidadania.
A Pesquisa da Fundação Perseu Abramo (com apoio da Fundação Rosa Luxemburg, da Alemamha) é um dos retratos mais completos da forma de pensar, e de agir, da sociedade brasileira em face ao preconceito. Não vamos aqui reproduzir o conjunto dos dados organizados por Gustavo Venturi. O trabalho ainda será apresentado a imprensa e os resultados aqui expostos foram preliminares. De qualquer forma, o material está disponível no sítio eletrônico da Fundação Perseu Abramo.
O maior destaque na pesquisa realizada centra-se em duas dificuldades: de um lado reconhecer o preconceito, inclusive no agir cotidiano, em atos e expressões que evidenciam preconceito ou intolerância. Cerca de 28% declaram, na pesquisa, abertamente “ter preconceito” contra gays e lésbicas. Em pesquisas anteriores, da própria Fundação Perseu Abramo, cerca de 4% dos entrevistados declararam-se racistas e outros 4% admitiram preconceito contra idosos. Por outro lado, embora 97% dos entrevistados se declarassem seguramente heterossexuais, mais à frente cerca de 5% dos homens declararam só manter relações sexuais com outros homens, o mesmo no caso de mulheres. Mas, cerca de 8% do total dos entrevistados, ao final, declaravam não saber qual sua identidade sexual!
Tais dados, em verdade, traduzem a tensão íntima entre sentimentos, pulsões, escolhas, repressão e auto-repressão a que estão sujeitos os indivíduos no limiar de escolhas alternativas.
A recusa diante da diversidade sexual
Assim, mais de um quarto da população brasileira teria dificuldades de conviver com a diversidade sexual no seu ambiente imediato. Mas, em verdade, postos diante da sentença de que “Deus fez homem e mulher diferentes, logo homem com homem, mulher com mulher não é normal!” merece a concordância de 92% dos entrevistados! O ápice do pensamento misóginio e falocrata, a “sabedoria” popular expressa na frase: “lésbica é lésbica porque não encontrou um homem de verdade!”, tem a aprovação de um terço dos entrevistados!
Mesmo a exclusão profissional é clara, e até chocante, quanto um número relativamente elevado de pessoas declaram que mudariam de médico se soubessem que ele/ela é gay/lésbica… Mais impressionante é quando se trata do “professor do seu filho”, com um elevado número declarando que faria o possível para excluir o profissional do magistério!
Não é de se estranhar, assim, que o PLC (Projeto de Lei da Câmara) 122/2006, que criminaliza a homofobia, esteja parado até hoje. Não se trata de uma limitação do direito de opinião dos contrários à diversidade sexual, como querem os pastores e deputados evangélicos (aliás, as igrejas cristãs são os núcleos mais conservadores sobre a temática diversidade sexual, bem ao contrário dos kardecistas, do candomblé e da umbanda). Na verdade, as entidades LGBT calculam que 12 milhões de brasileiros já foram vítimas de agressões (em especial em escolas, delegacias, hospitais e bares) em razão de sua opção sexual.
Da mesma forma, não se trata de “proselitismo sexual”. Na verdade, a atitude intolerante causa sofrimento físico, moral e mental. Além disso, a declarada dificuldade em conviver com o mundo GLBT, social e profissionalmente, excluiu pessoas de várias profissões, num país carente, de áreas fundamentais como saúde e educação! Não é estranho, assim, que o universo GLBT seja deportado para as atividades informais femininas, como os salões de beleza.
Debater com o corpo
Numa sala de aula da UFPA, para no máximo cinqüenta pessoas, cerca de trezentos participantes se espremiam (dentro e fora) para ouvir Nilmário Miranda e Gustavo Venturi falar sobre preconceito e intolerância no Brasil. O público era dominante jovem. Aqui e ali um rapaz segurava a mão do parceiro. Uma jovem de aspecto nitidamente “sulino”, com pintura corporal indígena, prendia os cabelos da namorada. Nada havia de escandaloso, havia carinho. E neste sentido a pesquisa traduzia um dado positivo: a metade dos entrevistados acredita que um casal homem/homem, ou mulher/mulher, pode viver uma história amorosa tão intensa e válida quanto um casal heterossexual.
Bruno, estudante de Letras da UFPA, 20 anos, concorda. Estava lá, no calor sufocante da tarde de Belém, porque acredita que pesquisas como estas ajudam a expor a naturalidade dos comportamentos alternativos. Nos contou de sua escolha natural, sem traumas, com ajuda dos pais e dos amigos. O mais importante agora para a diversidade sexual? Ah, as questões legais! A legalização da união civil, a garantia dos mecanismos de saúde e de partilha de bens! Para Mônica, 23 anos, estudante da USP, é preciso que todos saibam que o amor de duas mulheres não é uma ferramenta erótica masculina, mas um amor que se basta para si mesmo!
Por fim, a pesquisa conclui com a construção de um “Índice de Intolerância” – ver no sítio da Fundação Perseu Abramo a metodologia e as variáveis empregadas. Por tal índice, 99% dos brasileiros possuem algum tipo de preconceito contra a diversidade sexual. Esse é o tamanho do conservadorismo brasileiro. Essa é a nossa intolerância.
*Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
– Para acessar os dados da pesquisa "Diversidade sexual e homofobia no Brasil", clique aqui.
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Para informações sobre a programação da FPA no FSM 2009, clique aqui.