Por Clarissa Pont, da Agência Carta Maior

BELÉM – A advertência de Leonardo Boff é taxativa: “Trata-se de um novo padrão civilizatório, nós temos que nos acostumar a consumir menos”. Em entrevista à Carta Maior, o doutor honoris causa em Política pela universidade de Turim (Itália) e em Teologia pela Universidade de Lund (Suécia), fala sobre a Teologia da Libertação, o Fórum Social Mundial, a crise econômica e ecológica mundial e a eleição de Barack Obama.

Ele resume nos três erres da Carta da Terra o novo paradigma sob o qual a humanidade terá que viver para sobreviver: reduzir, reutilizar e reciclar. Além disso, defende que o FSM tem o dever de pressionar o governo brasileiro a melhorar sua política para a preservação da Amazônia, avançando principalmente na questão fundiária.

Leia abaixo a entrevista cedida por Boff à Agência Carta Maior:

Carta Maior – Qual a avaliação que o senhor faz sobre a atuação de Joseph Alois Ratzinger, o Papa Bento XVI, e da postura dele em relação à Teologia da Libertação?
Leonardo Boff – Quanto à figura de Ratzinger, seja como mestre, como prefeito da congregação ou como Papa, eu diria que não há mudança substancial entre as opiniões. Ele sempre manteve uma linha teológica de fundo inalterável, isto é, o projeto de construir a Igreja para dentro, reforçar as instituições eclesiásticas e a autoridade do Papa, revalidar o direito canônico, sublinhar uma leitura dogmática da fé cristã. Eu diria que em alguns destes aspectos ele, inclusive, radicalizou no sentido de que a fala de um Papa é muito mais poderosa do que a fala de um prefeito de uma congregação, porque eles têm como objeto as doutrinas, enquanto o Papa tem como destinatário toda a Igreja.

Na medida em que esse Papa insiste enormemente que igreja mesmo é só a Católica e continua repetindo que as demais igrejas não são igrejas e que as demais religiões necessitam de salvação, ele toma para si um fundamentalismo light. Por que fundamentalismo? Porque acentua de tal maneira a própria doutrina que exclui as demais e isso não parece ser a perspectiva do cristianismo originário, nem a perspectiva bíblica. Eu diria ainda que este projeto pastoral não é uma mensagem para a humanidade, mas é para reconverter a Europa. Para nós, do Terceiro Mundo, optar pela Europa é optar pelos ricos e por um projeto de antemão falido porque os europeus não estão interessados em reconversão. Na minha interpretação, isso é ter o cristianismo nas costas e não na frente, é um cristianismo crepuscular e não um cristianismo de rejuvenescimento. A mensagem correta seria colocar no centro da preocupação a vida, porque o mundo não ama mais a vida, sacrifica a vida, faz comércio com a vida.

Neste mundo onde o consumo está além do que o mundo é capaz de produzir e regenerar, qual é a mudança necessária para que a crise não se transforme em tragédia?

Como a crise é global, ela afeta todas as pessoas, todas as instituições, todos os grupos e todas as forças. O bom seria que cada instituição, igreja, universidade, sindicato, cada grupo humano pudesse, a partir do seu capital acumulado, dar uma contribuição no sentido dos três erres empregados pela Carta da Terra. O primeiro erre é reduzir o consumo. Nós podemos viver bem com menos, quase 90% de tudo que é produzido é supérfluo, atende necessidades suscitadas por um tipo de cultura consumista que abafou a ética e que reduziu a política a uma função da economia. Tudo é feito mercadoria, com tudo se faz negócio. Então é reduzir o consumo porque a Terra não agüenta.

Segundo, temos que aprender a reutilizar aquilo que nós usamos e ter a engenhosidade de dar outras utilidades para os produtos que nós usamos. Seja geladeira, roda ou roupa. Enfim, é reduzir, reutilizar e reciclar. Um dos grandes problemas do mundo hoje é o que fazemos com os rejeitos. Porque o que o sistema mundial mais produz hoje não são máquinas ou eletrodomésticos, é lixo. Nova Iorque tem que levar seu lixo a 300 km de distância porque não sabe onde colocá-lo. Se esse não for um caos criativo, será um caos destrutivo. Trata-se de um novo padrão civilizatório, nós temos que nos acostumar a consumir menos. Talvez agora não sintamos tanta urgência porque a máquina produtiva e consumista está funcionando, mas na medida em que a crise deixa as bordas e vai para o centro a sociedade sentirá a necessidade de fazer mudanças. De outra forma, essa crise terá conseqüências funestas.

A Amazônia, tema deste Fórum, também é vítima desta crise…
A Amazônia é o lugar de teste de um novo paradigma. É o patrimônio maior da biodiversidade da humanidade. É a maior reserva de água doce do mundo, 13% de toda água doce do mundo está no Brasil e depois no Canadá. Na Amazônia se dá o equilíbrio dos principais climas de toda a América. Apesar de toda essa luxuriante riqueza, o equilíbrio da Amazônia é extremamente frágil, é um dos solos mais pobres de todo o planeta com terras arenizadas. O húmus de grande parte da Amazônia não passa de 30 ou 40 centímetros. Se não forem feitas políticas muito bem dirigidas para a Amazônia, em função do agronegócio e da expansão da soja e do gado, há o risco que em 30 ou 40 anos haja uma vasta savanização da floresta. A humanidade inteira olha com preocupação para Amazônia.

E como garantir uma perspectiva de futuro pós-crise do capital?
Eu lembro aqui uma frase de Gorbachev na reunião da Carta da Terra, em Amsterdã. Ele disse que o modelo imperante de produção e consumo não tem mais condições de garantir um futuro para a humanidade, nós temos que garantir uma coalizão de forças ao redor de novos valores e de um novo paradigma civilizatório. Não é uma questão de querermos ou não. Nós somos forçados a buscar saídas. Caso contrário, e essa é a tendência um pouco do capitalismo, é suicídio. Marx, no terceiro tomo do Capital, explica a lógico do sistema financeiro. É um dos livros mais lidos do mundo inteiro hoje e lido, especialmente, por aquelas pessoas inteligentes dos mercados que erraram e que se perguntam por quê. Marx diz que a tendência do capital é destruir as duas bases que o sustentam, a força de trabalho e a natureza. Nós temos que buscar saídas numa economia plural, em muitas formas de produção. Talvez a China poderá ser um aceno, embora o modo de produção principal chinês seja capitalista.

Nós vivemos sob o pensamento único do mercado, sob o fundamentalismo do modo de produção capitalista. Esse modo de produção sozinho não conseguirá responder as demandas humanas. Pede-se uma economia política múltipla que exista conforme os ecossistemas. Chico Mendes viu isso na Amazônia com claridade. A nova economia vai nessa direção, se opõe ao globalismo. E cria uma economia regional, onde não há problema de transporte, e existe a valorização das tradições culturais.

O Fórum Social Mundial começa em poucos dias, justamente aqui em Belém do Pará. O Brasil vai estar em foco no sentido de que o mundo todo espera um plano específico e claro para o território Amazônico…

Eu creio que o Fórum tem o desafio de pressionar o governo brasileiro para fazer uma política clara, explícita e objetiva sobre a Amazônia. No meu modo de entender, o governo ainda não elaborou nenhum plano singular detalhado sobre a Amazônia. São políticas pontuais para resolver conflitos de terra e para impedir desmatamento em algumas regiões. Fundamentalmente o que tem que ser resolvido é a questão fundiária. É necessário um Plano de Aceleração não do crescimento, mas da integração e da preservação da Amazônia. O Fórum Social Mundial tem esse dever. Quando o presidente Lula vier aqui no dia 29 de janeiro, posso escutar as vozes das nações dos povos que obrigam o governo a assumir responsabilidade para com a humanidade.

A Amazônia é uma região tão complexa, que envolve tantos problemas para os quais nos não temos sequer os meios financeiros suficientes, nem a acumulação de ciência suficiente para podermos sozinhos enfrentar a riqueza e o valor que esse ecossistema tem para a humanidade.

Na perspectiva internacional, a nova presidência dos Estados Unidos também será um tema essencial durante o Fórum. Qual a importância de Barack Obama nestes debates?
Eu pessoalmente considero a eleição do Obama algo providencial e absolutamente surpreendente, porque há 40 anos os negros no sul dos Estados Unidos não podiam votar e hoje um negro assume a presidência do país. Isso é um fato absolutamente inédito, que a gente só pode explicar pelas leis da evolução, por um acúmulo de energia que, sem ninguém esperar, há um salto de qualidade. Em um país que é notoriamente racista, eleger alguém que nem nasceu nos Estados Unidos, que vem de fora do establishment, nem é da tradição branca e protestante americana é incrível. Nem da tradição cristã, porque originalmente ele era muçulmano.

Eu tenderia a ver, como teólogo, um sinal de que Deus tem misericórdia da humanidade. Por outro lado, devemos pensar politicamente e superar a visão da leitura burguesa da história que valoriza apenas indivíduos. Temos que ver é o Governo Obama e quais interesses ele vai representar. O orçamento militar do país, por ano, é de 1,2 trilhão de dólares. Com 20% deste dinheiro, daria para erradicar toda a fome da humanidade. Uma força política que se organiza ao redor da guerra é absolutamente perversa, cruel e sem piedade. Ele prometeu, e isso é de anotar, descentralizar o governo, reforçar aliados e não utilizar a violência, o famoso big stick norte-americano, mas o diálogo.

Ele declarou recentemente que Israel tem direito de se defender, mas que deve aceitar o Estado Palestino. Os palestinos têm direito a ter um estado. É importante que alguém diga isso para não concentrar toda influência dos Estados Unidos sobre Israel e deixar os palestinos no seu desespero. A Palestina não elaborou uma estratégia de guerra, as ações ali são fruto do desespero e da perspectiva de quem não tem outra arma que não entregar a própria vida para defender a dignidade mínima de um povo. Podemos ter esperança. Eu diria até, de forma simbólica, que Obama é um dos frutos do sonho do Fórum Social Mundial. Uma outra política norte americana é possível.

*O pensamento de Leonardo Boff é tema de livro recente da Coleção Intelectuais do Brasil, editada por EFPA/UFMG.

Originalmente publicado na Agência Carta Maior, em 25/01/2009



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