Diretas-Já: há 25 anos, na praça da Sé
Num dia nublado como hoje, 25 de janeiro, dia de aniversário de São Paulo, há 25 anos, eu estava lá, na praça da Sé.
Era o primeiro grande comício das Diretas-Já, dando partida ao maior movimento cívico-popular da história do nosso país.
Em poucas semanas, esta campanha sem dono nem roteiro, tomaria as ruas e praças das grandes cidades brasileiras, de norte a sul, clamando por democracia e dando um agora chega! à ditadura militar.
Num dia nublado como hoje, 25 de janeiro, dia de aniversário de São Paulo, há 25 anos, eu estava lá, na praça da Sé.
Era o primeiro grande comício das Diretas-Já, dando partida ao maior movimento cívico-popular da história do nosso país.
Em poucas semanas, esta campanha sem dono nem roteiro, tomaria as ruas e praças das grandes cidades brasileiras, de norte a sul, clamando por democracia e dando um agora chega! à ditadura militar.
Vinte anos após o golpe de 1964, o Brasil se reencontrava consigo mesmo. A partir deste comício, sem ninguém mandar, cada um passou a fazer a sua parte na virada da história.
Cheguei bem cedo na praça da Sé. Vi as pessoas se juntando aos poucos, até formar a multidão que, no meio da tarde, inundou as ruas vizinhas.
Ver tanta gente reunida em torno da mesma bandeira encheu de esperança os líderes políticos e os artistas amontoados no grande palanque armado em frente à catedral, animando todo mundo em volta, até os vendedores de churrasquinho e pipoca espalhados pelas laterais.
No dia seguinte, minha matéria publicada na Folha de S. Paulo, o único veículo da impresa brasileira que, desde o primeiro momento, abriu amplo espaço para a cobertura do movimento, saiu com o título “Na Sé, um brado retumbante pelas Diretas” e começava assim:
“Ouviram do Ipiranga, às margens plácidas/De um povo heróico o brado retumbante”.
Nunca, antes, em sua história de 430 anos completados ontem, São Paulo viu algo igual _ centenas de milhares de pessoas transbordando da praça da Sé para todos os lados, horas debaixo de chuva, num grito uníssono: “Eleições diretas para presidente!”
Nunca, antes, foram tão verdadeiros os primeiros versos do nosso Hino Nacional.
O brado engasgado na garganta durante vinte anos explodiu na praça da Sé. O pranto travado correu pelos rostos de gente muito vivida, os braços se ergueram, dando-se as mãos uns aos outros, toda gente cantando o Hino Nacional, no encerramento desta festa pelas eleições diretas _ a maior manifestação pública a que o Brasil já assistiu.
Vai ver que foi daí que o hoje presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, um dos líderes das Diretas-Já que discursou naquele palanque, tirou esta história de falar ”nunca antes neste país…”.
Mas, naquele dia, e do começo ao final da campanha, quatro meses depois, o líder incontestável da campanha das Diretas-Já foi outro velho amigo, já falecido, o deputado Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, maior partido de oposição à ditadura na época.
Primeiro, o governador Franco Montoro, de São Paulo, mais adiante o governador de Minas, Tancredo Neves (ausente da praça da Sé) e o do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, e outros governadores da oposição teriam importante papel na organização dos comícios e na articulação política da campanha, que a maior parte da imprensa brasileira teimou em esconder até onde pôde.
Lula ainda era uma novidade na cena política, recém saído da liderança sindical do ABC, mas fazia muito sucesso nos comícios, graças à animada militância do PT e suas bandeiras vermelhas com uma estrela branca no meio, a ponto de certo dia Ulysses Guimarães queixar-se a ele, brincando, durante o vôo fretado entre um compromisso e outro:
“Não está certo isso, Lula. O MDB é que monta os comícios, leva os artistas, aluga avião, paga as despesas e você fica com a fama, sempre é o mais aplaudido…”.
Os dois riram. Eram muito amigos e tinham um grande respeito mútuo pelo papel que cada um representava nesta história.
A travessia da esperança
Na introdução do livro “Explode um novo Brasil – Diário da Campanha das Diretas” (Editora Brasiliense, 1984), que lancei poucas semanas após o último comício do Anhangabau, no saguão da Folha, na alameda Barão de Limeira, conto como foi que esta história começou, pelo menos para mim.
O sonho aconteceu em novembro de 1983. Vinha voltando para casa, depois de um almoço de domingo com a família, no sítio do meu irmão, em Cotia, pertinho de São Paulo, e nem prestava atenção na conversa das três meninas no carro.
O ano estava chegando ao fim _ mais um ano, sem nenhuma perspectiva de mudança, sem esperanças, só lamentos por toda parte (…).
Era preciso mudar tudo, começar de novo, virar o Brasil de cabeça para baixo. Mas, de que jeito?
A única bandeira que pintava no horizonte escuro, acenando timidamente, era a das eleições diretas _ o primeiro passo, sabíamos todos, para a reconstrução deste rico e belo país, dilapidado, humilhado, torturado, quase dizimado pela ditadura dos últimos vinte anos, mas ainda de pé, com vergonha na cara.
Chegando em casa, nem esperei para saber o resultado final do jogo do meu time, e fui logo pra máquina (ainda não existia computador, celular, internet, então, nem pensar) escrever aquilo que tinha sonhado de olhos abertos: por que a Folha de S. Paulo não empunhava de uma vez esta bandeira das eleições diretas, como fazia a imprensa de antigamente, quando se apaixonava por uma causa?
No dia seguinte, as três laudas de pauta sobre a Campanha das Diretas que havia deixado com o chefe de reportagem, Adilson Laranjeira, foram logo parar nas mãos de Octavio Frias de Oliveira, o proprietário do jornal. Frias convocou imediatamente a cúpula da redação da Folha, leu aquele texto para todos, e mandou tocar o pau na máquina.
Naquele tempo, jornalistas podiam escrever com emoção o que viam, pensavam e sentiam, e eram estimulados a participar de todo o processo produtivo do jornal, dando sugestões e fazendo críticas à política editorial.
Por isso, a partir daquele dia, tive toda a liberdade para cobrir os comícios das Diretas pelo país inteiro, sem limite de espaço ou de despesas de viagem, sob o comando direto de seu Frias, que queria ser informado pessoalmente sobre cada passo do movimento, e até da circulação do jornal pelos lugares por onde eu andava.
Enquanto ainda havia certo ceticismo, tanto entre algumas chefias do jornal como entre líderes da oposição, sobre os rumos da campanha, Ulysses Guimarães e Octavio Frias em nenhum momento titubearam em jogar, respectivamente, seu prestígio político e o do jornal, cada um no seu papel, fazendo tudo o que era possível para tornar o movimento vitorioso.
Faltaram apenas 22 votos para a aprovação da Emenda Dante de Oliveira, que previa a volta das eleições diretas para presidente e precisava de maioria de dois terços no Congresso Nacional, naquela triste madrugada de 25 para 26 de abril de 1984. Escrevi no livro acima citado:
Pelo chão acarpetado do plenário da Câmara Federal, quando tudo acabou, os representantes de um povo derrotado no seu maior anseio pisavam sobre as pétalas de crisântemos amarelos, que estes meses todos simbolizaram uma luta, um sonho, um encontro _ o grito de liberdade desta humilhada Nação brasileira.
Lá fora, depois das duas da manhã, algumas centenas de cidadãos ainda esperavam o impossível, uma reversão no resultado que ninguém queria: a esmagadora maioria dos 130 milhões de brasileiros arrasada pela ausência dos deputados do PDS (o partido do governo militar).
(…) Alguns deputados choravam, outros se prostavam em silêncio. Ao ser anunciado o resultado da votação da Emenda Dante de Oliveira, pouco depois das duas horas da manhã de ontem, a grande festa que todo o povo brasileiro esperava corria o risco de se transformar num imenso velório.
Mais uma vez, porém, este povo reagiu. Em vez de ficarem lamentando os 22 votos que faltaram para que o Brasil voltasse a ser uma democracia, os homens e as mulheres que lotavam as galerias bradaram seu grito de guerra: “Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos eleger o presidente do Brasil!”.
Em meu livro de memórias “Do Golpe ao Planalto _ Uma vida de repórter” (Companhia das Letras, 2006), também dedico um capítulo inteiro à Campanha das Diretas.
Ali relato a conversa que tive, alguns dias após a votação no Congresso, com Ulysses Guimarães, que ficou conhecido como “Senhor Diretas”:
Ainda me recuperava da ressaca das Diretas, quando uma noite dr. Ulysses telefonou para minha casa, também ele inconformado com o que acontecera: “Sabe o que eu descobri, Kotscho? Enquanto nós estávamos viajando pelo Brasil defendendo as eleições diretas para presidente, o Tancredo já estava se acertando com os dissidentes do PDS e mesmo com companheiros meus do PMDB para montar sua campanha no Colégio Eleitoral. Gastei meu verbo à toa. Assim é a vida, meu filho”.
O que ele não disse, mas todos os que participaram por dentro da Campanha das Diretas sabiam, é que num determinado momento só havia dois caminhos pela frente.
Se a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada, contra a vontade dos militares, que ainda mandavam no país, o candidato das oposições seria Ulysses Guimaraães.
Caso contrário, mantendo-se as indiretas no Colégio Eleitoral, todos apoiariam Tancredo Neves. E foi o que acabou acontecendo.
O batismo é do povo
Para encerrar este especial do Balaio sobre os 25 anos do Comício das Diretas na praça da Sé, peço licença aos leitores para reproduzir o manuscrito que Ulysses Guimarães me enviou para o prefácio do livro “Explode um novo Brasil _ Diário da Campanha das Diretas”.
Este é o maior troféu que guardo dos meus 44 anos de carreira, em que já ganhei premio até da ONU, no ano passado, mas ficou marcado porque a Campanha das Diretas foi o melhor momento da minha vida pessoal e profissional, um divisor de águas da história recente do país, na travessia da ditadura para a democracia.
Sob o título “O batismo é do povo”, dr. Ulysses escreveu:
“Poesia é encontrar uma árvore esquecida à beira de uma estrada e glorificá-la”.
O jornalista de raça é um mágico. Transfigura o anônimo em notável, celebra o desapercebido, enquadra o texto no contexto. Enquanto nós nos limitamos a olhar, ele vê coisas, pessoas, a paisagem. Vê e conta.
Ricardo Kotscho é jornalista raçudo. O jornalismo está no seu sangue e no seu destino.
Andei com ele por praças e ruas deste infindável País. Entupidas de gente, de berros e de gestos de revolta e de esperança. Quando lia suas reportagens na Folha de S. Paulo ficava surpreendido e encantado.
Como é que o Ricardo viu aquele jovem frenético, registrou a originalidade daquele dístico, enxergou aquela mulher chorando, ouviu daquele velho as histórias de outros comícios e outros personagens?
Ele não se absorve nas estrelas do acontecimento. Sua pena é também alto-falante da multidão, assegura-lhe o papel de personagem no grande e terrível drama social brasileiro.
Osmar Santos é o locutor das diretas, Fafá de Belém é a cantora das diretas, Ricardo Kotscho é o cronista das diretas. O batismo é do povo. Leia este livro. Assim verificará que, mais uma vez, o povo tem razão.
Brasília, 18 de abril de 1984
Deputado Ulysses Guimarães
Neste 25 de janeiro de 2009, eu quero prestar esta singela homenagem a um grande homem público brasileiro, tão cedo esquecido, que teve papel decisivo na nossa história para que hoje possamos viver numa democracia e votar livremente em nossos governantes.
Valeu, dr. Ulysses!
Em tempo: olhei de novo pela janela e agora, quase nove da manhã, o céu já abriu, ficou todo azul e teremos um belo domingo para comemorar o aniversário da cidade.