O jurista Dalmo Dallari é enfático ao analisar o tratamento dado aos direitos humanos no Brasil: “Exatamente pela existência do contexto político, econômico e social de desigualdade, é fundamental que se proclame com todo o vigor, sem reticências ou concessões, a universalidade dos direitos humanos”. Aqui nesta entrevista, Dallari analisa a 11ª Conferência dos Direitos Humanos do país e também atenta para alguns fatos que marcaram os debates acerca deste tema no Brasil. Gentil, como sempre, Dalmo Dallari concedeu à IHU On-Line a entrevista em meio a uma viagem pela França através de e-mail.

Embora 2008 tenha sido o ano em que se comemorou os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os 20 anos da Constituição brasileira, para o jurista ainda existe “um amplo caminho a ser percorrido para a efetiva garantia da igualdade de direitos a todos”.

Dalmo Dallari aposentou-se como professor de Direito da Universidade de São Paulo, onde, em 1996, tornou-se o professor catedrático da Unesco na cadeira de Educação para a Paz, Direitos Humanos e Democracia e Tolerância. Entre suas principais obras, destaca-se Elementos de Teoria Geral do Estado (São Paulo: Saraiva, 2002).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O último ano foi marcado pela comemoração de diversos documentos que tratam dos direitos humanos. Quais são as prioridades brasileiras no âmbito dos direitos humanos hoje?
Dalmo Dallari – No ano de 2008, foram comemorados os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os 20 anos da Constituição brasileira de 1988, que acolheu os direitos proclamados na Declaração e criou instrumentos jurídicos eficazes para sua obtenção de sua proteção e para a busca de sua efetivação. A partir da vigência dessa nova Constituição, e com base nela, ocorreram no Brasil muitos avanços altamente significativos em termos de correção de injustiças tradicionais e de garantia do acesso aos direitos fundamentais a pessoas e segmentos sociais tradicionalmente marginalizados.

Ainda existe, entretanto, um amplo caminho a ser percorrido para a efetiva garantia da igualdade de direitos a todos. Não cabe destacar um ou alguns direitos fundamentais como sendo prioridades, pois, como tem sido assinalado por eminentes teóricos e ativistas dos direitos humanos, existe uma solidariedade necessária entre todos os direitos os direitos fundamentais e todos são, reciprocamente, interdependentes. O que se pode apontar como prioridade é a concepção de todos os direitos humanos, de todas as pessoas, como exigências éticas e jurídicas, que os governos são constitucionalmente obrigados a proteger, sendo também obrigados a estabelecer programas e definir políticas públicas, visando à efetivação deles, destinando recursos financeiros até o máximo das possibilidades, como verdadeiras prioridades orçamentárias.

Como o senhor avalia a 11ª Conferência dos Direitos Humanos no Brasil que ocorreu no final de 2008?
A 11ª Conferência de Direitos Humanos no Brasil foi uma boa oportunidade para avaliação de avanços já obtidos, como também para ampliar a aprofundar o conhecimento dos direitos humanos e a consciência e de que se trata de verdadeiros direitos, judicialmente exigíveis por quem for prejudicado pelo seu desrespeito. Foi também uma oportunidade propicia para a discussão de propostas, visando assegurar efetivamente os direitos humanos a todos, chamando-se a atenção para a existência de bloqueios e resistências, tanto no âmbito publico quanto no privado, que impedem ou dificultam o pleno gozo dos direitos humanos por todos. Além do registro dos avanços, a identificação dos obstáculos também foi um ponto positivo da 11ª Conferência, pois forneceu elementos válidos para sua superação.

É possível pensarmos numa universalização dos direitos humanos num contexto político, econômico e social tão desigual?
Exatamente pela existência do contexto político, econômico e social de desigualdade, é fundamental que se proclame com todo o vigor, sem reticências ou concessões, a universalidade dos direitos humanos. Isso porque a consciência da universalidade acentua ainda mais a injustiça das desigualdades e coloca a exigência de atitudes positivas buscando sua eliminação. A par da necessidade de insistir na proclamação da universalidade, exigindo que ela seja reconhecida e respeitada por todos, é importante assinalar que a humanidade caminha precisamente no sentido da ampliação do reconhecimento da universalidade, ficando cada vez mais difícil manter situações de discriminação e marginalização tradicionais. Isso vem acontecendo, por exemplo, em vários países dominados por islamitas radicais, nos quais as mulheres, tradicionalmente marginalizadas, vêm-se impondo ultimamente como titulares de direitos iguais.

Como o senhor acha que deveria se organizar um sistema de educação e cultura para os direitos humanos? Em que status estamos hoje em relação a essa questão?
Já cresceu muito no Brasil a consciência da necessidade de educação para os direitos humanos. Assim, ao lado de movimentos comunitários que foram pioneiros nesse trabalho de educação, temos hoje a disciplina Direitos Humanos em currículos universitários, sendo também muito intensa sua divulgação por meio de cursos de extensão de diversos níveis. O que se deve fazer é ampliar esse trabalho, introduzindo formalmente a educação para os direitos humanos nos currículos escolares, desde o nível fundamental. Já existe hoje no Brasil um ambiente propício a essa ampliação, estando bastante enfraquecida a resistência dos grupos sociais privilegiados que se opõem aos direitos humanos por medo da perda de seus privilégios.

Inúmeras questões que envolvem os direitos humanos estão em debate hoje no país, como o problema e Raposa Serra do Sol e os direitos dos índios no Brasil, a discussão em torno da Lei da Anistia, entre outros. A partir das discussões em torno da revisão da PNDH, como o senhor avalia esses debates e suas resoluções?
Os debates que vêm ocorrendo ultimamente no Brasil, colocando na primeira linha das discussões a questão dos direitos humanos, têm sido muito positivos. Assim, por exemplo, no caso da terra indígena Raposa Serra do Sol a resistência ao reconhecimento dos índios como seres humanos e titulares de direitos acabou despertando a consciência de muitos brasileiros, que perceberam a grande injustiça da invasão das terras indígenas por aventureiros ambiciosos apoiados por políticos sem escrúpulos, sob pretexto de promover o desenvolvimento econômico do Brasil ou de alguma região. Assim, também, outras discussões tendo como fulcro o respeito aos direitos humanos em face de agressões passadas ou atuais vêm tendo um efeito conscientizador. E isso tem propiciado o aumento das exigências de eliminação das discriminações e marginalizações de todas as espécies, colocando a sociedade brasileira no rumo da efetiva universalização dos direitos humanos.

Entrevista originalmente publicada no portal IHU Online, em 18/1/2009

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