A eleição de Barack Obama à presidência dos EUA tem provocado um volume de debates que há muito não se via. Era uma vitória improvável, segundo os analistas mais sensatos. A política, no entanto, não tão raramente, desmonta o aparato da sensatez. Creio que foi Hannah Arendt, autora de quem gosto muito, que disse que só a política é capaz de milagres. A eleição de Obama foi um desses milagres, arte da grande política. Para começar, um presidente negro era algo quase impensável num país em que o racismo encontrava-se tão solidamente instalado. Esse solidamente, no entanto, começa a ser questionado.

A vitória de Obama levanta questões de fundo, de modo especial para a esquerda. Não está em discussão nenhuma mudança de cunho estrutural. O capitalismo não está em causa neste momento, por mais que a crise econômica provoque como está provocando, uma reacomodação de forças em escala planetária. O capitalismo tem sobrevivido a crises de bom tamanho, e não há nada que indique que esta será cavalgada pelas bestas do Apocalipse. Ainda há espaço para a recuperação, com a ajuda sólida do Estado, cujas virtudes sempre são redescobertas nesses momentos.

A crise, no entanto, inegavelmente contribuiu decisivamente para a eleição do primeiro presidente negro dos EUA. O povo americano viu-se mergulhado numa tempestade sob os oito anos da administração George Bush, talvez a pior de sua história, e já que era para mudar preferiu logo o mais radical, descartando inclusive Hillary Clinton. Mais radical, leia-se, para os padrões americanos.

De outro lado, a sangrenta, descabida, injustificável guerra contra o Iraque também contribuiu decisivamente. O povo norte-americano certamente não se esqueceu que, em 2003, Obama não relutou em condenar aquela agressão, e isso num momento em que 75% da população dos EUA eram favoráveis à incursão guerreira. E o candidato democrata, além de tudo, inovou na campanha, mobilizando as massas de uma forma como nunca se vira. Claro que essa vitória, se deixa a direita aturdida, deixa também a esquerda confusa.

A primeira reação política à esquerda é negativa. Nada vai mudar porque o que conta são os interesses dos EUA. Nesse raciocínio, os interesses conservadores seriam tão fortes que não há meio de vencê-los. Resta combatê-lo. E esperar até o dia em que novas condições estruturais se apresentem. É um raciocínio de manual. Lembro-me o quanto Gramsci combatia essa visão esquemática. Não há nenhum grande significado nessa eleição à vista dessa formulação. Tal visão teórica, assentada na visão do dia glorioso da revolução que um dia há de chegar, deixa escapar as singularidades e os movimentos reais, que vão mudando o mundo.

Não há como negar o componente político forte da eleição de Obama. Ela fala por si só. Será que tanto fazia ganhar McCain ou ele? Ou até mesmo cabe a outra pergunta: tanto fazia Hillary e ele? Não. A vitória dele carrega a força simbólica da vitória de um negro, é verdade, mas, para além disso, leva consigo uma perspectiva de mudança. Foi nessa perspectiva seguramente que o povo americano votou. Ignorar isso é, como dizia, deixar escapar a singularidade, é querer pasteurizar a vida política.

Não se pretenda, por inútil, ser Obama um político de esquerda. Ao menos no sentido mais tradicional, não é. Não se queira Obama no lugar de um político que vá contra os interesses dos EUA. Quais seriam, do ponto de vista dele e das forças que o apoiaram, no entanto, os interesses dos EUA? Será que ainda seria favorável aos EUA manter-se indefinidamente no atoleiro iraquiano? Creio que não, embora tudo isso deva ser confirmado politicamente.

Se ele conduzir-se no sentido de sair do Iraque, não será uma posição política melhor para o mundo? Penso que sim. Claro que os defensores da teoria dos manuais poderão argumentar que os EUA só farão isso porque agora a situação mudou, que a agressão já se consumou, que já controlaram o petróleo, e não estarão de todo errados. Só se esquecem que esse será um passo adiante na direção da paz, objetivo caro à esquerda.

Se, de fato, como se promete, ele desativar Guantánamo, teremos um outro passo adiante, e outro passo maior será se ele melhorar as relações com Cuba. Não se acredita em mudanças em relação ao Afeganistão, como não há grande expectativa em relação à América Latina.

Seguramente, porém, não há possibilidade de ele persistir com as políticas aventureiras, belicistas de Bush. Diria que isso, aliás, não depende apenas da boa ou má vontade dele. Ele foi vitorioso porque propôs mudanças, porque desenhou para o povo americano novas perspectivas. E a política, a boa política, cobra dele que siga adiante.

Sabe-se, é evidente, que as expectativas que o cercam são muito maiores do que as reais possibilidades de realizá-las. Depois de dizer tudo o que disse, acrescento que, sob certo aspecto, ele é uma esfinge. Pode surpreender a todos, positivamente, avançando mais do que se espera. O mundo cobra avanço. Mas pode, também, ceder aos fortes interesses econômicos que cercam a Casa Branca, e frustrar os sonhos de mudança.

Certamente, o novo presidente sabe que a governança mundial não depende mais apenas dos EUA. Há outros interlocutores de peso. A crise econômica, que tem seu vértice principal nos EUA, não pode ser enfrentada apenas por ele. Outras nações ocupam papéis importantes. Não há como desconhecer a China, Índia e o próprio Brasil, para além da Europa. Um mundo multipolar está em construção, por maior que seja o poder militar dos EUA. Só o poder militar não resolve. Israel insiste há décadas em derrotar militarmente os palestinos, e não consegue. Tudo dependerá da política, da capacidade de negociação dos diversos interlocutores para o enfrentamento da crise.

Esse enfrentamento hoje, nos países do Sul, passa pelo manutenção do nível de emprego, por evitar que as conseqüências da crise afetem os mais pobres, o que não é uma tarefa fácil. Tudo isso certamente é parte da reflexão de Obama e seus assessores. Vamos aguardar. E torcer para que as políticas que ele venha a adotar signifiquem maior democratização do poder no mundo, ampliação do espaço da paz, diminuição da miséria. Os povos de todo o mundo vão torcer e lutar para que isso ocorra. Pior do que Bush seguramente ele não será.

Dentro dos EUA há o que eu chamaria, na esteira de Gramsci, uma guerra de posição. Há evidentes mudanças na sociedade americana. Cresceu a força dos negros, dos latino-americanos, e cresceu, creio, a consciência democrática, de participação política, e a própria eleição de Obama foi uma demonstração disso. A saída do Vietnã só foi possível quando a sociedade americana se mobilizou. É provável que essa mudança interna também contribua para que Obama avance. Agora é conferir. Com a posse, acabou o treino. Começou o jogo. Obama terá que dizer a que veio.

*Emiliano José é jornalista. É, também, Conselheiro da Fundação Perseu Abramo.
 

Publicado originalmente no website da revista CartaCapital, em 21/01/2009