Retratos do Brasil, segundo Mônica Bergamo (FSP, 18.12.08, Ilustrada): “É O AMOR. Uma empresária da DASLU deu o maior lance no leilão beneficente organizado em prol dos desabrigados de Santa Catarina: ela vai pagar R$ 55 mil por um fim de semana no castelo da LMVH em Cognac, França. ‘Foi um presente para meu marido’, diz a empresária, casada com um grande publicitário. A empresária que organizou o evento tinha arrecadado R$ 80 mil só no leilão. A venda das mesas da festa ainda não tinha sido computada até ontem”.

Artigo do empresário Jorge Gerdau Johannpeter, ‘Crise e Regulação’ (ZH, 30.11.08, p. 32): “A saída para a atual crise econômica mundial passa obrigatoriamente pela adoção de regras mais transparentes e rígidas para os mercados financeiros internacionais. É inaceitável convivermos com um sistema que permite a alavancagem descontrolada de instituições financeiras, por meio da emissão de papéis tóxicos, contaminando o mercado como um todo. Bancos de investimentos e fundos de hedge não podem mais operar sem uma regulação clara que limite o nível de endividamento e a utilização de derivativos para alavancagem. Conseqüentemente é papel dos bancos centrais definir de forma clara as responsabilidades para o emissor dos títulos, assim como o lastro e os riscos existentes, o que se traduz em mais a transparência para o mercado. Caso não implantemos as regras adequadas, continuaremos sofrendo as conseqüências da desordem e da falta de credibilidade e de confiança”.

Há uma crise econômica, detectada nos noticiários todos os dias, com falência de bancos e empresas, estatização de outros bancos e empresas, o Estado intervindo fortemente na economia contra todos os dogmas e crenças neoliberais apregoados por décadas. A crise atinge, sim, os investidores e seus ganhos milionários nas mesas de jogo como se fossem ‘players’ de um cassino irresponsável. Atinge também, e fortemente, trabalhadores de uma vida inteira, que se dedicaram a empresas aparentemente sólidas como a GM, a Ford, a Chrysler ou bancos como o CityBank. Como escreve o economista Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia/2008, ao analisar o que ele chama a Economia Madoff: “A revelação de que Bernard Madoff – brilhante investidor (pelo menos todos pensavam que era), filantropista, pilar da comunidade – era um falsário chocou o mundo”.E Krugman arremata seu artigo dizendo: “O que estamos vendo agora são as conseqüências de um mundo que ficou louco”.

Mas que será que ficou louco apenas porque investidores correram atrás de um ‘gênio’ que oferecia ganhos de um dia para o outro, lucros astronômicos, enriquecimento rápido? Ou, mais louco que isso, é “a forma como quase todas as pessoas importantes perderam a noção de uma crise iminente”, incluídos presidentes famosos de bancos centrais e empresas de avaliação de risco supostamente idôneas?

Ou será também não ficou louco o mundo porque se perdeu a noção de justiça de igualdade e faz-se de uma suposta solidariedade um escárnio ao povo pobre que perdeu vidas, casas, emprego e o pouco que tinha nas enxurradas de Santa Catarina (ou do Rio e de Minas Gerais)? Ou como explicar que alguém pague 55 mil reais ‘de presente para meu marido’ para ficar um fim de semana num castelo chique na França? Como pode alguém dormir tranqüilo quando tantos sofrem? Como pode alguém viajar para a França e ainda se vangloriar em coluna social de ter ‘contribuído’ com os flagelados de Santa Catarina?

A crise é econômica, mas também é moral e ética. Não basta controlar os mercados e o cassino financeiro mundial. É preciso mudar mentes e corações. É preciso construir e viver outros valores. Escreve Merval Pereira, colunista de O Globo: “A década de 80 foi marcada pela desregulamentação do mercado, que produziu novos produtos financeiros e espalhou o lema ‘Greed is good’ – Ganância é bom. Michael Milken e Ivan Boesky, financistas controversos do moderno capitalismo, eram as figuras de proa dessa fase. Milken, criador dos ‘junk bonds’, e Boesky, reinando no setor de fusões e aquisições, acabaram na cadeia, mas por pouco tempo. Estão livres e milionários, mas proibidos de atuar no mercado financeiro”.

Toda crise, seja ela econômica, financeira, social, ou mesmo esteja no plano pessoal ou familiar, desvela o que estava escondido e permite, à luz do sol, desnudar desvios, erros, violências e valores vigentes. Toda crise permite, sob os holofotes da transparência, que se enxerguem os atores e seus atos em toda sua extensão. Assim, toda crise permite expelir, se houver coragem, os corruptos, as ervas daninhas e os espoliadores da riqueza alheia. Na crise o novo pode tornar-se viável, quando antes era visto como impossível, a-histórico ou sem credibilidade.

A irracionalidade econômica do capitalismo neoliberal hoje é visível a olho nu e perceptível aos mais empedernidos. Não há mais como escondê-la ou dela desviar os olhos. Quem pensa diferente, quem quer um outro mundo, uma outra sociedade com outros valores tem a faca e o queijo na mão para destroçar o velho e apontar o futuro. Os da mobilização social e da educação popular não vão deixar passar esta oportunidade de proclamar que ‘um outro mundo é possível’, sim. E de pôr mãos, pés e cabeças na massa e no barro para erguê-lo coletiva e solidariamente, antes que as hidras recomponham suas cabeças para (re)dominar o mundo. O tempo urge (e ruge).

* Selvino Heck é Assessor Especial do Presidente do Brasil

A primeira parte deste ensaio pode ser lida neste link.

Publicado originalmente na Agência Adital, em 28/11/08