No vasto receituário das superstições de réveillon, há quem recomende que, no instante do brinde, apaguemos as feridas e os padecimentos do passado. Ao festejar a virada, o sujeito deve dar adeus às dores que sofreu, deve se desligar de todas elas para sempre. A amnésia se revestiria assim de poder mágico, uma força curativa capaz de selar pactos para o futuro e unificar os estilhaços que o que o tempo transcorrido tratou de despedaçar, às vezes com mentiras, outras vezes com violência. O humano esquece, alguém já disse, e, sob a embriaguez do esquecimento, erguem-se as taças: Feliz ano-novo!

No ainda mais vasto receituário do debate político nacional, há quem recomende a mesma mandinga. É o que se dá com o debate em torno da tortura que foi praticada pelo Estado brasileiro, ou sob sua anuência tácita, durante a fase mais brutal da ditadura militar. "Esqueçamos tudo", apregoam os que acreditam que a felicidade geral é uma dádiva da borracha que apaga a História. Aqui, a superstição vira ideologia ou, mais precisamente, vira uma ideologia canhestra, tão canhestra que não faz jus sequer à superstição em que parece se inspirar. Não é difícil demonstrar por quê.

Voltemos à alegria sincera dos que celebram a passagem de ano. Para estes, o que significa esquecer? Significa algo como "deixar pra lá", como quem se muda de apartamento e larga para trás o que não vai mais usar. Naturalmente, nessa acepção, esquecer pode ser salutar. Às vezes, é até indispensável. O ritual do réveillon, claro, também se beneficia disso. Ele nos ajuda a abandonar os entulhos emocionais que nos atrapalham na caminhada e, assim, revigora os ânimos, como se nos preparasse para colher vitórias logo adiante, a despeito das derrotas passadas. Ou o sujeito se despoja do ressentimento pelo que foi perdido ou não estará pronto para viver o que quer que ele entenda como felicidade no ano que vai nascer: saúde, sorte no amor, dinheiro honesto, sucesso e tudo o mais. Rituais existem para marcar passagens e só faz de fato uma passagem quem consegue descartar o que não é mais essencial.

Acontece que rituais também existem para religar o que foi essencial no passado àquilo que será essencial no futuro e, nessa função, clamam pela lembrança, não pela amnésia. Há episódios que podem ser minimizados, "deixados pra lá", mas há outros que não podem ser esquecidos, ou não haverá sentido em ritual nenhum – seja na história afetiva de uma pessoa, seja na vida política de um país inteiro. Para a Nação brasileira, a tortura é um desses episódios.

Se o Brasil pretende mesmo completar sua transição do período de arbítrio para uma era de liberdade, precisa reabilitar a lembrança do que foi a política de seviciar sistematicamente militantes de esquerda. Se, mesmo quando o corpo já não sente, a memória ainda dói, é porque a ela ainda não foi dado o seu legítimo lugar ao sol. No ritual da passagem da ditadura para a democracia, ainda nos falta isto: lembrar e apurar, com espírito desarmado, o que se passou nesse porão da História em que brasileiros, empregados em postos oficiais, torturaram outros brasileiros – às vezes até a morte. Essa outra passagem, muito mais dolorosa e arrastada, nós ainda não consumamos, e não consumamos porque a insistência no esquecimento forçado tem prevalecido.

Os que insistem em sepultar esse passado, jogando-lhe uma pedra por cima, têm por defesa um artifício retórico de fundo autoritário: o de confundir esquecimento forçado com perdão. Ignoram que o perdão só pode ser autêntico quando voluntário. O perdão supõe a lembrança presente. Em suma, só tem condições de perdoar aquele que não esqueceu. Por isso a memória, agora, é tão fundamental.

Em recente entrevista a Rinaldo Gama, publicada no caderno Aliás, do Estado, o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, sustentou que o debate precisa ser feito, publicamente. O Brasil, afirma o ministro, "pode tomar a posição de querer saber tudo o que aconteceu, quem torturou, para onde foram os corpos, etc., e pode considerar também que todos devam ser perdoados – não é essa a questão". Para ele, não se pode concordar com a ideia de que esse não é um tema a ser trabalhado, "porque aí as instituições ficam muito frágeis".

Vannuchi, que foi preso e torturado nos anos 70, não pede punição nem prega o revanchismo. Clama apenas pelo direito à memória. Fala com serenidade, sem mágoas, com palavras que podem ser lidas como um voto de confiança nas instituições, quase um voto de "feliz democracia" – feliz porque livre de fantasmas obscuros, desses que se fortalecem na escuridão do esquecimento imposto e só se dissipam à luz do dia.

Há de soar estranho, ou de mau gosto, falar assim de tais fantasmas justo no primeiro dia de 2009, mas não é sem propósito. Depois de comemorar o ritual do réveillon, é bom lembrar que, como nação, resta-nos encerrar essa outra travessia, mais longa, mais tortuosa e menos previsível. Olhemos para as árvores de Natal com as luzinhas desligadas. Passada a festa, elas estão à espera de quem venha desmontá-las. Voltarão para dentro de caixas escuras, até que o próximo mês de dezembro as acenda outra vez. E quanto aos talentos que foram apagados na repressão? Seus martírios finais permanecerão encaixotados nos porões? Até quando?

Esclarecer os descaminhos do sofrimento de cada um deles não os trará de volta, é certo, mas fará com que a memória pare de doer tanto e talvez nos ajude dar, para a luz de suas vidas, um lugar mais digno na História. Em paz.

Eugênio Bucci, jornalista, é professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade

Publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 1/01/2009