O Partido Comunista Brasileiro (PCB) é duramente atingido quando do golpe militar de 1964. Todo o aparelho sindical estruturado sob sua hegemonia é desarticulado, os intelectuais ligados ao partido são processados e perseguidos e dirigentes obrigados a se colocar na clandestinidade.

Sábado, 5 de julho de 1975. Sol mortiço. Dia claro, mas nem tanto.

Marighella acordou cedo, como de costume.

 O Partido Comunista Brasileiro (PCB) é duramente atingido quando do golpe militar de 1964. Todo o aparelho sindical estruturado sob sua hegemonia é desarticulado, os intelectuais ligados ao partido são processados e perseguidos e dirigentes obrigados a se colocar na clandestinidade.

Sábado, 5 de julho de 1975. Sol mortiço. Dia claro, mas nem tanto.

Marighella acordou cedo, como de costume.

Operário da indústria petroquímica Paskin, saboreava com gosto a expectativa daquele dia de folga.
Trabalhava de turno, e um dia de folga é uma dádiva.

Disse a Nívea, sua mulher, que iria perambular um pouco e comprar o necessário para o almoço. Andou pelo Comércio, na Cidade Baixa, passou no Mercado Modelo, fez as compras. Voltou para casa ali por volta de 11,30hs. Morava no Loteamento Lanat, 21, bairro do Barbalho, em Salvador, junto com Ivan Pugliesi e a mulher, Kátia, irmã de Marighella. Ivan não estava em casa naquele dia.

Vestiu a bermuda, calçou sandálias, camisa folgada, e passou a arrumar as compras na cozinha. Porque hoje é sábado…pensou…porque hoje é sábado será um dia tranqüilo.

Nívea começou a preparar o almoço.

Batidas vigorosas na porta. Dois homens corpulentos.

– Pois não – diz um amistoso Marighella.

– Somos da Polícia Federal. Sebastião foi preso com drogas e o senhor precisa nos acompanhar para prestar alguns esclarecimentos.

Marighella soube imediatamente o que o esperava. Nada a ver com drogas.

– Preciso trocar de roupa – tirar a bermuda, vestir uma calça, calçar sapatos – disse, educadamente.

– Não, o senhor a partir de agora não fará nada que não seja na nossa frente.

Trocou de roupas na cozinha, sob os olhares atentos dos dois.

Pediu a Nívea que avisasse Ronilda Noblat, notória e dedicada advogada de prisioneiros políticos.
Foi empurrado para dentro de um fusca azul, jogado no banco de trás.

Pode-se afirmar que a ditadura, após 1968, se dedicou prioritariamente – e pelos métodos mais violentos e cruéis, como a tortura, o assassinato e o desaparecimento dos adversários políticos – aos agrupamentos que defendiam a luta armada.

Nívea e Kátia, as duas mulheres da casa, logo que os dois policiais saíram levando Marighella, passaram a persegui-los em outro fusca. Queriam saber para onde o levariam. Marighella não via mais nada. Logo que entrou, foi encapuzado. Os policiais naturalmente perceberam a perseguição. Um deles gritava:

– Vou dar um tiro nessas malucas. Vou atirar. Vou.

Marighella tenso, preocupado. O tira não atirou. Mais treinados, os policiais despistaram as duas. Marighella foi levado para o Quartel do 19º Batalhão de Caçadores (19º BC), no bairro do Cabula.

– Tire toda a roupa – ordenaram.

Deram-lhe um macacão e uma sandália havaiana.

Encapuzado, Marighella aguçou os ouvidos. Uma voz feminina: teve certeza tratar-se de Maria Nazaré Lima, mulher de Sebastião Amaral do Couto, militante como ele do movimento operário, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual ambos pertenciam.

Pelo menos ela estava ali, no 19º BC. Quem mais teria caído? – perguntava-se Marighella, tenso.

A Operação Radar, destinada a aniquilar o PCB, iniciada em 1973, ganhava agora um ritmo acelerado, sob o comando direto do major Carlos Alberto Brilhante Ustra, do DOI-CODI de São Paulo, que veio à Bahia, secundado por Sérgio Paranhos Fleury.

Nessa operação, a ditadura assassinou 20 dirigentes do Partidão, como carinhosamente era chamado o PCB. O maior número de mortes ocorreu sob o governo Geisel. Quando se fala em ditadura assassina, não se trata de qualquer tentação panfletária. Ela matava. Torturava. Fazia desaparecer pessoas. Assassina. Terrorista. Ditadura. Ninguém tem o direito de esquecer disso.

Em 1973, com as principais organizações que defendiam a luta armada já bastante desarticuladas, a ditadura, o DOI-CODI de São Paulo à frente, começa a Operação Radar, destinada a destruir o PCB e que ganha fôlego sob o governo do general Ernesto Geisel.

Nazaré e Marighella foram jogados no fundo de uma Veraneio – as caminhonetes Veraneio eram uma espécie de símbolo da repressão; sempre que víamos uma dava um calafrio na espinha. Eram muito utilizadas pela polícia, inclusive pelos órgãos de repressão às atividades políticas. Marighella estava no fundo da Veraneio. Encapuzado e ensacado. É isso mesmo: ensacado. Foi, vamos dizer assim, acomodado dentro de um saco.

A Veraneio parou no posto da Polícia Rodoviária Federal, na saída de Salvador, já município de Simões Filho. Marighella, pelos diálogos, compreendeu tratar-se de uma operação da qual a Polícia Rodoviária Federal também participava.

Depois de aproximadamente 1 hora e meia de viagem, pararam. Ao descer da Veraneio, Marighella começa a perceber a dimensão das quedas. Havia muitos presos no local.

Sérgio Santana, vereador eleito pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e seu irmão Marcelo Santana, da Ala jovem do MDB; Heitor Casaes e Silva, funcionário da FAO; Luís Contreiras, vice-presidente do Clube de Engenharia da Bahia e veterano, respeitado dirigente do PCB; Sebastião Amaral do Couto, operário da Petroquisa; Marco Antônio Rocha Medeiros, diretor do Clube de Engenharia da Bahia; Ivan Pugliesi, operário da Melanina; Roberto Argolo, chefe do Departamento de Física da Universidade Federal da Bahia; Paulino Vieira, dirigente principal do PCB da Bahia naquele momento; economista Albérico Bouzon; Winston Carvalho, assessor do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem da Bahia (Derba); Ieda Santana, também assessora do Derba e a economista Maria Lúcia de Carvalho, dirigente do Instituto dos Economistas.

Estes e mais Marighella serão condenados a penas que variavam entre 2 anos e meio a cinco anos, em julgamento realizado em 16 de março de 1976. Pelas contas de Marighella, no arrastão da Operação Radar foram presas mais de 300 pessoas na Bahia entre os dias 4 e 10 de julho. E 42 delas foram arroladas como dirigentes e colaboradoras do PCB.

Os presos passaram a chamar o sinistro local onde estavam de Fazendinha. O Exército construía ali o que hoje se chama 2ª Companhia do VI Depósito de Suprimentos, localizada no município de Alagoinhas, a pouco mais de 100 quilômetros de Salvador.

Renzo acompanhou passo a passo, minuto a minuto, todo o julgamento. Começou às 15 horas e se encerrou aos 30 minutos do dia seguinte. E quando a sentença foi lida, tudo se confirmou: foram catorze condenações.

Marighella lembra-se como se fosse hoje.

A área da Fazendinha era toda cercada por um imenso matagal. Havia obras em andamento. Não havia sido concluída qualquer edificação. Logo que chegaram, foram amarrados a uma coluna de concreto. Estavam algemados e a corda passava por entre eles, juntando-os. Na definição de Marighella, uma corda de caranguejos. Dormiram ao relento, sob a mira da metralhadora de um soldado do Exército.

Na lembrança de Marighella, devem ter passado pela Fazendinha uns 30 presos. Foram recebidos com uma preleção dura do major Brilhante Ustra:

– Escutem bem o que vou dizer: vocês estão aqui porque o presidente Geisel resolveu virar a mesa. Os principais corruptos e os comunistas estão todos presos. Esta será a Noite de São Bartolomeu.

Ninguém ali duvidou de Ustra. Ninguém dava um tostão furado pela própria vida. E como sabiam que era o Ustra?. Perguntei isso a Marighella. E aí vem a surpresa. Costumo dizer que os servidores de uma ditadura têm a sensação sempre da impunidade.

Ustra, no 10º dia, depois que todos haviam sido brutalmente espancados, torturados, submetidos a choques elétricos, sempre encapuzados ou usando vendas de borracha, ordenou que fossem retirados os capuzes e as vendas. Queria olho no olho. Que ninguém tivesse dúvida sobre quem comandava aquela operação terrorista. E fez um breve discurso, coisa de comandante de operação, criminoso confesso:

– Estou indo embora. E queria dar um recado pessoal a todos vocês. Eu sei que não vão renunciar à ideologia comunista. Sei disso. Mas eu quero fazer uma advertência: toda vez que vocês voltarem a se organizar, eu voltarei. E voltarei porque o presidente Geisel não aceita o comunismo e nem a corrupção.

Aí, então, souberam quem havia feito a preleção inicial.

Na Casa de Detenção encontravam-se, de acordo com a visão da ditadura, presos que não deveriam ser misturados com os da Lemos Brito. Os militantes do PCB eram partidários da resistência não-armada, diferentemente dos que estavam na Lemos Brito. E não existia uma relação muito próxima entre os dois coletivos.

Eram torturados, sempre sob o comando de Ustra, eventualmente sob a direção de Fleury. Ustra gostava de gritar.

– Você vai falar de qualquer jeito seu comunista filho-da-puta. Vai falar no pau!

Dirigia-se a todos assim, com naturais variações. Gritava, ia ao delírio. Gostava do que fazia. Isso ninguém pode negar. Tinha vocação para a tortura.

O local da tortura era uma área cimentada, aonde jogavam água para potencializar a força dos choques elétricos.

Marighella, como não era dirigente, escapou dos primeiros interrogatórios, mas na terceira noite os torturadores o chamam.

E tome pancada, e tome choque elétrico. Sabiam que Marighella cuidava do Correio Sindical, um informativo do PCB voltado à organização dos trabalhadores. E queriam que ele revelasse os vínculos nacionais. Vendado o tempo todo.

Havia a figura do torturador violento, lembra Marighella, e a do conciliador. E havia, também, sempre, a presença de um médico para avaliar até que ponto o preso agüentava a tortura.

No quinto dia de tortura, os presos foram surpreendidos por uma nova presença: a de Venceslau Oliveira Morais, dirigente nacional do PCB, que começa a aconselhar seus companheiros a delatar. Estava colaborando com a repressão. Luís Contreiras não resiste e cospe na cara dele.

Embora já estivesse com uma costela quebrada em decorrência das torturas sofridas até ali, Ustra, Fleury e outros asseclas massacraram Contreiras por muito tempo em decorrência da reação. A atitude corajosa, quase temerária de Contreiras deu novo ânimo a todos. Não podiam fazer nada contra o massacre a que ele estava sendo submetido, mas aquele exemplo fortaleceu a cada um dos presos.

À sessão do Conselho Penitenciário foram admitidos apenas, além dos conselheiros, os advogados Jaime Guimarães e Ronilda Noblat. E padre Renzo. Começou por volta das 17 horas, terminou às 19 horas e 30 minutos. E com a vitória da tese de Renzo: nove presos receberam o parecer favorável para a liberdade condicional.

Carlos Augusto Marighella é filho de Carlos Marighella, revolucionário assassinado pela ditadura em 1969, em São Paulo. Sobre o pai escrevi um livro – Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar.

Marighella, filho, começou cedo sua militância no PCB. Tinha 27 anos em 1975. E era, então, um dos principais quadros operários do partido no Estado, ao lado de Sebastião Couto e Ivan Pugliesi. Os três, ao lado de Jair de Brito, foram precursores do Sindicato dos Químicos – Sindiquímica – mais tarde unificado como Sindicato do Ramo Químico. Jair de Brito havia fundado a Associação Profissional dos Trabalhadores na Indústria Petroquímica em 1963. Desarticulada com o golpe de 1964, foi paulatinamente sendo reorganizada pelo PCB, e o papel de Marighella nisso foi essencial.

A prisão dos dirigentes e militantes do PCB provocou uma reação muito forte da sociedade baiana. Um manifesto assinado por Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, entre tantos intelectuais, pedia a libertação deles. D. Avelar os visitou quando já estavam no Quartel de Amaralina. Os prisioneiros políticos relataram ao cardeal tudo o que haviam passado. D. Avelar, então disse:

– O presidente Geisel não sabe disso.

O cardeal, sempre solidário com os presos políticos, neste caso estava equivocado.

A denúncia das torturas, feitas especialmente na Auditoria Militar, implicou em mais condenações. Os torturadores, incluindo aí o general Adyr Fiúza de Castro que comandava a VI Região Militar em Salvador, avisaram a todos, especialmente aos dirigentes: se denunciassem torturas, eles dariam um jeito de condenar Ieda Santana, Lúcia Carvalho, Winston Carvalho e Albérico Bouzon, que eram apenas simpatizantes do partido. Apesar dessa ameaça, os presos não cederam e denunciaram as torturas. Os quatro foram presos, julgados e condenados. Assim foi a ditadura. Assim era Ustra.

Torturava e queria o silêncio.

Como não continuar a luta pela punição dos torturadores e assassinos? Essa é a pergunta que não quer calar. Que não pode calar.

Quando os advogados e Renzo chegaram à Detenção, por volta das 21 horas daquele 8 de fevereiro de 1977, para dar a notícia aos presos, a festa foi para Renzo, herói de todos naquela noite. Sem a insistência dele, provavelmente ficariam mais algum tempo presos. Ronilda e Jaime deram a mão à palmatória. O senso de justiça de Renzo falara mais alto.

(os textos em itálico que intercalam o artigo são citações livres de meu livro "As asas invisíveis do padre Renzo", editora Casa Amarela)

*Emiliano José é jornalista e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu abramo
 

Texto originalmente publicado em Carta Capital, em 16/12/2008
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