José de Almeida Amaral Junior: Crise global – domar mercado é bom, mas distribuir renda é fundamental
Crise global: domar mercado é bom, mas distribuir renda é fundamental
José de Almeida Amaral Junior *
Os efeitos do colapso especulativo financeiro já se fazem sentir na economia real, mesmo considerando toda a vultosa mobilização dos bancos centrais pelo mundo afora para acalmar a situação crítica do mimado mercado global (http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=35863). Nos últimos dias dados provenientes da chamada ‘zona do Euro’ e também do Japão denunciam a chegada da recessão, isto é, dois trimestres seguidos com crescimento econômico negativo. A OIT – Organização Internacional do Trabalho estima que até o final de 2009 20 milhões de pessoas perderão seus postos. E em 2007 já havia um estoque de 190 milhões no desvio. No país, o cenário também é influenciado pelo exterior e assim freia os ânimos. As previsões de crescimento estão sendo revistas para baixo. Resultado: a população vai certamente ser atropelada por isso em seu quotidiano. Pagará caro preço pelos danos que não cometeu, enquanto os delinqüentes de colarinho branco permanecem incólumes.
E essa desagradável perspectiva, no caso brasileiro, vai se formando exatamente no momento em que estudos como o apresentado pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – mostram que se a tendência de crescimento vinda desde 2005 for mantida, há esperanças de em três anos o trabalho voltar a ter a mesma condição que havia no inicio dos 90, quando nos abrimos à globalização. A participação do trabalho já chegou a quase 40% da renda nacional total – incorpora também aplicações financeiras e propriedade – e avança lentamente. Em 1990 a renda do trabalho era de 45,4%. Na década de 1950, os ‘anos dourados’, os salários no Brasil representavam 56% do PIB. Mas, caso essa subida seja obstruída, o efeito será um lamentável retrocesso.
A valorização do trabalho, do emprego, tem conseqüências absolutamente favoráveis e estimula uma melhor educação, saúde e construção de projetos pessoais. Permite ao indivíduo sonhar, ter esperanças futuras. Um alívio para a gente sofrida. Somos um país que mal cresceu ao longo de duas décadas e meia, privando o povo de muitos benefícios embora, paralelamente, construísse uma das maiores concentrações de rendas internacionais. Na década de 1980 o Brasil avançou 1,6% enquanto o mundo atingiu os 3,4%. Nos anos 90, da abertura econômica neoliberal, o mundo cresceu em média 3,4% e nós somente 2,7%. A UN-Habitat – Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos em seu relatório anual acaba de apresentar que as cidades brasileiras São Paulo e Brasília são as de maior desigualdade de distribuição de renda no mundo, por conta do desemprego e disparidade nos rendimentos. Os 10% mais ricos do país concentram 75,4% da riqueza (IPEA/2008). E o governo Lula, para enfrentar isso, patina com seu dúbio jogo equilibrista no poder.
A crise seca a liquidez. Some o crédito e o investimento produtivo. Falta dinheiro para fazer a economia girar. E, ainda assim, mesmo com as autoridades federais tendo reduzido os compulsórios bancários e o Comitê de Política Monetária – Copom – não elevado a taxa de juros básica para irrigar o mercado, o sistema financeiro interno continua refratário e inabalável em seus interesses. O serviço de defesa do consumidor, Procon, avaliou as taxas cobradas por dez instituições bancárias em São Paulo e constatou que os juros para operações de empréstimos pessoais e a taxa do cheque especial tiveram a maior alta nos últimos cinco anos. Uma óbvia afronta. Em conseqüência dessa postura financeira doméstica temos como resultado os cinco grandes bancos brasileiros posicionando-se entre as 20 instituições financeiras mais lucrativas do continente americano, de acordo com a consultoria Economática. E a fusão entre Itaú e Unibanco os coloca na lista dos 20 maiores bancos do mundo. E não é só. Somos um paraíso dos especuladores. A própria taxa básica praticada pelo governo, posicionada em 13,75% ao ano, é das mais elevadas de todo o planeta. De acordo com o IPEA, o gasto do governo com o pagamento dos juros da dívida, entre 2000 e 2007, representou um total de R$ 1,2 trilhão. Grande sangria dos cofres públicos. Porém, no mesmo período, os recursos aplicados em educação e saúde juntos, investimentos diretos e indiretos somados, resultaram em meros R$ 554,6 bilhões. Isto é democrático? São ideais progressistas? É sim um claro estímulo prático à permanência da especulação e da alta concentração de renda ao mesmo tempo em que se desprezam as demandas sociais e a própria vitalidade da ‘economia real’.
Tal problemática remete a um artigo recentemente publicado pela Agência Carta Maior lembrando a reflexão de um ex-presidente do banco central dos EUA, M.S. Eccles, sobre a histórica crise de 1929 e a depressão. Ele afirma: “se a riqueza nacional tivesse sido melhor repartida, se as empresas se tivessem contentado com lucros menos elevados, se as classes mais ricas tivessem auferido rendimentos mais baixos e os agregados familiares mais modestos remunerações mais elevadas, a estabilidade da nossa economia teria sido maior.” Mais adiante ele diz “se, por exemplo, os seis bilhões de dólares investidos pelas empresas e pelas grandes fortunas na especulação bolsista tivessem sido aplicados numa política de redistribuição baseada na descida dos preços ou em aumentos salariais, com a conseqüente diminuição dos lucros das empresas e dos mais ricos, teria sido possível impedir ou pelo menos atenuar, em grande medida, o colapso econômico desencadeado em 1929”. Ou seja, a ganância desenfreada é um vício e sua alucinação precisa ser contida pelo bem estar comum. Não esquecendo um pequeno detalhe: a crise de 29 e a grande depressão que se seguiu a ela foram resolvidas efetivamente somente com a II Guerra.
Outra opinião a ser considerada é a do premio Nobel da Paz 2006, o bengalês Muhammad Yunus. Visitando a capital paulista semana passada afirmou ao jornal Folha de S. Paulo que a crise aconteceu porque “o sistema financeiro criou castelos de areia. Ficou longe da realidade. [Quando] o sistema financeiro quebra, os ricos perdem muito dinheiro. Mas há ainda muita sobra. Já os pobres, se perdem seus empregos com a economia em desaceleração, sofrem com o colapso. […] Há um grande buraco no sistema, que é baseado numa visão muito estreita da humanidade. Foi por isso que nós criamos esta crise tremenda. Nós usamos o mercado como um cassino de apostas.” Para o professor de economia e ‘pai do microcrédito’ – ação que começou a desenvolver após criar o Grameen Bank, em 1983, emprestando dinheiro com juros reduzidos para gente sem posses – o sistema bancário precisa incluir os mais pobres entre seus clientes. E, no seu entender, esta crise é uma oportunidade para rever o sistema. Mais que isso: “apontar os seus culpados”, segundo disse à Agencia Estado. Yunus não é um socialista. Acredita que o capitalismo pode ser aperfeiçoado porque é ainda incompleto e desequilibrado. Precisa, sobretudo, ampliar seus benefícios aos desfavorecidos. Estes necessitam, a seu ver, de programas como Bolsa Família e afins. Contudo, o assistencialismo não pode se tornar algo permanente. O necessário é qualificar o indivíduo, dar-lhe autonomia.
Criar um novo capitalismo, menos predatório e concentrador é um sério problema de concepção estrutural já que ele é nutrido, se reproduz, pela exploração, pela competição, pelo acúmulo de valores. Todavia, esta crise, minimamente, precisa resultar numa paliativa maior presença dos estados regulando o sistema financeiro. Um reordenado ‘Bretton Woods’, acordo que na primeira metade dos anos 40 foi alinhavado entre as potências e deu as bases para o sistema vigente que ruiu. O fato é que não é possível se satisfazer com o que temos hoje, este sistema maligno, sem freios, que favorece excessivamente a especulação, o rentismo de uma minoria contra a valorização do trabalho e a dignidade da grande massa humana. Documento publicado pela OIT explica que as crises no setor bancário foram 10 vezes mais freqüentes nos anos 90 do que no final dos anos 70. E “o desemprego deve aumentar em conseqüência da queda no investimento e isso pode intensificar ainda mais as desigualdades de renda”, afirma o texto. A luxúria do mercado financeiro não pode sobrepujar-se aos interesses gerais.
É verdade que agora se reuniram para debater o assunto um ampliado grupo de países economicamente mais fortes, apelidado G-22, incluindo o Brasil entre outros emergentes. Muitos vêem nele um avanço em relação ao G-7 – EUA, Japão, Alemanha, Inglaterra, França, Canadá e Itália – que, após seus encontros, meramente notificava as demais nações de suas decisões. Contudo, antes de nutrir esperanças vãs por uma pretensa lógica mais decente é preciso observar atentamente o fato. Seguinte: os participantes assinaram documento de intenções onde pode ser lido “nosso trabalho será guiado por uma crença compartilhada de que os princípios de mercado, abertura comercial e de regimes de investimento e mercados financeiros eficazmente regulados estimulam o dinamismo, a inovação e o espírito empreendedor, essenciais para o crescimento econômico, o emprego e a redução da pobreza”. Isto é, ainda, uma ode a favor do liberalismo. É a resposta na prática para aqueles que cogitavam testemunhar o coma capitalista. O perigo, na verdade, é exatamente a possibilidade de, quando baixar a poeira dos escombros, retornar o velho esquema do cassino virtual globalizado e suas ‘bolhas financeiras’.
Não se pode baixar a guarda. É hora de reforçar a regulação do mercado, bem como distribuir melhor a riqueza. É justa a renda dos 1.125 bilionários (US$ 4,4 trilhões) superar os valores recebidos somados de metade da população adulta do planeta? Ou os rendimentos da rede Wal-Mart baterem em 2007 o PNB da Grécia assim como os da Toyota superarem o da Venezuela (Lungaretti/Adital – http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=36034)? Há muitos absurdos profundos sendo tolerados. Temos que aproveitar o momento para propormos importantes mudanças políticas, alternativas que visem o interesse, a participação coletiva e a sustentabilidade da natureza, o equilíbrio do planeta que está clamando por isso. Pesquisadores afirmam que seriam necessários pelo menos cinco Terras para sustentar um padrão de consumo igual ao existente hoje nos EUA (dados New Economics Foundation). Exageros e desperdícios de recursos. Devemos purgar as coisas ruins e ampliar benefícios. Lembrando François Houtart, sociólogo belga em palestra na ONU (http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=35870), pelas palavras de Leonardo Boff “se não buscarmos uma alternativa ao atual paradigma econômico em quinze anos 20% a 30% das espécies vivas poderão desaparecer e nos meados do século haverá cerca de 150 a 200 milhões de refugiados climáticos”. Não podemos assistir a tudo isso passivamente, sem tirarmos lições que nos conduzam a alguma virtude. Errar é humano, mas insistir é insanidade.
* José de Almeida Amaral Junior é professor universitário em Ciências Sociais. Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação