Entrevista: Dércio Munhoz quebra silêncio sobre males do capital especulativo

A crise econômica mundial seria o momento ideal para a discussão do modelo econômico atual que privilegia o capital financeiro e penaliza o trabalhador. Junto com o trabalhador, massacrado pelo sistema capitalista, existe outra categoria que vem sendo calada. A dos economistas que discordam da política monetarista existente no mundo e que é reproduzida no Brasil. O professor Dércio Garcia Munhoz, professor aposentado de Economia da Universidade de Brasília (UnB), faz parte desse grupo.

No Brasil, esse modelo foi consagrado com o Plano Real que acabou com qualquer política de correção salarial e o governo abandonou os trabalhadores para discutir reajuste salarial. Na opinião de Munhoz, o Plano Real produziu uma carnificina, reduzindo brutalmente a participação do trabalho na formação da renda. “Esse é o capitalismo que a gente precisa discutir”, afirma.

Com esse modelo, as empresas não passaram a ganhar mais. Elas ganham com o surgimento de uma figura nova que é o capital de curto prazo – predatório – uma massa de recursos que não financia a produção e nem está vinculado a ela, está se reproduzindo a partir do nada. “Essa é questão que está de pé independente da evolução da crise. Grande grupos vendendo e comprando e fazendo ganhos em cima dos títulos públicos brasileiros”, afirma Munhoz.

Munhoz diz que esse modelo de capitalismo envolve muitos interesses. “Na economia real, você produz um bem em que o valor é repartido para remunerar o capital, o trabalho, os impostos, os juros dos bancos pela distribuição e comercialização, mas nesse caso (da especulação financeira), ele não sai da base real – a produção mundial não tem nada a ver com ele (capital especulativo). Conclusão é que essa massa de recursos se multiplica com a taxa imoral de juros, mas não tem base na economia real.”

“Aqui no Brasil você vê as universidades massacrando, reduzindo os espaços dos que querem discutir a economia real, e calando vozes”, denuncia. Segundo ele, “não se discute a perversidade do modelo do capitalismo financeiro no mundo porque não interessa aos formuladores da economia, que são também formadores de opinião, porque só eles tem acesso aos jornais e veículos de comunicação.”

Carimbo do PAC

Mesmo depois de encerrada a entrevista, ele se alonga no assunto e, já na despedida, lembra que os desdobramentos da crise vão influenciar na sucessão presidencial. Faz críticas ao ex-ministro, Antônio Palloci, a quem define também como defensor da política monetarista, e elogia a condução da ministra Dilma Roussef na implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Mas não deixa de dar uma alfinetada, dizendo que o PAC é mais um carimbo, “porque todo empréstimo da Caixa Econômica recebe o carimbo do PAC”, afirma.

Para o professor Dércio, a atuação do Congresso Nacional diante da crise é decepcionante. Ele diz que seria o momento para que os políticos discutissem as questões de fundo da política macroecônomica no Brasil. Segundo ele, os políticos não o fazem porque “a oposição criou o monstro e o governo está alimentando-o”.

Mudar devagarinho

Embora considere “o pior dos mundos em termos de perspectivas, porque não tem quem segure o touro pelo chifre (a crise)”, o professor Munhoz diz que existe saída e que para isso não é preciso “brigar com todo mundo”. Ele diz que é possível mudar devagarinho, com a articulação do governo com os empresários do setor produtivo, para sair da dependência do capital especulativo, substituindo as fontes de investimentos por empréstimos bancários de longo prazo.

A solução, segundo ele, seria a criação de um grande programa de investimentos em estrutura urbana, aos moldes do PAC, embora não faça referência direta ao programa do governo Lula. O Programa iria valorizar o trabalho, criar o emprego e manter a demanda.

Outra solução é reduzir os gastos do governo, mas os gastos financeiros. Segundo Munhoz, “os gastos públicos estão crescendo em uma taxa inferior à receita e eles (a oposição) querem reduzir os gastos, mas tem que ser os gastos financeiros. E nesses, ninguém fala.”

Perda dos trabalhadores

O professor Munhoz não tem dúvidas de que os efeitos da crise se abaterão sobre os trabalhadores. “Agora se está em um momento clássico da política cínica”, diz, acrescentando que “em precisava da crise externa porque teria uma crise interna porque a política de juros altos enfraquece o trabalho. Ele afirma que esse “é um mecanismo perverso em que o trabalhador é encaminhado como gado para abate.”

A saída é reduzir impostos, mas são eles que pagam os juros altos dos títulos públicos. Também não é possível reduzir os juros porque são eles que atraem os dólares que são precisos para o superávit primário.

Segundo o professor Munhoz, a sobra de dólares do capital especulativo no Brasil – que entra e sai – é de 45 milhões de dólares, mas a reprodução desses capitais em ações e títulos chega a 500 bilhões.

Ele lembra ainda, na defesa da redução da carga tributária, que os impostos são pagos pelos trabalhadores. O aumento da carga tributária não é para a empresa, que tem incentivos, diz Munhoz, lembrando que o governo fez um renúncia fiscal de 100 milhões de reais. Os tributos reduzem a renda do trabalhador, porque, na economia real, o governo só vê a empresa, e não o emprego e a renda do trabalhador.

Cinismo dos monetaristas

Para o professor Munhoz, não existia antes e nem existe agora nada que justifique a elevação da taxa de juros. “Antes era para evitar excesso de demanda para evitar inflação”, lembra ele, ao mesmo tempo em que enfatiza que nunca viu inflação de excesso de demanda. O aumento da taxa de juros existe porque beneficia os especuladores e prejudica os trabalhadores simultaneamente.

O professor Munhoz explica a lógica que prevalece na política monetarista: eles aumentam os juros, que produz aumento dos custos e a inflação sobe e ai eles dizem que a inflação está pressionando e precisa de mais juros, alimentando inflação, mas tudo isso não é feito inocentemente, porque aumentar inflação assim, os salários não acompanham, o que enfraquece o trabalhador em seu poder de compra.

Nesse ponto, ele mantém a calma com que pontua suas falas, mas não poupa críticas aos monetaristas: “Monetarismo é uma farsa, não é teoria científica, ele não são sábios, são cínicos. A Nação pagou para formar esse pessoal e eles usam esse argumento pseudo-científica e aplicam um troço simples: eles vão puxando juros, para enfraquecer e economia, a inflação vai subindo e os salários vão para o vermelho, criando inflação sem aumento de custo salarial.”

Aliança com o capital

O professor Munhoz, com seus 74 anos, viveu a época da crise do petróleo e toda a alteração surgida, nos últimos 30 anos, no sistema capitalista, que produziu a crise atual. E explica didaticamente como a economia se desenvolveu nesse período.

Segundo ele, “o componente que estava criando a ilusão de crescimento com distribuição de renda, que não havia, era a Bolsa e a especulação financeira”, embora faça ressalva a importância do efeito social do programa Bolsa-Família. E vai buscar as raízes do problema no governo Collor, quando abriu o País para o capital especulativo, removendo todas as restrições. “A primeira coisa que se fez em 1993 foi a jogada especulativa na Bolsa de Nova Iorque, ganhando 100% de lucro em dólares.”

Com FHC, o financiamento do desequilíbrio externo decorrente das exportações para segurar artificialmente os preços foi feito com capital especulativo de curto prazo. Ele diz que parte desse financiamento foi feito com a “estúpida privatização”, que encareceu todos os cursos internamente e não trouxe aumento de eficiência, mas a grande massa foi de capital especulativo, que ganha no câmbio ou na Bolsa.

No governo Lula, foram mantidas todas as regras que transformariam ainda mais o Brasil no grande centro de especulação financeira mundial. “O capital de curto prazo no ano de 2007 foi maior do que todo o capital de curto prazo nos oito anos do governo anterior, fazendo crescer o castelo de cartas”, diz Munhoz, acusando o governo de “absoluta falta de coerência da política financeira”.

E explica o porquê: “os dólares entram no País com isenções fiscais, jogando as taxas de câmbio para baixo, o que segurava a inflação artificialmente, prejudicando as exportações e aumentando as importações, ou seja a gente exportava empregos.”

Momento frágil

“Diante de uma crise mundial, nós estamos num momento frágil, mas recebemos grande apoio internacional e da mídia, porque uma aliança com Davos (Fórum Mundial de Economia) é uma aliança que dá manchete nos maiores jornais do mundo”, critica, lembrando que o governo brasileiro mantém aliança com o capital financeiro, esse capital predatório com que eles estão ganhando rios de dinheiro.”

O professor Munhoz despeja todas as críticas no Banco Central. “Pela primeira vez no Brasil quem comanda a política econômica brasileira é o Banco Central e não o Ministério da Fazenda. Não temos formulação macroeconômica na área do Executivo, que cedeu ao Banco Central autonomia absoluta, numa subversão total das coisas”, afirma, citando o caso do presidente do BC, Henrique Meirelles ter dito em entrevista que a política fiscal está nas atas do Copom (Comitê de Política Monetária).

“Esse é o tipo de modelo de administração que permite que o Banco Central ponha os juros lá em cima, o que trouxe horrores de despesas para o governo”, destaca Munhoz, afirmando que esse modelo traz aplausos generalizados da grande imprensa, porque faz parte da grande aliança do governo com o capital financeiro.

(Por Márcia Xavier, de Brasília)

Originalmente publicado em Vermelho.org, em 20/11/2008