Brasil está assumindo mais sua negritude, aponta IPEA
Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta “escurecimento da população brasileira” nos últimos dez anos. Segundo o instituto, o que ocorre não é que o Brasil esteja se tornando uma nação de negros, mas está se assumindo como tal. As pessoas, revela a pesquisa, passaram a ter menos vergonha de se identificar como negras e deixam de se “branquear” para se legitimar socialmente.
Um estudo divulgado nesta quinta-feira (20) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela o fenômeno de “escurecimento da população brasileira” nos últimos dez anos. Mas a pesquisa indica que mudanças na maneira de pensar das pessoas – e não elementos de cunho demográfico – são responsáveis pela quase totalidade da mudança. Segundo o Ipea, o que ocorre, na verdade, não é que o Brasil esteja se tornando uma nação de negros, mas está se assumindo como tal.
De acordo com a publicação Desigualdades Raciais, Racismo e Políticas Públicas 120 anos após a Abolição, até o início dos anos 90, a população negra vinha aumentando de modo “relativamente lento e vegetativo”, por meio de uma taxa de fecundidade um pouco mais alta para pretos e pardos – além do fato de que descendentes de casais de negros e brancos terem maior probabilidade de ter filhos pardos.
Já em algum momento entre 1996 e 2001 começa um processo de mudança na maneira como os brasileiros se vêem. Durante o período, segundo o Ipea, as pessoas passam a ter menos vergonha de se identificar como negras e deixam de se “branquear” para se legitimar socialmente. “Essa mudança é um processo surpreendentemente linear, surpreendentemente claro e, ao que tudo indica, ainda não terminou”, diz a pesquisa.
O estudo indica que a mudança se deve, em grande parte, à influência do movimento negro. “À medida que o debate da identificação racial ganha as páginas dos jornais e a sociedade vê que é um tema legítimo; que negros são apresentados nas telenovelas como personagens poderosos e não apenas empregados domésticos; são vistos compondo o Supremo Tribunal Federal (STF) e ocupando os mais diversos cargos na política; que o movimento negro sai da marginalidade e ocupa espaços no debate político, a identidade negra sai fortalecida.”
Aumenta número de pessoas que se declaram negras
A evolução no percentual de pessoas que se declaram pretas e pardas demonstra um aumento também na auto-estima desse segmento da população. É o que defende o antropólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB), José Jorge de Carvalho.
Segundo números do Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil, 2007-2008, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre 1995 e 2006, o peso relativo da população auto-declarada parda ou preta subiu de 45% para 49,5% da população total. De acordo com o relatório, isso pode sinalizar que os negros cheguem a ser maioria nos próximos anos.
Já os brancos deixaram de ser a maioria absoluta, fato que havia sido registrado pela última vez no censo de 1890, que registrava um percentual de brancos de 35%. Já no período de 1995 a 2006, o índice de pessoas que se dizem brancas caiu de 55,4% para 49,7%.
Para Carvalho, a mudança tanto nos números quanto na auto-estima de pretos e pardos se dá por uma série de fatores. O principal, na opinião do professor, é o aumento do debate sobre a questão racial no Brasil e a adoção de políticas públicas de valorização desse segmento.
Isso se deu, segundo ele, a partir da virada do milênio, particularmente depois da Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, realizada em 2001, em Durban, na África do Sul. “Mexeu de alguma maneira com as relações raciais no Brasil, porque o Brasil foi obrigado, o Estado, a apresentar o quadro da situação racial brasileira”, explica.
Além disso, a partir dali, os militantes negros começaram a atuar com maior motivação em defesa de ações afirmativas, assunto que também foi muito coberto pela mídia, ainda que muitos veículos tenham se posicionado contrários a ações como as cotas raciais nas universidades.
“Só que no processo de falar que são contra, eles acabaram falando do assunto. Ao dizer que é contra as cotas, elas são colocadas dentro do campo do possível, de uma política pública que está em discussão e isso, de certa forma, para a juventude negra, que está lutando para entrar no mercado de trabalho, está pautando isso, organizando mais do que nunca o movimento de estudantes negros, o movimento social negro está muito mais intenso no Brasil”, afirma José Jorge.
O antropólogo explica que, com essa maior discussão, o movimento negro passa a ter uma pauta de reivindicações organizada, especialmente a juventude. “Então ser negro, pela primeira vez depois de mais de um século de República, em que os negros foram massacrados, é também colocar-se como sujeito de direitos, isso mexe com a auto-estima”.
Um outro fator que tem contribuído é o surgimento de personalidades negras em diversos setores da sociedade, que passam uma mensagem de que é possível se ter um horizonte mais largo do que o que se tinha no passado.
“O que eu posso ser? Tudo o que eu tô vendo a vida toda é que eu fui escravo, agora eu posso ser algo diferente, talvez eu possa ser um presidente, um ministro do STF [Supremo Tribunal Federal], um Hamilton, corredor da Fórmula 1, então essa auto-estima dessa população negra, à medida que você tem outros reflexos, você consegue se enxergar, também melhora”, exemplifica a estudante de história na UnB Luiana Maia, referindo-se a Barack Obama, recém-eleito presidente dos Estados Unidos; a Joaquim Barbosa, ministro do STF, e a Louis Hamilton, campeão mundial de Fórmula 1.
Apesar de concordar também que em alguns setores da mídia o negro está sendo mais valorizado, ocupando espaços importantes, José Jorge de Carvalho ressalta que ainda há muito racismo nos setores que produzem entretenimento. Para ele, a mídia brasileira ainda está entre as mais racistas do mundo.
“Ela é escandalosa, pode até aparecer um pouco mais de pessoas negras nos programas, mas ela é de um racismo muito grosseiro, grotesco, precisa de muito trabalho”, critica.
(Por Paula Laboissière e Ana Luiza Zenker)