Michael Krätke: Crise e catarse – o pior ainda está por vir
Nova York dispõe de uma nova atração para turistas: pode-se contratar um passeio organizado pelos “pânicos e desabamentos de Wall Street” que te leva a visitar os lugares onde aconteceram as mega-quebras e nos quais os bons conhecedores do que se urdia nos bastidores contam histórias de arrepiar os cabelos sobre as manobras financeiras mais aventureiras. Tudo organizado por uma astuta senhorita que há até quatro dias ainda tinha um posto de trabalho muito bem remunerado no Morgan Stanley. Os meninos e meninas de Wall Street seguem sabendo como fazer negócios com a crise. Análise de Michael Krätke, do Sinpermiso.
Nova York dispõe de uma nova atração para turistas: pode-se contratar um passeio organizado pelos “pânicos e desabamentos de Wall Street” que te leva a visitar os lugares onde aconteceram as mega-quebras e nos quais os bons conhecedores do que se urdia nos bastidores contam histórias de arrepiar os cabelos sobre as manobras financeiras mais aventureiras. Tudo organizado por uma astuta senhorita que há até quatro dias ainda tinha um posto de trabalho muito bem remunerado no Morgan Stanley. Os meninos e meninas de Wall Street seguem sabendo como fazer negócios com a crise. Análise de Michael Krätke, do Sinpermiso.
Em troca, os grandes do mundo financeiro, que não têm preocupações com o próprio posto de trabalho, perderam pouco mais que o direito a falar. Alan Greenspan proclama no Congresso sua sensação de “estupefação e incredulidade” diante da dimensão de um desastre que ele e os seus contribuíram para organizar. O tom menor impera nos círculos internos de célebres think tanks que agora, desgraçadamente, dizem não ter a menor idéia do que está por vir e do que nos espera. Inclusive o grande estadista Joschka Fischer, máscara de proa da ex-esquerda que se ajoelhou rasteiramente ante a suposta onipotência dos mercados financeiros, parece ter feito uma trégua em sua habitual emissão ininterrupta de disparates. “Karl Marx estava certo”, pergunta o Times a seus leitores. Claro que sim, respondem 48%.
O pior está por vir
O desastre está muito longe de ter sido superado; o pior está por vir. O que estamos assistindo é a primeira crise financeira mundial de verdade, uma crise que abarca simultaneamente a todos os países e a todos os mercados financeiros do mundo, a uma crise na qual as quedas de bolsas e bancos em uma região do planeta trazem consigo quase imediatamente quedas de bolsas e bancos em outras regiões.
A dinâmica interna deste crack é ineditamente furiosa e pode ser descrita do modo que segue: as bolhas especulativas estouraram, a riqueza fictícia se evapora, mercê à queda dos preços imobiliários e do curso das ações; só restam as dívidas. Nos Estados Unidos, na Inglaterra e em muitos outros países, os orçamentos das famílias estão super-endividados para além de toda esperança, e não apenas em uma pequena parte por causa de salários reais estancados ou em retrocesso. Quando os devedores vão caindo um depois do outro, os bancos fraquejam. Por conseguinte, fraquejam também as transnacionais que, como General Motors, Ford ou Enron, são elas mesmas, de fato e desde há muito, bancos, ou seja, casas proprietárias e comerciantes de títulos de valores que, entre outras coisas, vendem também automóveis ou eletricidade.
Somente na “indústria financeira” norte-americana desapareceram, em um ano, pelo menos 150 mil postos de trabalho, número que deve ser acrescido de mais algumas dezenas de milhares. Essas perdas já permitem fazer uma idéia do que nos aguarda quando a crise abarcar o conjunto da economia “real”, quando as indústrias de alta tecnologia no mercado mundial começarem a sentir as conseqüências da queda na construção e no setor automobilístico.
Os bancos centrais e os governos de todo o mundo já gastaram mais de 7 trilhões de dólares em ações de resgate. E, também aqui, o que vemos ainda é só o início. Até agora, apenas apareceu a metade das perdas reais. Uma boa parte da crise segue escondida nos livros dos bancos, das seguradoras e dos fundos. Já se adverte para o túrgido inchaço das próximas bolhas financeiras.
A crise das empresas de cartão de crédito, a crise das financeiras automobilísticas e das seguradoras de crédito apenas pode seguir sendo contida, o que prepara o seguinte resultado: a concentração do capital financeiro avança com botas de sete léguas. Dos mais de 8.500 bancos oficialmente registrados hoje nos EUA e dos cerca de 8.000 que há na Europa, muitos não passarão do ano de 2009. A nacionalização, a fusão, a transferência de controle com ajuda estatal se manterão como última tábua de salvação. Uma parte da economia na sombra e do sistema bancários na sombra – muitíssimo maiores e mais perigosos que a economia informal no mercado negro – cairá também, vítima da crise. As bolsas mundiais mudam à velocidade do raio em corporações transnacionais.
Os lobbies soam estrondosamente seus tambores
O mundo inteiro defende agora a regulação e o Estado como um salvador de emergência. Apressadamente, mobilizam-se centenas de bilhões de dólares para salvar Wall Street e o sistema bancário europeu da catástrofe. A dívida pública e o crédito dos bancos centrais são as últimas tábuas de salvação da economia capitalista mundial. Países como Islândia ou Hungria, bancos como Bear Sterns ou Northern Rock, seguradoras como a AIG, podem manter-se, assim, acima d’água. Mas não o conjunto da economia mundial. Nem o G20 nem o FMI estão em condições de sustentar uma crise econômica mundial. Nem sequer quando, como na atual situação de extrema emergência, se esvaem dogmas até então defendidos cegamente. Pudemos ver quando o FMI serviu-se de seus enormes fundos para dar, pela primeira vez, créditos sem exigir de seus clientes o cumprimento das habituais receitas neoliberais. Ou quando o Banco Central europeu deixou no caminho, pela primeira vez, a larga sombra de seu dogma monetarista e rebaixa as taxas de juros.
Temos não uma, mas várias crises nos cercando: uma crise financeira, uma crise da economia real – ou seja, uma clássica crise de superprodução e superacumulação -, uma crise do comércio mundial, uma crise mundial agrícola e alimentar, e uma crise ecológica que restringe decisivamente a margem de manobra de qualquer possível política de crise. Uma crise sistêmica do capitalismo tal como o conhecíamos e, simultaneamente, uma crise de legitimação do melhor dos mundos possíveis. Em tais circunstâncias, as mensagens salvadoras emitidas pela religião neoliberal cotidiana não soam tão briosas como antes. O neoliberalismo “foi”, como disse Joseph Stiglitz, o enfant terrible do establishment.
Assim, os aparatos de propaganda voam agora às alturas, como se a revolução socialista mundial estivesse golpeando a porta. Os lobbies da economia financeira batem tambores a favor da manutenção de mercados financeiros “livres”, fazem loas à especulação e aos derivativos, predicam a “auto-regulação” organizada mas voluntária e lançam augúrios sombrios sobre os iminentes perigos de uma “super-regulação”. Os mesmos lobbies que até alguns dias sufragavam campanhas de comunicação multimilionárias a favor de liberar de todo controle e regulação o comércio de derivados creditícios nos EUA.
Acreditar que a hegemonia neoliberal é coisa do passado, que o capitalismo desaparecerá de cena sem dar um pio por culpa de uns sujeitos especialmente obtusos, é, para dizer o mínimo, precipitado. Durante e depois do estouro da bolha ponto.com foram os contadores e os executivos, hoje são as agências avaliadoras de risco e os executivos os bodes expiatórios. Em caso de necessidade, o sangue das ovelhas negras há de jorrar aos borbotões para a purificação do honesto lobo. Suprimem-se bonificações, limitam-se remunerações, demitem-se executivos: são necessários sacrifícios para que um sistema econômico disparatado sobreviva e siga gerando perdedores.
O setor público crescerá
A social-democracia se tranqüiliza por ora com a idéia de que os culpados da grande desordem são a pouca regulação e o falta de regulação dos mercados. Para pessoas de frouxos talentos e nervos mais frouxos ainda não é um mau consolo, uma vez que a saída da crise parece então de fácil prescrição: com uma nova regulação e novas instâncias de controle em um renovado “enquadramento” dos mercados, sairemos do vale de lágrimas.
No pior dos casos, teríamos que atravessar uma década de estancamento ou um pouco mais. Ou seja, a solução “japonesa” para a crise imobiliária e bancária, desta vez em escala planetária. Essa solução não pode funcionar, porque não podemos esperar dez anos até que os bancos se recobrem das perdas e até que os loucamente superdimensionados títulos de obrigações em mãos dos proprietários de capitais e de patrimônios – que representam hoje uma quarta parte do produto social mundial – fiquem rebaixados a um “nível normal” (de todas as maneiras, irreal).
O que precisamos é de uma reedição do New Deal, um novo Bretton Woods, uma nova ordem econômica e financeira mundial. Mas essas coisas não podem ser feitas tão facilmente sem os EUA, muito menos contra os EUA. É verdade que Wall Street está gravemente ferida, mas seu poder político está tão pouco fragilizado como o da City de Londres.
Que aspecto terá o sistema capitalista mundial após esta grande crise? Os EUA, nação mais endividada do planeta, não sobreviverão como superpotência financeira. O regime do dólar, que depende completamente do crédito público estadunidense, acabou. O euro herdará seu lugar como moeda mundial em muitos mercados mundiais (como a City de Londres herdará o lugar de Wall Street). O capitalismo financeiro de estilo norte-americano será substituído por outra variante, ora de caráter europeu, ora de marca asiática. Os países emergentes se livrarão definitivamente de sua dependência em relação aos EUA. Mercados financeiros e especuladores internacionais seguirão existindo, mas a indiscutível dominação dos mercados financeiros terminará. Que o capitalismo possa assim rejuvenescer em um sentido verde, é uma questão completamente aberta.
O que será absolutamente decisivo é a capacidade de utilizar politicamente o momentâneo final do neoliberalismo. Posto que, para milhões de seres humanos a sobrevivência cotidiana sob o capitalismo resultará ainda mais difícil que agora, poderia crescer o setor das economias alternativas, solidárias, autogestionadas. Posto que o Estado fica agora muito em evidência com seu trabalho de resgate dos bancos, presumivelmente diminuirá a entrega de bens públicos para o melhor concorrente privado. O setor público voltará a crescer e isso aponta para algo que vai mais além do capitalismo.
Michael Krätke é membro do conselho editorial de Sinpermiso, é professor de política econômica e direito tributário da Universidade de Amsterdan e pesquisador associado ao Instituto Internacional de História Social dessa mesma cidade.
(Tradução: Katarina Peixoto)