Henrique Meirelles, no Banco Central, é o parceiro sinistro de Lula no seu governo. Sinistro porque avesso à luz do sol, sempre oculto nas sombras do sigilo próprio dos banqueiros, e também porque é poderoso e temível, tem os controles que propiciam ganhos ou perdas substanciais, e tem ainda projetos pessoais de grande alcance que não são conhecidos. Sabe-se apenas que, tendo dominado bem os mecanismos do sistema financeiro intemacional, ficou milionário e decidiu fazer política no Brasil (seguindo o velho trinômio "saber, dinheiro e poder"). Começou com êxito, comprando muito bem um mandato de deputado federal por Goiás: diz-se que agora quer ser governador em 2010 e presidente da República em 2014 (!).

Parceiro de Lula porque ele é o contraponto que emergiu da decisiva negociação política que permitiu ao governo o cumprimento dos seus compromissos públicos fundamentais, com a restauração do Estado e com a politica de redistribuição de renda no Brasil.

Lula venceu a eleição e logo o Mercado rugiu alto: disparou a inflação e atirou para o alto a taxa cambial. Era o aviso bem claro: olhe para trás e rememore os acontecimentos que sucederam a Vargas, depois da Petrobrás e do salário mínimo de 54. E a Goulart, dando poder aos sindicatos para fazer "reformas de Base". Cuidado! E Lula, inteligente e sensível, teve cuidado. A arte de negociar era o seu forte, sempre foi seu talento maior ao longo da vida. E Lula negociou. Não sei que interlocutores teve nesse diálogo; não sei nem mesmo se houve tal diálogo explícito, ou se o entendimento ficou implícito naquela carta pública de Palocci que tranquilizava os banqueiros, dizendo que não haviam feito nenhuma revolução. Entendimentos desse tipo muitas vezes são indiretos, implícitos. Sei apenas que o penhor do acordo foi a escolha de Henrique Meirelles para comandar o Banco Central, e com uma forma de comando que caracterizava, de fato, o que não era de direito, mas que Palocci abertamente queria que fosse, o Banco Central independente. Isto é, em outras palavras, o Banco Central dos banqueiros.

O entendimento se consolidou e Lula pôde então acabar com as privatizações, reaparelhar o Estado, reeditar o planejamento, incrementar os investimentos estatais e lançar os programas de redistribuição de renda no campo e na cidade. Paralelamente, o Banco Central mantinha a taxa de juros nas alturas, mesmo contra o protesto dos empresários da produção vocalizado na palavra insistente do vice-presidente José Alencar. O juro elevado jogava uma montanha de dinheiro público nos lucros dos bancos, atraia permanentemente investimentos externos especulativos e valorizava artificialmente o real, mantendo bem baixas as "metas de inflação". Os exportadores chiavam com aquele câmbio artificial mas o balanço de pagamentos conseguia se manter com o firme ingresso de investimentos financeiros e o forte crescimento da demanda mundial de commodities que o Brasil podia produzir com grande vantagem de preços, como a soja, a laranja, o café e o minério. A outra compensação para as empresas prejudicadas com a valorização forçada do Real veio com a abertura estimulada para o grande, e crescente, e florescente, e promissor mercado dos derivativos financeiros, o grande cassino internacional que dava lucros fabulosos e pagava inacreditáveis remunerações aos executivos bons de roleta, como o próprio Meirelles, antes de vir para o Brasil fazer política e ajudar Lula.

Bem, a bolha do grande cassino furou. Ainda não rebentou completamente; razão pela qual não se pode ainda prever qual vai ser o tamanho dessa crise que esta ai apavorando o mundo. O PIB mundial é de cerca de 60 trilhões de dólares; o endividamento global é de algo como 130 trilhões, mais do que o dobro do PIB; mas o volume dos negócios no grande cassino, ninguém sabe ao certo a quanto vai. Fala-se em algo como 600 trilhões! Então, é realmente para se ter medo; não é sem fortes razões que os governos mais ricos estão tão preocupados, chegando ao cúmulo de estatizar bancos, os neoliberais de ontem (!). É que o estouro pode vir a ser catastrófico. Para todo o mundo: menos para a China, talvez, porque lá o governo não deixou as empresas entrarem no cassino; mais para a Islândia, que era o verdadeiro modelo neoliberal, e já faliu. E o Brasil?

Bem, o Brasil tem uma liderança política forte e competente, prestigiada no mundo, o que é sumamente importante numa hora de emergência. O problema é que o governo não sabe, nem ninguém sabe, a extensão e a profundidade do comprometimento das empresas com esse cassino financeiro mundial. Quantas e quais são essas empresas? Apareceram algumas: Aracruz, Sadia, Votorantim, agora a Embraer, quais outras? Quantas? Mais cem? Mais duzentas? E os Bancos? E a quanto montam os comprometimentos e as perdas? Ninguém sabe, nem mesmo o senhor Meirelles; o neoliberalismo era isso, liberdade absoluta, sem dar satisfação a ninguém. E a falta de informação é terrível, porque abre espaço para toda sorte de especulação e de instabilidade. A queda de valor do Real frente ao dólar foi um sintoma realmente assustador; foi muito forte e muito rápida. O que quer dizer? Não se sabe. O senhor Meirelles continua segurando os nossos juros lá em cima, quando o mundo inteiro procura baixar os seus para fugir da recessão ameaçadora.

Roberto Saturnino Braga, ex-senador, membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.

Publicado no boletim Correio Saturnino nº 38 (5/11/2008)