Obama eleito; a história, afinal, não acabou
Em uma ironia final, o filósofo e economista nipo-americano Francis Fukuyama, autor da teoria neoconservadora do ”fim da história”, muito em voga nos anos 90, terminou, quem diria, votando em Barack Obama. Depois de se tornar um dos mais badalados neocons do país, e de colaborar com as administrações de Ronald Reagan a George W. Bush, Fukuyama anunciou seu voto na última quinta-feira (30).
Ele argumentou que ‘e ”difícil imaginar uma presidência mais desastrosa do que esta de George W. Bush”. Qualificou a Guerra do Iraque de ”desnecessária”; e taxou de ”altamente irresponsável” a escolha de Sarah Palin para vice da chapa republicana. Já não se faz neoconservadores como dez ou vinte anos atrás.
O poder de enquadramento do sistema
Poucos duvidam que se abriu nesta terça-feira uma página nova na história do país mais poderoso da atualidade. Que foi a eleição presidencial mais dramática, épica e importante pelo menos desde a de Franklin D. Rosevelt, em 1932.
Quanto aos contornos e dimensões da mudança, ainda sobram interrogações. Fica o consolo de que em breve saberemos.
Convém ser prudente. O sistema político americano, que ao longo de mais de um século tem sido a representação estatal do imperialismo americano, é mestre em enquadrar presidentes e fazê-los seguir o script que lhe convém.
O inquilino da Casa Branca pode ser um cowboy canastrão de Hollywood (Ronald Reagan) ou um plantador de amendoim cheio de boas intenções sobre direitos humanos (Jimmy Carter), um liberal com John F. Kennedy, iniciador da guerra de agressão ao Vietnã, ou um ultradireitista apalermado como George W. Bush: todos, no final das contas, têm jogado o jogo.
O tamanho da crise americana
Ao mesmo tempo, erra quem enxerga os EUA como uma realidade chapada, sem classes nem luta de classes, sem contradições e conflitos, sem movimentos, sem história. Isso não passou de um sonho de Fukuyama, e foi um sonho do mais profundo reacionarismo.
Neste novembro de 2008, os Estados Unidos da América são uma sociedade em crise profunda. Crise econômica antes de mais nada, a começar pelos subprime, passando pelas finanças e o crédito, e já plenamente instalada na produção (as vendas de automóveis em outubro somaram 850 mil, uma quebra de 31% em relação a 12 meses antes, e um número menor que o brasileiro). Mas não só.
A crise é econômica mas também ideológica, como mostra a confissão de culpa de Alan Greenspan, o sumo-sacerdote do neoliberalismo aplicado, de que ”a filosofia” em que ele acreditou a vida inteira ”não está funcionando”. É uma crise de hegemonia, comprovada pela torcida eleitoral no mundo inteiro (uma pesquisa na França apurou 78% de preferência por Obama e 1% por McCain). E, como atestam as urnas do 4 de Novembro, é uma crise política, sem precedentes pelo menos desde a dos anos 60, que produziu Luther King, a contracultura hippie e o movimento contra a guerra.
A vitória de Obama seria inconcebível fora deste cenário crítico. É antes de mais nada a crise que explica esta eleição, disputada palmo a palmo, primeiro nas primárias, face à pretendente Hillary Clinton, candidata do ‘‘main stream” democrata, e a seguir contra John McCain, que começou a campanha posando de republicano liberal e terminou-a apelando para Sarah Palin e o mais visceral conservadorismo fundamentalista, em sua cruzada contra o ”socialista” que quer ”redistribuir a riqueza”.
O mapa dos resultados, ainda parcial, mostra que é um movimento concentrado nos grandes centros urbanos. Obama venceu em todos, enquanto os grotões da ”América profunda” conservadora e fundamentalista, chamada ironicamente ”Jesusland” (”Jesuslândia”), pendeu para McCain e, é claro, Sarah Palin.
O movimento por mudanças veio para ficar
O mérito notável de Barack Obama, pior (nos EUA) que negro, mestiço, senador em primeiro mandato e com apenas 48 anos (”Conforme seus votos no Congresso, o mais liberal, ou seja, ‘à esquerda’, dos senadores”, registra Patrick Jarreau, editorialista do jornal francês Le Monde), foi ter interpretado o enorme desejo de mudança derivado da crise. Sua palavra de ordem, ”Change, We Can Believe In” (”Mudança, podemos acreditar”) pegou na veia da juventude, dos negros e latinos e por fim também da classe operária, inicialmente simpática a Hillary.
Muitos se perguntam agora o que Obama, uma vez na Casa Branca, vai querer fazer de sua plataforma mudancista. Outros, mais perspicazes, indagam o que Obama vai poder fazer.
As respostas dependem de múltiplas e intrincadas determinações. Porém entre elas convém destacar que o fenômeno Barack Obama surfou em um movimento de massas, anti-estabilishment, anti-Wall Street e anti-Washington, que a crise exacerbou ao paroxismo. Foi este movimento (e novamente o paralelo mais próximo é o dos anos 60) que fez 3 milhões de americanos (!) porem a mão no bolso para contribuir com a campanha. Foi ele que levou centenas de milhares de jovens e sindicalistas a trabalhar como militantes da candidatura. Foi ele que fez muitos negros da Virgínia esperarem durante sete horas para votar, muitas vezes pela primeira vez em sua existência, no candidato que por fim tocara seu coração.
Qualquer que seja o desempenho da administração Barack Obama, este movimento veio para ficar. Ele cobrará do novo presidente cada ponto de sua plataforma e cada tirada de oratória. Ele já desconfia do sistema, e, eventualmente, se voltará contra ele. É uma peça fundamental, talvez a mais importante, da nova página que se abre na história dos EUA.
McCain reconhece, seu público se indigna
”O povo americano falou, e falou claramente”, reconheceu McCain diante de um público republicano, num hotel de Phoenix, após ligar para Obama e reconhecer a derrota. ”O senador Obama conseguiu algo extraordinário para si próprio e para o país. Eu o aplaudo por isso”, agregou o candidato derrotado.
Ao fazer o discurso, McCain tentou em vão conter as vaias e gritos da platéia. Seus pedidos de ”por favor” não lograram acabar com os gritos de que Obama vai elevar os impostos e expor os EUA a ataques terroristas, dois dos bordões da campanha republicana em sua desesperada reta final.
Essa reação dá uma idéia do tamanho da perplexidade indignada que grassa na metade do país (a metade menor, mas de qualquer forma considerável) que votou na manutenção do status quo. Em grande parte ela simplesmente não tolera a idéia de ser governada durante quatro anos por um presidente com o perfil de Obama.
O líder revolucionário cubano Fidel Castro, em sua última Reflexão, escrita na segunda-feira, aconselhou o agora presidente eleito a cuidar de sua segurança. Há motivos para se levar o conselho a sério. Em um país marcada pela tradição da violência (que o digam, entre outros, Abraham Lincoln, John F. Kennedy e o próprio Fidel, que já escapou de vários planos de assassinato made in USA), parece um bom conselho.
Trator democrata no Capitólio
No Congresso Nacional os democratas fizeram barba e cabelo mas não bigode. Aparentemente – ainda há chance matemática de uma surpresa – os republicanos não ficaram privados das condições de praticar a obstrução, o que exigiria uma vantagem democrata de pelo menos 60 cadeiras no Senado. A diferença deve ficar em 55 cadeiras.
Afora isso, foi um desastre republicano. O partido de George W.ush, que já fora mal nas eleições legislativas de 2006, perdeu ainda mais terreno. No Senado, perderam ao menos cinco cadeiras, em New Hampshire, Carolina do Norte, Virgínia, Colorado e Novo México. Na Câmara, o recuo foi de no mínimo mis oito cadeiras.
Paradoxalmente, a bancada republicana no Capitólio além de menhor deve ficar mais conservadora. Ao perder terreno, o partido de Bush ficou reduzido ao seu núcleo duro ultraconservador, simbolizado na campanha pela vice de McCain, Sarah Palin.
”Hoje o povo americano disse claramente que quer conduzir nosso país em uma nova direção”, disse a atual presidente da Câmara, Nancy Pelosi, democrata da Califórnia. A virada parlamentar foi ainda mais expandida que a presidencial, atingindo estados onde Obama não teve a maioria dos votos. Entre eles, Dakota do Norte e do SulUtah, Arkansas e até o Arizona, berço político de McCain. Nos distritos da fronteira com o México, a eleição de democratas de sobrenomes hispânicos assinalou a opção dos eleitores latino-americanos.