Obama não galvanizou apenas um sentimento superficial, como uma leitura apressada de seu lema “é tempo de mudar” sugere. É claro que esse lema padece da indefinição que lemas de campanha costumam ter. Mas ele e o seu desempenho mexeram em raízes profundas da cultura norte-americana, não apenas em bolhas de superfície.

Obama não galvanizou apenas um sentimento superficial, como uma leitura apressada de seu lema “é tempo de mudar” sugere. É claro que esse lema padece da indefinição que lemas de campanha costumam ter. Mas ele e o seu desempenho mexeram em raízes profundas da cultura norte-americana, não apenas em bolhas de superfície.

A expressão “O dia seguinte” sempre lembra algum evento catastroficamente negativo ou positivo e suas conseqüências imediatas, quando uma nova era começa. As reações diante da eleição (inesperada, se olharmos desde um ano atrás; previsível, se olharmos desde o começo da última fase da crise financeira, a partir do começo de outubro) de Barack Obama como o 44° presidente dos EUA seguem esse padrão. Elas variam desde a euforia do “uma nova era começa” até a depressão do “nada vai mudar”.

Talvez importe começar a visão desse acontecimento sem dúvida notável – um jovem negro, ou afro-americano, ou mestiço tornar-se presidente dos EUA – não pelo que “vai mudar ou não”, mas pelo que “já mudou”.
Muitas observações sobre o desempenho eleitoral de Obama e de sua campanha apontam o dedo para seu assessor de comunicação, David Axelrod, “Mr. Internet”. Esse espaço desempenhou um papel relevante, mais relevante do que o costume, na campanha do vencedor de 04 de novembro. Duas alavancas importantes foram:

1) As contínuas mensagens que prontamente chegavam aos inscritos no comitê de Obama e passavam a circular no espaço cibernético; nem McCain ou Sarah Palin ou algum de seus assessores terminavam de formular uma crítica a Obama, e a resposta já estava na internete.

2) A coleta de fundos através das mensagens dirigidas pela internete; não sei que percentual se arrecadou dessa forma, em relação ao conjunto dos fundos, mas é certo que esse movimento criou, como reposta, uma “vaga” de mobilização, formatando a impressão e a expressão de que o cidadão comum, especialmente o cibernético, podia ser decisivo na infra-estrutura da campanha.

Mas é necessário ir além da observação midiática, para discernir qual a conexão que ela criou, ou ajudou a consolidar. Essa conexão foi com o imenso contingente de jovens que, pela primeira vez em muitos anos, tomou parte de modo intenso nesta campanha de 2008.

Estariam esses jovens motivados apenas pela crise? Penso que não. O que os motivou, além dessas preocupações imediatas e compreensíveis, foi a re-conexão que a campanha de e em torno de Obama operou, da política com um sentimento do futuro. O futuro foi o grande tema da campanha do senador por Illinois, o futuro como não necessariamente repetição da mesmice do mesmo, do presente e portanto do passado. E esse é um sentimento que encanta os jovens, sobretudo os que, entre 18 e 24 anos, mais ou menos, participavam de um confronto político para valer pela primeira vez. O confronto de Bush com Kelly, quatro anos atrás, não foi para valer. Kelly não galvanizou ninguém, e Bush foi eleito na inércia de seu primeiro mandato como presidente, posto que os desastres que semeou não tinham ainda mostrado todo o seu poderio.

É difícil entender o que se passou e seu significado, ou as possibilidades de seu significado, se não atentarmos para a rica herança libertária da cultura norte-americana. Sei que é complicado percebe-la, num momento em que a administração de Bush potenciou toda a face horrenda do imperialismo dos Estados Unidos, com suas “guerras humanitárias” ou “preventivas”. Mas não esqueçamos, por exemplo, que o 1o. de maio mundial tem sua origem nos Estados Unidos, na Chicago onde Obama seu os primeiros passos importantes de sua carreira política. Não esqueçamos o quanto o mundo deve a este país no que toca aos movimentos pela paz, de protesto contra todas as formas de discriminação, e o quanto a cultura mundial deve à música, às artes, à literatura, à cinematografia grandiosas que cresceram naquela terra. Nela cresceu Henry Kissinger. Mas também é a terra da palavra de Noam Chomsky.

A guerra do Vietnã foi ganha pelo heróico povo vietnamita sim, mas também foi ganha nas universidades e ruas norte-americanas, onde jovens (eles então de novo) amargaram confrontos pesados, muitos optando pelo exílio e outros morrendo debaixo das balas da Guarda Nacional, como em Kent, Ohio. Não esqueçamos que a terra da Ku-Klux-Klan é também a terra de Martin Luther King. Nossas imprensas conservadoras se inspiram em modelos norte-americanos? E nós, da alternativa, não nos inspiramos também em John Reed?

Não ver tudo isso (e os exemplos aqui são poucos dentre milhares e milhares de possíveis outros) é como querer ver a lição libertária dos Evangelhos apenas através dos óculos com que a hierarquia católica os enquadrou; ou ver a contribuição da cultura germânica apenas pela visão sombria de seu uso pelos nazistas; ou pensar que apenas Goebbels era alemão, e não Karl Marx nem Karl Liebknecht. Na Berlim devastada e reconstruída ainda ecoam as palavras do Führer, nascido na Áustria? Também ressoam as da polonesa Rosa Luxemburgo, a Rosa Vermelha. Uma cultura sempre é feita de várias culturas.

Obama não galvanizou apenas um sentimento superficial, como uma leitura apressada de seu lema “é tempo de mudar” sugere. É claro que esse lema padece da indefinição que lemas de campanha costumam ter. Mas ele e o seu desempenho mexeram em raízes profundas da cultura norte-americana, não apenas em bolhas de superfície. No que isso vai dar, depende sim de Obama e seu staff, cujo perfil ainda não está muito bem definido e talvez leve tempo para se definir. Talvez até seja bom que leve tempo, pois as definições muito imediatas do dia seguinte tendem a se tornar imediatistas.

Uma coisa é certa. As pessoas que já apontam o dedo em riste e a unha adunca para Obama e vaticinam de modo um tanto arrogante e ressentido que “não vai dar certo” me lembram um quadro tão domesticamente nosso, das nossas raízes brasileiras. Esse quadro pode se resumir em três frases, nada agradáveis de se ouvir, mas que nem por isso deixam de existir:
“Ah, os brancos fizeram a sujeira; toca agora ao negro limpá-la; e ai dele se não fizer um serviço direito!”.

Não perca, amanhã: “O dia seguinte (II): os rescaldos da direita”.

Flávio Aguiar é jornalista.

Artigo publicado na Agência Carta Maior em 5/11/2008